Lúcifer Morningstar, o anjo mais humano, por Carolina Maria Ruy

Mas Morningstar é mais contraditório uma vez que busca compreender e assimilar o senso de justiça e de benevolência que sela as relações sociais. Ele não põe em dúvida a divindade, mas a renega em nome da convivência entre os mortais.

Lúcifer Morningstar, o anjo mais humano

por Carolina Maria Ruy

Assisti a série Lúcifer surpresa e intrigada com a personalidade e a moral do diabo interpretado pelo ator britânico Tom Ellis. Não que a série, que mistura ação e comédia, proponha grandes reflexões. Mas imaginava, antes de assistir, que o humor e a aventura dar-se-iam com base na maldade e nos poderes que se esperam do demônio.

Não é o que acontece. O caráter do protagonista contrastou com a minha expectativa. E esta aparente incoerência provocou em mim uma reflexão profunda e inusitada frente à proposta da série, que não ambiciona ir além de seu posto de entretenimento.

Qual é a ideia de diabo defendida através da figura do empresário e auxiliar da polícia Lúcifer Morningstar? Ele em nada lembra John Milton, o diabo representado por Al Pacino em O Advogado do Diabo (1997). Aquele sim condiz com a figura satânica que conhecemos. Sua missão na Terra é viabilizar o horror, instigar o que há de pior nas pessoas e valorizar os piores. Dono da maior firma de advocacia de Nova York, Milton é ardiloso, afiado, manipulador, frio e impermeável. É um diabo assumido que não mantém nenhum traço do anjo que já foi.

Já o Lúcifer de Tom Ellis é um diabo aberto a mudanças. Ele deixa claro que governar o inferno é uma condenação, não uma escolha, e renuncia a este posto para viver com os seres humanos, em Los Angeles, Califórnia. Rebelde inato, Lúcifer lembra o diabo quando se entrega (com frequência) aos prazeres carnais e quando consegue extrair de qualquer pessoa seus verdadeiros desejos. Mas seu traço mais importante e que melhor o define é que ele questiona sua condição e busca evoluir. Mais do que isso, ele quer aprender e ser aceito pelas pessoas.

Lúcifer Morningstar está mais próximo de sua identidade de anjo do que John Milton que rompeu com sua natureza angelical. Não um anjo etéreo como o do filme Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, mas um anjo humano e contestador.

Neste sentido ele expressa uma ideia de diabo baseada na quebra de padrões e na transformação das estruturas, um pouco como o diabo imaginado por Mick Jagger e Keith Richards em Sympaty for the Devil, mas ainda mais contraditório.

A música dos Rolling Stones, faixa de abertura do álbum Beggars Banquet lançado no fatídico ano de 1968, encarna o espírito da revolução dos costumes que marcou a época, apresentando um diabo provocador e ativo na história da humanidade. Ela afirma que a divindade é uma criação humana (Assisti com alegria/Enquanto seus reis e rainhas/Lutaram por dez décadas/Pelos deuses que criaram) e expõe a falsa dicotomia entre o bem absoluto e o mal absoluto (Assim como todo policial é um criminoso/E todos os pecadores são santos/Assim como cara é coroa/Simplesmente me chame de Lúcifer/Porque preciso de alguma contenção). Além de ter uma letra politizada, seu lançamento em 1968 foi também um ato político de contestação e quebra de padrões.

Mas Morningstar é mais contraditório uma vez que busca compreender e assimilar o senso de justiça e de benevolência que sela as relações sociais. Ele não põe em dúvida a divindade, mas a renega em nome da convivência entre os mortais.

Os anjos e demônios criados pela série preferem a vida na Terra a governar o inferno ou mesmo à vida no paraíso celestial. Preferem os desafios terrestres à falta de contradições do além. Encontram, pasmem, no trabalho (e o trabalho realizador de Lúcifer nem de longe lembra o glamour do império do magnata John Milton, aqui ele dá o seu melhor quando é um funcionário da polícia, subordinado à uma hierarquia acima dele), a possibilidade de realização e de evolução.

Penso, desta forma, que por trás de todo aquele entretenimento, de toda aquela comédia e ação, com alta dose de romance, Lucífer é uma série humanista. Uma série provocadora, que coloca o ser humano mortal e material no centro do mundo.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador