Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O mito da pureza infantil no filme “A Caça”

Quais fronteiras que separam a criança do adulto? A racionalidade? O desenvolvimento físico? A maldade? O filme “A Caça” do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), através de uma narrativa seca, crua e até brutal, segue o drama de um professor falsamente acusado de abuso sexual em uma escola infantil como ato de vingança de uma menina cujo beijo fora delicadamente recusado por ele. A destruição de reputações e o linchamento moral são meticulosamente abordados:  como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes. Mais do que isso, “A Caça” questiona a mitologia da pureza infantil, discurso mobilizado pelos adultos para legitimar todo um sistema cultural e moral baseado numa suposta evolução natural da infância à vida adulta. 

A infância talvez seja um dos mitos mais cultivados e protegidos da sociedade. Afinal, é o que sustenta todo o sistema educacional, cultural e moral: a certeza de que nascemos e evoluímos física e intelectualmente através do aprendizado, da educação seja física ou cultural.

Ritos de passagem para a entrada na vida adulta como demonstrações de destreza, coragem, força física e domínio intelectual são eventos centrais na sociedade para determinar essa fronteira que separaria a infância da vida adulta. Mas há momentos em que essas fronteiras não ficam tão evidentes, principalmente quando as crianças demonstram ter uma vida psíquica tão intensa quanto a dos adultos com desejos e fantasias que não conseguem ser explicados pela oposição simplista verdade/mentira.

E então nesses momentos a sociedade deve intervir, muitas vezes de forma violenta.

O filme

Esse é o tema central do filme A Caça do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg. A caça é tomada no filme tanto no sentido literal como metafórico: a forma como o protagonista passa a ser “caçado” através da difamação em uma pequena comunidade e a caça encarada nessa sociedade como um ritual de passagem para a vida adulta.

Lucas (Mads Mikkelsen) é um pai divorciado que é falsamente acusado de ter abusado sexualmente crianças em uma escola infantil onde trabalha como professor. A narrativa começa com Lucas em uma disputa judicial com sua ex-esposa que utiliza o sistema do tribunal de família para minar o relacionamento com seu filho adolescente. Lucas se refugia do seu sofrimento nos relacionamentos saudáveis e amorosos com as crianças da escola.

Mas tudo começa a tender para um realismo cada vez mais brutal e angustiante quando Lucas é acusado por uma criança vingativa chamada Klara (Annika Wedderkopp), depois que sua paixão pelo professor é delicadamente recusada. Depois que ela ouviu de seu irmão piadas com amigos sobre um pênis ereto que viram em um site da Internet, Klara acusa Lucas de ter mostrado o seu para ela. Depois disso a pequena e pacata comunidade dinamarquesa converte seus moradores em monstros predadores tão ameaçadores quanto aqueles dos pesadelos infantis.

Grethe, a diretora da escola, faz uma entrevista superficial e sem sentido com Klara, concluindo a partir dos fragmentos de diálogo com a menina de que outras crianças também foram abusadas por Lucas. A diretora denuncia às autoridades e alarma os pais ao orientá-los a ficarem atentos para possíveis sintomas de abuso sexual como incontinência urinária e dores de cabeça.

Lucas é preso e depois inocentado das acusações, mas a histeria e paranoia se espalham viralmente pela comunidade que passa a aterrorizar Lucas, principalmente depois que seu cachorro é encontrado morto e os mercados da cidade se recusam a vender para ele qualquer produto.

A justiça absolve Lucas por falta de evidências, mas não a pequena comunidade. Como diz Grethe “crianças não mentem”. Como os adultos poderão lidar com essa evidente contradição dentro da mitologia da infância supostamente idílica e inocente?

Freud e a mitologia da pureza infantil

Para Freud, o infantil não se desfaz no adulto, mas permanece determinando seus desejos, sonhos da vida adulta. O adulto portará para sempre a criança que o constituiu. As pulsões infantis serão submetidas à ação do recalque e dos processos secundários adultos, mas nunca abandonarão seus intentos de retorno ao prazer primordial.

O mito da infância como um paraíso idílico de inocência do qual fomos todos expulsos é uma dessas estratégias de recalques adultas.

A reviravolta dessa mitologia inicia‑se quando Freud descobriu que os relatos de pacientes sobre incidentes ocorridos na infância (a sedução, a cena primitiva ‑ onde a criança teria testemunhado o coito parental, motivo de profundo desgosto e medo; e a cena da castração ‑, onde um adulto a teria punido pela privação física ou moral) jamais tinham acontecidos. As cenas foram fantasiadas. Mais do que mentiras, estas três fantasias irão configurar o próprio campo do Complexo de Édipo. E, mais ainda, indicar a presença de uma vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se acreditava nos meios científicos da época, onde a sexualidade era considerada uma atividade especificamente adulta e voltada para a procriação). Mas uma estranha vida sexual, dominada por fantasias perversas e por nenhuma clareza na definição da identidade sexual.

