Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Nuit Noire”: sonhamos os sonhos ou os sonhos é que sonham conosco?, por Wilson Ferreira

Oscar é um entomologista solitário que trabalha no museu de história natural e em casa cria insetos em estufas numa monótona rotina. Ele vive num mundo que parece ser um purgatório noturno: há um eterno eclipse solar que só deixa o Sol aparecer por quinze segundos. Até que um dia volta para casa e encontra uma mulher negra, doente e grávida, na sua cama. Oscar usará a ciência da Entomologia para lidar com o problema inesperado. No filme belga “Nuit Noire” (2005) o diretor Olivier Smolders faz um mix do cinema surrealista de Buñuel e David Lynch com a paranoia de “A Metamorfose” de Kafka. O filme mostra como o cinema europeu lida com os temas da mente e do inconsciente de forma bem diferente das produções norte-americanas: não há mais a luta e vitória da Razão sobre a mente, mas como os sonhos e o inconsciente contaminam os diversos níveis da realidade. Será que sonhamos os sonhos ou os sonhos é que sonham conosco?

Representações da mente e do inconsciente sempre andaram de mãos dadas com o cinema desde o início. Mesmo no início documental dos Irmão Lumière, o susto de ver um trem chegando numa estação foi a primeira representação imaginária do inconsciente. Afinal, ficar numa sala escura olhando para uma tela, simula no real a própria tela mental dos sonhos de toda noite.

Porém, essas representações no cinema podem ser divididas basicamente em duas vertentes. A do cinema americano, como nos filmes Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2003), A Origem (Inception, 2010) ou Divertida Mente (Inside Out, 2015) no qual a mente é representada pelo ponto de vista das neurociências – representações quase cartográficas da memórias e atividades mentais, por meio de metáforas ou analogias: cofres, encruzilhadas, labirintos, becos, muros etc. É o projeto do controle pragmático da mente por meio de precisas cartografias e topografias – sobre isso clique aqui.

Ao contrário, como não poderia deixar de ser, as representações européias são carregadas pela forte herança freudiana da psicanálise e a sua expressão máxima no cinema: o Surrealismo de Dali e Buñuel. Diferente das cartografias analógicas do cinema americano, os filmes surrealistas representam a mente através dos simbolismos seja das imagens ou das montagens e edição. Aqui não há mais o desejo de controle por meio da racionalidade – o protagonista é arrastado pelo inconsciente a tal ponto que ilusão e realidade, sonho e vigília se confundem. Além do clássico Um Cão Andaluz (1928), temos exemplos mais atuais como Sonhando Acordado (2006), Aurora (Vanishing Waves, 2012) ou Agnosia (2010).

A estreia em longas metragens do diretor belga Olivier Smolders com o filme Nuit Noire (2005) confirma essa profunda divisão das representações da mente e do inconsciente no cinema. O filme é uma atualização da linguagem europeia do surrealismo por meio de um delirante mix de Buñuel, A Metamorfose de Kafka e os enigmáticos Eraserhead e Blue Velvet de David Lynch.

Buñuel, Lynch, Kafka

A manipulação do tempo e espaço por meio da montagem como em Buñuel (tudo se passa em uma eterna meia-noite), estranhos closes de insetos se retorcendo e cortinas vermelhas como em David Lynch e simbolismos pagãos de metamorfoses e fertilidade (uma mulher morta se transforma numa pupa num casulo para renascer como outra pessoa) numa analogia à obra de Kafka. 

Nuit Noire é a síntese da proposta surrealista sobre o inconsciente humano. A Razão humana não é o centro do Universo. Mas sim o inconsciente, que sem percebermos nos governa e molda a própria realidade que, achamos, é dirigida pela racionalidade.

E a sala de projeção cinematográfica nada mais é do que a confirmação na realidade dessa ontologia onírica: sentados no escuro, passivos e com a boca aberta, esperando sermos preenchidos com fluxos oníricos das imagens. Todo um dispositivo tecnológico inventando para perpetuar na vigília o que vivemos nos sonhos quando dormimos.

O Filme

A estranha bizarrice surrealista de Nuit Noire já começa na própria sinopse do filme: um entomologista (especialista em insetos) solitário trabalha em um museu de história natural num mundo onde só há luz por quinze segundos – há uma espécie de eterno eclipse do Sol. Dentro da sua rotina solitária de casa pra o trabalho, um dia ao retornar para seu apartamento descobre uma mulher negra dormindo em sua cama. Ela está doente e grávida e eventualmente morrerá, deixando para ele a difícil missão de lidar com o corpo.

Com os seus conhecimentos de Entomologia, Oscar (Fabrice Rodriguez) transformará o corpo da mulher numa pupa em um grande casulo sobre a sua cama, transformando-a na imagem de uma suposta irmã já falecida que aparece recorrentemente em seus sonhos.

A epígrafe que abre o filme já prepara o espectador para o que virá:

Quando era criança, ficava receoso de dormir. A noite parecia tão povoada de fantasmas. Meu medo e desejo de vê-los causarem acontecimentos os quais eu reconheci muito bem sem realmente compreendê-los.

Nesses sonhos recorrentes sobre a infância, Oscar está sempre ao lado de sua irmã enfrentando perigos como tigres e leopardos. As feras sempre matam sua irmã, deixando-a em pedaços. A culpa pela morte o faz reviver a cena numa espécie de pequeno palco de teatro de fantoches. Uma sombria dupla de titereiros manipulam cordéis como se Oscar e sua irmã fossem bonecos.

Nas entrevistas sobre o filme, o diretor Smolders confessa que se sente indignado com um cinema comercial que, apesar de mostrar imagens as quais compreendemos instantaneamente, insiste em dar explicações literais, infantilizando o espectador. Nuit Noire quer fazer o movimento inverso: deixar lacunas simbólicas para convidar o espectador a preenchê-las.

Quem sonha quem?

Será que sonhamos os sonhos ou os sonhos sonham conosco? Essa parece ser a grande questão em Nuit Noire.

Por isso o filme divide a realidade em três níveis. No primeiro, é verdadeiramente muito real: a noite eterna na qual vive Oscar – o trabalho solitário e a rotina monótona, sem alegria, alternando o trabalho no museu e em casa criando insetos em estufas.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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