O humor do Monty Python contra o cinismo contemporâneo

 

Há quarenta e quatro anos ia ao ar pela TV BBC o primeiro “Monty Python’s Flying Circus” com uma trupe de comediantes ingleses cujo humor era marcado pelo absoluto cinismo e non sense. Suas experiências formais (programa estruturado como “fluxo de consciência”) e sketches demolidores influenciam há décadas gerações de comediantes e redatores. Recuperando a melhor tradição do humor físico de Chaplin e Jacques Tati, mesclou tudo isso com um estilo de comédia que desconstruía ilusões e mentiras dos papéis sociais, mostrando de forma engraçada como nossa existência parece ser baseada em mentiras e ilusões. Diante do “cinismo esclarecido” contemporâneo a que se refere o filósofo alemão Peter Sloterdijk, o grupo inglês criou uma técnica de humor que remontava às próprias origens filosóficas radicais da escola dos cínicos: o “kynismo” grego da antiguidade helenística de Diógenes e Pirro.

Quando pensamos em filmes gnósticos, logo imaginamos ficções científicas dramáticas como “Cidade das Sombras” ou “Matrix” com protagonistas procurando saídas de um universo conspiratório em narrativas tensas e repletas de simbolismos enigmáticos. Terror, drama, thriller, suspense ou ficção científica parecem ser os gêneros propícios para questionamento gnósticos sobre a condição humana. Mas e a comédia?  É claro que nesses últimos quatro anos em que esse blog procurou mapear a presença de elementos gnósticos, esotéricos, ocultistas e míticos na produção cinematográfica popular recente, encontramos tais elementos em produções que primam pelo humor negro como no filme “Como Fazer Carreira em Publicidade” (How to Get Ahead in Advertising, 1989) ou em animações como a trilogia “Toy Stories”.

Mas se pensarmos a comédia muito mais do que um gênero, isto é, como técnica de humor (onde elementos como o cinismo, a ironia, a parodia e o sarcasmo podem se transformar em instrumentos de crítica social tão poderosos como a Filosofia e a Psicanálise) podemos encontrar a presença do espírito gnóstico da desmistificação da irrealidade do mundo.

Se partirmos do princípio de que “todo artista sério já é meio gnóstico”, como afirma o pesquisador húngaro Stephan Hoeller, então o humor cult do grupo clássico inglês “Monty Python” seria um ótimo exemplo. Além de terem influenciado diversas gerações de roteiristas e artistas de humor que vai do stand up ao teatro e cinema, ofereceram brilhantes insights que transcendem o simples texto de humor, fazendo a comédia se encontrar com a animalidade do corpo humano e de seus gestos, o sarcasmo e a pantomima. Recuperando a melhor tradição do humor físico de Chaplin e Jacques Tati, mesclou tudo isso com um humor que desconstruía ilusões e mentiras dos papéis sociais, mostrando de forma engraçada como nossa existência parece ser baseada em mentiras e ilusões.

Fluxo de consciência, cinismo e non sense

O grupo inglês formado por Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin criou o programa “Monty Python’s Flying Circus” levado ao ar pela BBC TV de 1969-1974 formado por sketches estruturados como fizessem parte de um “fluxo de consciência”: sketches isolados eram unificados por personagens, bordões ou questões que se repetiam ao longo do programa (como a constante presença de um coronel, que sempre intervinha quando o sketch começava a ficar cada vez mais absurdo), assim como as famosas animações em colagem stop motion. Mais tarde, o grupo realizou filmes que se tornariam imediatamente clássicos cultuados como “Em Busca do Cálice Sagrado” (1974), “A Vida de Brian” (1979) e “O Sentido da Vida” (1983).

Cinismo e suspensão de sentido (non sense) são as palavras-chave do humor do grupo. Muitas vezes involuntariamente, pois o orçamento baixo de produção obrigava o grupo a buscar imagens e músicas de domínio público e, por isso, gratuitas como a marcha da abertura “The Liberty Bell” do Monty Python’s Flying Circus e imagens e fotografias vitorianas que pontuavam os sketches e davam uma atmosfera surreal e de non sense.

O “cinismo esclarecido” contemporâneo

Mas o mais importante no grupo foi a sua proposta de cinismo associado ao humor negro e o que seria hoje considerado “politicamente incorreto”. Seu cinismo certamente não é o do humor contemporâneo, marcado pro aquilo que o filósofo Peter Sloterdijk chama de “cinismo esclarecido”: o cínico integrado aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmo e ao que faz (“é o que tem prá hoje”, dizem), uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios.

Esse tipo de “cinismo esclarecido” é o que permeia o humor contemporâneo em cada show de stand up para burocratas que desapertam suas gravatas em casas de shows.

O grupo Monty Python parece retornar ao cinismo da tradição filosófica (os kynismos) de Diógenes e Pirro do período helenístico da Grécia antiga. Para eles o cinismo era uma arma crítica contra as três formas de falsidade que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a instrumentalização da ilusão para finalidades políticas). Por isso os cínicos desprezavam o dinheiro, mendigavam, não queriam posição estável e nem nacionalidade, vivendo apenas o dia a dia e de forma errante. A filosofia cínica era uma escolha por liberdade total e a recusa de necessidades inúteis, recusando o luxo e vaidade presentes na vida social.

O estilo dos seus discursos, tiradas e aforismos era marcado por paradoxos e, principalmente em Pirro, de indiferença em relação à linguagem, valores e julgamentos: tudo é relativo, marcado pela convenção. A linguagem é intransitiva, não aponta para nada real – são apenas jogos e convenções diante da qual devemos ser indiferentes, essa a verdadeira virtude.

Para Peter Sloterdijk tudo isso se perdeu quando o cinismo passou “para o outro lado do balcão” transformando-se na “lógica dos senhores”:

“A força do cinismo antigo foi aclimatada às modernas estufas de conforto. Seus gestores não são mais sábios mendigos de Atenas, mas o Estado, professores universitários, partidos políticos, formadores de opinião. Todos mentem, sobretudo quando dizem a verdade. Todos falsificam a realidade, especialmente quando nos oferecem o elixir de nossa salvação. Pois um dos critérios do marketing da falsidade é ser honesto. A transparência alimenta todos os dias o commodities do cinismo. As ações da virtude são as que mais sobem na bolsa cínica. A mentira não é mais o fundo podre da civilização, como queriam Freud e Benjamin. Ela veio à luz. Tornou-se um bem de primeira necessidade.” (PETRONIO, Rodrigo. “Peter Sloterdijk reconstrói suas matrizes do ocidente: cinismo e ira”, Estadão.com.br)

O “Papagaio Morto”

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Luis Nassif

4 Comentários

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  1.  
    Wilson Roberto V.

     

    Wilson Roberto V. Ferreira,

    Parece que o sketch do papagaio já foi mostrado antes e na época eu fiz a mesma alusão que faço agora.

    No post “Thatcher e o Monty Python” de 31/05/2010 no blog de Na Prática a Teoria é Outra há um vídeo para um discurso de Margaret Thatcher em que ela utiliza deste quadro do Monty Python.

    Deixo então o link para o post “Thatcher e o Monty Python” e que fica neste endereço:

    http://napraticaateoriaeoutra.org/?p=6316

    Pensei até que iria encontrar lá alguma indicação de quando este quadro foi reproduzido aqui no blog de Luis Nassif. Talvez depois da dita migração a ser feita aqui no blog de Luis Nassif, eu faça uma pesquisa para achar o outro post, ainda que não tenha muita relevância.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 07/09/2013

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