Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Papai Noel pode matar no filme “Papai Noel das Cavernas”, por Wilson Ferreira

Por Wilson Ferreira

Do Cinegnose

Se Papai Noel é um personagem tão altruísta, por que ele trabalha na clandestinidade? Por que muitas crianças temem a figura de Papai Noel em shoppings e parques? Por que a constante presença de papais-noéis assassinos e aterrorizantes na cinematografia? Essas questões em relação ao mito do Papai Noel são as motivações para o jovem diretor finlandês Jalmari Helander a desconstruir o imaginário desse personagem. Jalmari vai buscar as origens do mito natalino no folclore pagão, anterior à conversão cristã e norte-americana através da publicidade da Coca-Cola: há um imaginário subterrâneo e esquecido em torno do mito do Papai-Noel que insistentemente ressurge na cultura.

Jalmari tem dedicado sua carreira a expor a verdade de que o Papai Noel não é tão bom quanto parece. Após dois curtas premiados sobre o tema (a origem Finlandesa do personagem, antes da sua reconversão pela Coca-Cola no século XX), o diretor nos premia com essa pequena pérola do fantástico: “Rare Exports: a Christmas Tale”, vencedor de festivais do gênero terror e fantástico como Locamo na Suiça e Sitges na Catalunha.

Por que muitas crianças choram de medo na presença dessas figuras que habitam shopping centers e lojas no natal? Por que insistentemente o cinema de terror explora esse lado assustador do personagem (por exemplo: “Elves” – 1989 ou “Santa’s Slay” – 2005)? Há até um nome para esse tipo de  fobia infantil: coulrofobia, o medo que se estende, também, para a presença de palhaços ou “clowns”. 

Embora as origens oficiais ou cristã do Papai-Noel (ou “Santa Claus”) estejam associadas à figura de São Nicolau, um jovem bispo de Myra (Turquia) do século IV DC (conhecido pela generosidade e por dar presentes, tornado-se o santo padroeiro das crianças), há uma origem pagã anterior a sua conversão pela Igreja. Uma origem de moralidade ambígua e cruel, própria das origens dos contos de fadas que acabou sedimentando-se em um imaginário subterrâneo que resiste aos tempos.

Embora a cinematografia e os medos infantis apresentem sintomas da existência desse arquétipo subterrâneo em um personagem tão altruísta, nunca é explicitado o porquê. Jalmari aceitou esse desafio: foi buscar no folclore escandinavo um assustador personagem (quase demoníaco) que não trás presentes para as crianças e todos têm medo dele. O diretor vai desenvolver esse tema através de dois elementos: o confronto entre a moralidade cruel das versões originais dos contos de fadas e a amoralidade do mundo pós-modeno e a revelação da verdade do mito natalino por meio de uma narrativa que explora um simbolismo neo-platônico.

Tudo se passa quando um pacato vilarejo na Finlândia, no meio do nada e da neve, vê o seu sossego ser perturbado por uma escavação arqueológica no monte Kovatunturi, patrocinado pela multinacional norte-americana intitulada Subzero Inc. Estão ali em busca do Papai Noel original que teria existido de fato e estaria ali, num túmulo gelado. Mal sabiam (por terem na cabeça a imagem convencional e americanizada do Papai Noel) que libertariam uma entidade maligna que dizimaria toda a equipe.

“Alguma coisa está enterrada ali”, diz Pietari, menino que junto com seu amigo Jusso, espionam o trabalho das escavações. Pietari (menino inteligente e sensível, contrastando com a vida e habitantes rudes do vilarejo) logo descobre o objetivo daquelas escavações. Pesquisa em seus livros as sombrias lendas do folclore finlandês sobre Santa Claus: uma figura maligna com barbas e chifres que pune crianças desobedientes. Nos livros vê figuras com a entidade cruel chicoteando crianças ou afogando-as em caldeirões com água fervente.

Logo depois, estranhos eventos começam a ocorrer na localidade: crianças desaparecem, junto com fogões e aquecedores. Além disso, são encontradas dezenas de renas mortas mutiladas. Isso ameaça desequilibrar a frágil economia local que depende desses animais para a subsistência.

O natal está próximo e Pietari, junto com seu pai e amigos, se armam e vão ao local das escavações. Estranhamente está abandonado e toda a equipe de arqueólogos desaparecera.

O mistério aumenta quando um estranho homem idoso, nu e com barbas brancas é pego numa armadilha para lobos. Seu olhar é sinistro, nada fala e demonstra ser agressivo, principalmente na presença de Pietari. É mantido preso no matadouro nos fundos da casa de Pietari até o grupo conseguir uma resposta para todos os acontecimentos.

O desfecho é de profunda ironia e humor negro. Descobrem que aquele velho é o ser descoberto nas escavações, descongelado e ressuscitado. Ele é Santa Claus! Tentam negociar sua venda com a Subzero Inc. e ganhar muito dinheiro. Mas, na hora da negociação com o representante norte-americano veem saindo das sombras da noite, dezenas de velhos de barba, nus, com o mesmo olhar sinistro, agressivos e armados de pás e picaretas. Desespero? Não. A perspicácia do protagonista Pietari vê nessas dezenas de Santa Claus resuscitados uma oportunidade empresarial: prendê-los, adestrá-los, treiná-los e exportá-los como papais-noeis para shopping-centers do mundo inteiro. Encaixotados, são exportados sob o selo “Rare Exports”, a empresa que salvará a economia combalida daquela localidade perdida no meio do nada.

Neo-platonismo: a verdade não está lá fora

Dois elementos simbólicos chamam a atenção nessa trama bizarra. Primeiro, o elemento gnóstico neo-platônico que marca o renascimento do platonismo na modernidade. Se na alegoria da caverna de Platão a verdade só pode estar, senão, fora da caverna (no Mundo das Formas Ideais), ao contrário, na modernidade temos uma inversão dessa alegoria: as formas perfeitas (de onde derivam os simulacro ou cópias imperfeitas que formam esse mundo) estão em cavernas, mundos subterrâneos, buracos, porões, vielas ou becos. A verdade não está lá fora (lema da série Cult Arquivo X), mas confinada em formas subterrâneas (sobre esse tema veja links abaixo)

Paradoxalmente, a transcendência somente pode ser buscada mergulhando mais profundamente no mundo material. Isso é Gnosticismo alquímico. Da estória de Alice no País das Maravilhas (a toca do coelho leva ao mundo subterrâneo), passando pelo filme Matrix (o herói Neil encontra o mundo real no subterrâneo de um planeta arrasado) até chegarmos a essa verdadeira alegoria que é o filme “Rare Exports”: a verdadeira origem do mito do bondoso papai-noel, o cruel e maligno Santa Claus, dorme congelado no fundo de uma montanha. É inadvertidamente resuscitado por uma multinacional com evidentes interesses comerciais.

A verdade vindo das profundezas da montanha Kovatunturi vinga-se daqueles que sempre exploraram o mito de Santa Claus, transformando-o no velhinho bondoso que empurra mercadorias chaminés abaixo.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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