Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O cinema alquímico de “Beleza Americana”

O filme “Beleza Americana” (American Beauty, 1999), premiado com o Oscar de melhor filme, é uma narrativa sobre a transformação íntima de um protagonista que causa um turbilhão em todos ao redor. Associado ao princípio revelado logo no início de que acompanhamos a trajetória de um ano de vida de um protagonista que diz que já está morto, o filme propicia uma difícil questão: um filme que segue as convenções de gênero hollywoodiano pode criar no espectador um acontecimento de transformação semelhante ao que vemos no protagonista? Apesar das convenções de gênero, “Beleza Americana” do diretor Sam Mendes é um tipo especial de filme, pois explora mitologias e arquétipos da transmutação alquímica da matéria, onde rosas, a cor vermelha, o sangue e a morte criam uma complexa simbologia, bem diferente da Jornada do Herói clássica – trevas, caos e morte não é destruição, mas momentos de regeneração e redenção.

Um espectador vai assistir ao filme Beleza Americana no cinema. Quebra a sua rotina e vai ao cinema para ficar sentado por duas horas em uma sala escura vendo a narrativa fílmica que começa com uma locução em of do protagonista chamado Lester dizendo que contaria a história da sua vida e que, em um ano, estaria morto.

Após uma narrativa convencional pelos parâmetros hollywoodianos do gênero, o filme termina de forma abrupta em mais uma locução em of de Lester, dessa vez após tomar um tiro mortal e descrever a sua própria experiência desse momento. Lester faz um balanço sobre “os pequenos momentos” de sua “estúpida vida”, e fala que apesar disso “é difícil ficar bravo quando há tanta beleza no mundo”. E profeticamente fala ao espectador: “um dia você saberá do que estou falando”.

Corta! A tela fica escura por longos segundos, jogando esse espectador em uma escuridão e silêncio totais, até começar a aparecer os créditos e as primeiras luzes da sala de projeção ser acesas, chamando-o de volta a sua rotina. O abrupto final revela que toda a narrativa, na verdade, é contada por Lester no momento de sua morte, como sugere no início. Como poderemos retornar à rotina linear e repetitiva do tempo do relógio do cotidiano depois dessa experiência? Afinal,acompanhamos uma inusitada perturbadora experiência temporal: toda a narrativa do filme sobre um ano da vida de Lester se passou em uma fração de temponum estado límbico entre a vida e a morte, onde o protagonista diz que, ao contrário do que pensamos, a vida não passa diante dos olhos, mas se “se alonga eternamente como um oceano de tempo”.

O filme de Sam Mendes, Beleza Americana, é um trabalho que merece ser visto e revisto porque podemos considerá-lo um tipo de filme gnóstico bem especial: um filme alquímico, tanto pela sua narrativa como pelo conteúdo. Como todo filme alquímico, são estórias de transformação do protagonista através da transmutação e dissolução que parecem provocar o espectador: será que, assim como o personagem, também o espectador será mudado? Como ele retornará à sua rotina após acompanhar a experiência de um protagonista que rejeita uma ordem pré-estabelecida e intencionalmente conduz sua vida ao caos e morte em busca da regeneração? E, o que torna o filme ainda mais complexo, é possível essa transformação alquímica acontecer dentro das convenções hollywoodianas de gênero? Afinal, foi um filme premiado com o Oscar.

O filme Beleza Americana nos oferece a possibilidade de entender essa especificidade de filme gnóstico, aquele que trabalha com mitologias e arquétipos alquímicos. Um tipo bem peculiar de Jornada do Herói: diferente da convencional, onde o herói seja extrovertido (que quer transformar o mundo como Neo em Matrix, por exemplo) ou introvertido (através da contemplação cultiva seus próprios valores internos, como Truman em “Show de Truman”), no filme alquímico teríamos a centroversão – não há mais o externo e o interno, o herói quer perder o ego e entrar em harmonia com energias e formas inconscientes que estruturam a existência e o Universo. Ele busca as trevas, o caos e a morte como forma de regeneração ou redenção.O herói consome-se a si mesmo.