A partir daí, Freud voltou toda a atenção à infância, porque, cada vez mais, terá certeza de que a sexualidade do adulto tem a ver com certas maneiras que a criança tem de referir‑se a seus primeiros objetos. Chamou de etapas a essas três maneiras: a etapa oral, a anal e a genital ou fálica. Essas maneiras eram como modelos através dos quais a criança progressivamente erogenizava o seu corpo, até atingir, aos cinco anos, o corpo sexuado com papel definido, capaz de atingir o gozo do adulto.

Uma personagem freudiana

O que os moradores da pequena comunidade dinamarquesa não conseguem suportar é a linha de continuidade entre a criança e o adulto. A absolvição de Lucas pela Justiça torna a contradição no interior do mito da superioridade adulta insuportável. Por isso, Lucas deve ser o bode expiatório daquela comunidade, a válvula de escape da tensão reinante.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

9 Comentários

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  1.  
    O fabuloso ator do seriado

     

    O fabuloso ator do seriado Hannibal é um monstro como ator.

              O cara é perfeito.

              Não sei como os diretores e produtores não o procuram pra filmes mais expressivos.

              Ou procuram  e ele não aceita? Não sei.

                O que sei é que o cara é fantástico como ator.

    1. Mads Mikkelsen

      Mads Mikkelsen, que a propósito leva a série Hannibal nas costas. Não gostei da atuação do coprotagonista e achei mal construíto seu personagem, o mesmo vale para o Laurence Fishburne. Mesmo assim, eu que sou chato em avaliar séries de TV, coloco Hannibal no topo.

      Outra atuação atual que vale a pena conferir é a do Matthew McConaughey na ótima série “True Detective”. 

  2. Freud não explica

    A temática do filme é excelente. A análise dela pela psicanálise, conforme o texto, é uma piedosa tentativa de um mito tentar explicar outro!….Darwin neles!…

  3. efeitos de histeria e paranoia

    Wilson Ferreira desenvolve com lucidez os precipitados que incidem sobre o imaginário coletivo quando uma denúncia ou uma acusação sem evidências e provas circula no seio de uma comunidade. No passado, a comunidade se restringia ao pequeno povoado e à vizinhança, hoje a comunidade tem um amplo espectro, inclusive internacional.

    O índice de audiência maior ou menor de um veículo de comunicação impressa, televisa ou em rede social aumenta exponencialmente esse efeito criando um ruído de fundo que pode ter um impacto e um barulho ensurdecedor. Na falta de um contraponto e mesmo do direito a esclarecimentos e resposta, os formadores de opinião pública desta ou daquela corrente de pensamento podem instituir artificialmente um tribunal que esmaga o cidadão diante de uma avalanche de condenações em série.

    Se são os homens em sua maioria que enfrentam essas acusações e denúncias, são as mulheres quando denunciadas que se tornam reféns desta armadilha por estarem situadas no lugar do não-todo, fora da lógica que circula em torno da função fálica. Para as mulheres torna-se muito mais difícil a contestação ou mesmo a oposição porque a elas é dirigida uma dupla condenação: a da acusação sem evidências nem provas e a de sua própria posição, questionada em qualquer época: ser uma mulher. Qualquer movimento que uma mulher venha a fazer em sua própria defesa será mal interpretado e seu julgamento será ainda mais severo. Proponho que também analisemos a situação de uma mulher diante de um tribunal sem rosto em que os juízes não têm identidade. 

     

  4.  
     
    Querer igualar as

     

     

    Querer igualar as crianças aos adultos é dose! Aliás, é isso que os pedófilos defendem, não? Já houve épocas em que as crianças foram consideradas como adultos pequenos, daí vem o termo infantaria. Fábulas como João e Maria, dizem, devem-se ao fato histório de que os pais na Europa, em certas épocas, abandonavam os filhos nas florestas.

     

    Há maldade sim entre as crianças, mas não se pode considerar como a dos adultos. Crianças não têm ideia de que os atos têm consequências. Para elas o mundo é uma novidade. Quando ainda jovens acreditam nas promessas de amor eterno. Aliás, as crianças acreditam nos adultos até as primeiras decepções. Crianças podem ser maldosas, mas não têm malícia, pois a malícia requer tempo, maturidade. E maturidade é algo que as criaças não têm, por isso brincam tranquilas à beira dos precipícios, choram ao ouvir os trovões e são capazes de comer os próprios dejetos se não houver um adulto responsável por perto. 

    Quando penso na fraqueza e na inocência das crianças diante da maldade dos adultos eu me arrepio.

     

  5. Meu pai sempre lutou contra

    Meu pai sempre lutou contra essa idéia de que “criança não mente”.

    Quando ele ouvia essa frase malfadada, respondia com indignação e dizia: “Criança mente até por brincadeira”.

  6. Assessoria ao Diretor do filme

    Para fazer o filme e ser bastante realista nas cenas de destruição da reputação e linchamento moral do professor, acho que o diretor do filme deve ter contratado o pessoal da Revista Veja para assessorá-lo…

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