Ficção científica soviética, por Evanildo da Silveira

Pesquisador Abner Henrique Camacho Desterro desvenda o processo de criação por trás dos filmes soviéticos de ficção científica produzidos durante a Guerra Fria

Cena do filme de ficção científica para crianças soviéticas de 1974, “A Great Space Voyage”
Ficção científica soviética
por Evanildo da Silveira

Esperança nas gerações futuras; ciência produzida e desfrutada por todos, inclusive crianças, e não só por cientistas; união de todos os povos da Terra sem divisões nacionais e visão dos Estados Unidos como um país de mentalidade capitalista gananciosa e individualismo destrutivo. Essas são algumas das representações do futuro, contidas nos filmes soviéticos de ficção científicos produzidos durante a Guerra Fria, constatadas pelo pesquisador Abner Henrique Camacho Desterro, em seu trabalho de iniciação científica, que vem realizando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH),  da Universidade de São Paulo (USP).

Intitulado O futuro que nunca veio: uma análise das representações de futuro contidas nos filmes de ficção científica soviéticos durante a Guerra Fria (1959-1985), o estudo tem como objetivo principal entender como e por que os soviéticos imaginavam (ou ao menos representavam) o futuro daquela forma. “Meu trabalho busca perceber quais eram os pontos de vista soviéticos sobre a corrida espacial, o conhecimento científico, o Ocidente capitalista e o próprio cinema”, explica Desterro. “Ele ainda não está concluído, mas já dá para tirar algumas conclusões.”

Uma delas é que muitos das obras terminam de forma otimista, demonstrando esperança nas gerações futuras. “Um exemplo é a minissérie de cinco episódios Guest From the Future (título original: Gostya iz budushchego), de 1985”, diz Desterro. “Ela termina com a jovem Alice, vinda do ano de 2084, contando aos amigos que fez durante a série, alguns dos feitos futuros deles. Um desses amigos será um artista renomado nas galáxias, outra será uma conhecida pediatra, uma será campeã do torneio de tênis de Wimbledon, outro será o engenheiro que inventará a máquina do tempo, uma será uma atriz, outro será um poeta e outro ainda será um viajante espacial que escreverá sobre novos caminhos.”

Isso demonstra, segundo Desterro, outra característica recorrente nos filmes de ficção científica soviéticos: crianças produzindo ciência. The Big Space Travel (Bolshoe kosmicheskoe puteshestvie), de 1975, por exemplo, começa com a imagem de três adolescentes escrevendo complexas equações matemáticas no que parece ser uma lousa. O filme Moscow-Cassiopeia (Moskva-Kassiopeya), por sua vez, e sua continuação Teens in the Universe (Otroki vo vselennoj), de 1973 e 1974, respectivamente, retratam adolescentes especializados em engenharia aeroespacial e biologia sendo enviados em missões para outros planetas.

De acordo com Desterro, a ideia era de que a ciência não fosse apenas algo próprio de cientistas, mas sim para sociedade aprender e desfrutar. “Não à toa Teens in the Universe começa com a família de um dos adolescentes enviados numa missão espacial (que ainda não retornou) comemorando o aniversário de 40 anos do rapaz”, conta. “Neste momento, um guru especialista aparece na casa ‘do nada’ e ensina o Paradoxo de Einstein de forma bem didática. Ele diminui a quantidade das velas do bolo num passe de mágica, para explicar àqueles leigos que o menino ainda tem apenas 14 anos.”

Outro tema comum e até mesmo específico dos filmes soviéticos era o da grande união terrestre que superasse as divisões nacionais. “Neste caso, talvez alguém pudesse considerar que foi uma ‘previsão’ que eles ‘erraram’, mas que na verdade era mais uma utopia cinematográfica do que um projeto concreto”, explica Desterro. “Provavelmente ela era motivada pela ideia de unidade e fim das classes sociais da ideologia socialista/comunista, e talvez com pitadas de globalização ou da esperança de que a ONU se tornasse um órgão que acabasse com os conflitos internacionais.”

Desterro diz que essa ideia pode ser identificada em vários filmes, como, por exemplo, O Planeta das Tempestades (Planeta Bur) (1962), Toward Meeting a Dream (Mechte Navstrechu) (1963), The Star Inspector (Zvyozdny inspektor) (1980). “Todos eles, em algum momento, tem em sua trilha sonora um ‘hino globalista’, um canto que parece visar substituir todos os hinos nacionais, e que carrega ideias como a de que a Terra é a mãe Pátria de todos seus filhos e filhas”, diz.

O pesquisador ressalta ainda o que ele chama de o aspecto ideológico mais marcante da Guerra Fria: apontar os problemas do “outro”, o grande inimigo ocidental, ou seja, os Estados Unidos. “Em The Sky Calls, por exemplo, dois líderes, um norte-americano e um soviético, discutem sobre a missão de ir para Marte”, conta Desterro. “O soviético sugere que juntem forças para conquistarem o grande objetivo em comum, mas o americano escolhe a disputa.”

Nesse mesmo filme, os americanos também são retratados como pessoa que transformam tudo em produto. “Na obra, eles produzem um comercial sobre as possibilidades espaciais, inventam bebidas temáticas, oferecem compra de terras na Lua, cogitam dinâmica urbana e especulação imobiliária em outros planetas e exibem cartazes de néons luminosos e com apelo sexual”, diz Desterro. “Sem dúvida é um retrato pós-moderno e uma ácida crítica por parte dos soviéticos.”

Confira:

Redação

5 Comentários

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  1. Nem pense, caro professor, em estudar os filmes do eixo Inglaterra-Estados Unidos nem durante esse período nem antes dele e menos ainda depois, exceto se você tiver um antídoto contra maledicência ainda que disfarçada de piedade. A propósito, uma fórmula em uso até hoje: levar a Democracia à Venezuela, ao Iraque, a Cuba e a todos os países sob ataque terrorista e unilateral dos EUA.

    Mas desde Gunga Din e até antes disso (o reino podre era o da Dinamarca, lembra?), passando por Lawrence das arábias, A ponte do rio Kwai, Doutor Jivago e chegando a Indiana Jones, Jason Bourne etc., etc. etc. a cultura anglo-estadunidense pouco produz além de declarações de sua superioridade ou pelo menos declarações da inferioridade dos outros povos. “Propaganda é tudo”, diriam, “é a alma do negócio.”

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