O Filme

Beleza Americana acompanha a trajetória da crise de meia idade e o despertar de Lester Burnham (Kevin Spacey). A esposa (Carolyn – Annette Bening) é uma workaholic frígida e envolvida totalmente com a ideia de sucesso, consumidora ávida de livros de autoajuda. Vive repetindo como mantras frases do seu guru, um corretor de imóveis bem sucedido. Lester vive em uma rua agradável, ladeada de árvores agradáveis, em uma bela casa, e tendo como vizinhos, de um lado, gays encantadores e simpáticos, e, do outro, um coronel linha-dura da reserva. Sua filha adolescente Jane é uma típica adolescente tímida e introvertida e que tem vergonha dos pais.

Tudo dentro da expectativa média da normalidade de classe média, até que ele começa a olhar tudo mais de perto. Ao conhecer a amiga da sua filha, a cheerleader Ângela (Mena Suvari), Lester tem uma espécie de epifania: a vê em uma chuva de pétalas de rosas, flutuando em torno do seu rosto paralisado. Os sentimentos que a adolescente desperta nele desencadeará uma revisão da sua carreira, seu estilo de vida e a relação com todos ao seu redor: abandona seu emprego, fuma maconha, tenta mostrar a sua esposa o quão absurdo são os valores de competição e sucesso para tentar fazê-la retornar a ser ela mesma, começa a fazer musculação na garagem de sua casa, busca trabalhos em que tenha a mínima responsabilidade etc.

Perdemos a capacidade de ver a beleza

O tema recorrente do filme é a beleza. Cada personagem perdeu a capacidade de vê-la: Carolyn tenta criar uma aparência de sucesso nos mínimos detalhes da sua vida; Jane tenta criar um vínculo com o mundo através de Ângela, a cheerleader fútil cujo único sonho e o de ser uma garota popular; o coronel aposentado que tenta criar uma aparência de rigidez moral para encobrir suas inseguranças etc. E Lester quer criar situações que conduzam todos a um ponto de ruptura.

Quando alguém como Lester começa a ver a beleza do que é realmente viver a vida, as pessoas ao redor começam a sentir seu modo de vida ameaçado. O que significa morte certa para ele, cujo destino já nos é avisado por Lester logo nas primeiras linhas de diálogo do filme.

As fases da transmutação alquímica

Diferente da Jornada do Herói tradicional (plenitude, queda, martírio, morte e ressureição), na jornada de transmutação do herói alquímico teríamos as seguintes fases que são bem distintas em Beleza Americanae que, na Alquimia, seriam as fases da transmutação da própria matéria:

Nigredo (enegrecimento); o caos primário de indiferenciação. Seus símbolos são o oceano, a serpente ouroboros e o caduceu de Mercúrio. O estado psicológico é a melancolia, associada à influência de Saturno.Vemos nas primeiras sequências Lester melancólico dentro da rotina e mesmice da vida familiar e trabalho. Tudo é a mesma coisa, não há singularidade, sentido ou beleza.

As três fases alquímicas da transmutação:
nigredo, albedo e rubedo

Albedo (enbranquecimento): Sob a influência da Lua o caos é estabilizado, imobilizado em um estado abstrato, ideal. É o momento em que Lester está calmo e sereno em meio ao turbilhão que criou em todos ao redor. Seus sonhos e fantasias podem torná-lo um “lunático”, pois sua experiência temporal é de suspensão: epifania, imagens de pétalas de rosas suspensas em torno dele enquanto vê o corpo nu de Ângela deitado sobre um colchão de rosas.

Rubedo (enrubescimento): a esse estado ideal e congelado é injetado o sangue, o Sol, a vida. O microcosmo encontra sua conexão com o macrocosmo. O sangue jorrando da sua cabeça ao ser assassinado pelo seu vizinho psicótico sugere conter as sementes de rubedo: Lester descobre o “oceano do tempo” em um segundo e descobre “toda a beleza do mundo”. Seu ser é transmutado e redimido ao ter o insight do Todo em sua “estúpida vida”.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

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  1. A verdade verdadeira é que o

    A verdade verdadeira é que o filme é um porre

    Muito chato mesmo

    Parece filme do Jabor financiado pela Embrafilme , que servia para sustentar um monte de pseudointelectuais

  2. Não parece um filme do Jabor

    Não parece um filme do Jabor porque dramas “existenciais” desse diretor como “Eu te Amo” (1981) eram puramente solipsistas (em português claro, centrado no próprio umbigo). “Beleza Americana”  propõe uma jornada de transformação em choque com instituições sociais bem reais. Por isso, em sintonia com a levada “metafísica” da época como Matrix, Show de Truman ou Dark City, parte para uma simbologia com inspiração esotérica, como a alquímica.

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