Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Quando sorrir soa parecido com gritar em “Helter Skelter”, por Wilson Ferreira

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Imagem: Divulgação

Mais um filme japonês que trabalha com simbologias alquímicas de transmutação pessoal. Adaptado de um mangá homônimo e iconografia inspirada no filme “Beleza Americana”, “Helter Skelter”(Herutâ Sukerutâ, 2012) do diretor e fotografo Mika Ninagawa é um exemplo de como a cultura japonesa conseguiu filtrar a sociedade de consumo ocidental através de valores milenares, combinando tudo isso com cenários futuristas e distópicos: uma top model chamada Lilico, ícone dos adolescentes conectados 24 horas em dispositivos moveis atrás de mexericos de famosos, é uma celebridade de capas de revistas, publicidade e TV, cuja beleza esconde um sinistro segredo – uma clínica de estética com revolucionário método combinando tráfico de órgão e placentas humanas, no qual corpos são reconstruídos como verdadeiros frankenteins. Uma modelo que se transforma numa gueixa pós-moderna, uma máquina de processamento de  desejos de milhões. A beleza leva a juventude para o fundo do poço, onde destruir a si mesmo é a única saída: no caso de Lilico, quando sorri, na verdade está gritando. 

Quando você tem 21 não tem graça
Eles tiram uma foto polaroide e te mandam embora
Nós só te queremos quando você tem 17
Quando você tem 21
Não tem graça
(“Seventeen”, Ladytron)

Para um ocidental, a sociedade japonesa parece um enigma. Além de ter emergido rapidamente como potencia econômica após a derrota na Segunda Guerra Mundial e sobrevivido a destruição traumática de duas cidades por ataques nucleares, conseguiu combinar o capitalismo ocidental com aguerridos valores milenares da antiga ordem patriarcal e monárquica.

O que resultou numa cultura única com seus animes, mangás e toda uma cultura pop exportada para todo o mundo na qual recicla lendas medievais e muitos temas religiosos e gnósticos ocidentais através de cenários futuristas muitas vezes violentos e distópicos – sobre isso clique aqui

Por isso, é sempre interessante ver filmes adaptados de mangas como Helter Skelter (Herutâ Sukerutâ, 2012) do diretor Mika Ninagawa. Baseado no mangá homônimo de Kyoko Okazaki, foi um dos filmes de maior sucesso de bilheteria no cinema japonês em 2012.

É curioso ver o paralelo que o filme faz entre a protagonista top model de capas de revistas, filme publicitários e passarelas (Lilico, ídolo de adolescentes consumistas e 24 horas conectados nas redes sociais) com a vida das gueixas dos tempos antigos, que tinham que fazer tudo para sua “Mãe”, o proprietário da casa.

No filme, agora a “Mãe” é uma empresária que agencia modelos. Mas não é uma empresária qualquer. Dando o toque futurista e distópico, a empresaria tem por trás dela uma sinistra clínica de cirurgias estéticas. Com um revolucionário método de reconstrução corporal (baseado em ações ilegais como, por exemplo, tráfico de órgãos humanos), a “Mãe” simplesmente cria suas próprias modelos usando como matéria-prima meninas feias e gordas – improváveis para uma carreira de modelo.

 

Mas a clínica as reconstrói de forma análoga a verdadeiros frankensteins – porém, belas e fisicamente perfeitas.

Centrada na modelo Lilico e sua estória de ascensão e queda, a narrativa de Helter Skelter mostra a efemeridade do estrelato ao demonstrar que a beleza nada tem a ver com a juventude como martela a sociedade de consumo. 

A beleza é como um câncer que leva as pessoas a se afundar e, no caso de Lilico, literalmente apodrecer: sua vida pessoal se desintegra assim como seu próprio corpo, sempre sujeito a sucessivas cirurgias para combater efeitos colaterais – manchas escuras como se o tecido físico se desintegrasse.

Helter Skelter conta com um primoroso trabalho de fotografia, uma paleta de cores vivas, atenção extrema à cinematografia, vestuário e design geral banhando o filme com imagens de extrema beleza estética. Porém, é também curioso como essa extrema beleza repentinamente tende para limites do grotesco, bizarro e caricato. Sugerindo o paroxismo da própria beleza da top model Lilico: tão bela e doce, mas que consegue chegar na sua vida pessoal aos limites do sadismo, violência e crueldade.

E dentro da paleta de cores da fotografia, o vermelho é a cor predominante em flores, penas, vestidos, sangue etc. Uma iconografia que imediatamente nos faz lembrar de Beleza Americana (1999) fazendo esse humilde blogueiro atentar à simbologia alquímica – principalmente a simbologia de transmutação pessoal de Lilico.

 

O Filme

Um dos pontos fortes do filme é não se render ao horror fácil, sugerido no início pela revelação da clínica de estética, o tráfico de órgãos e placentas humanas e o relato de vítimas fatais das experiências no mundo das modelos. Poderíamos até imaginar algo como Neon Demon (2016) sobre conexões entre rituais ocultistas e morte no universo da Moda – clique aqui.

Ao contrário, Helter Skelter opta em acompanhar a descida lenta ao fundo do poço de Lilico (Erika Sawajiri). As cenas iniciais mostram o circo frenético em volta da protagonista: adolescentes colegiais conectadas em seus dispositivos móveis comentando fotos e notícias sobre a celebridade Lilico – ídolo feminina perfeita, amável, engraçada, a mulher que cada adolescente quer ser e que todo homem gostaria de conquistar.

Porém, debaixo dessa fachada impecável esconde-se uma infinidade de segredos e discrepâncias.

Na verdade, ela está cada vez mais insegura, sem nenhum tempo para um relacionamento permanente, apenas com alguns encontros sexuais esporádicos com um homem com quem tem esperança de ter um relacionamento normal.

Ela obedece permanente os comandos de sua “Mãe”, uma agenciadora corrupta de modelos, Hiroko Tada (Kaori Momoi), além de contar com uma assistente pessoal chamada Hada (Terajima Shinobu).

 

Um futuro sombrio ronda Lilico: seu corpo e beleza é o resultado de experimentos avançados de uma clínica de estética que começa a ser investigada por procuradores da Justiça: além de sonegar impostos e fazer tráfico de órgão humanos, é responsável por diversas mortes entre jovens modelos – o resultado final das cirurgias é a dependência química por drogas fornecidas pela clínica.

Manchas escuras aparecem no corpo de Lilico. Por isso são necessárias intervenções cirúrgicas constantes – Lilico é uma estrela que está queimando muito rápido e que facilmente poderá ser substituído por uma nova modelo encontrada pela “Mãe”: a nova sensação teen Mizuhara Kiko, uma modelo real que interpreta a si mesma.

Beleza e juventude são excludentes

Acossada pela dependência química e a ameaça de um corpo artificial que começa a se esfacelar, Lilico despeja todo seu ódio e ansiedade na assistente Hada, torturando-a de todas as maneiras possíveis – vira uma espécie de brinquedo sexual nas suas mãos.

Lilico aprende da pior maneira possível que a Beleza nada tem a ver com a juventude: tem a ver com uma máquina que processa desejos de multidões. E ela descobre que seu corpo e o próprio Eu foram resultados de expectativas médias dos desejos e fantasias de multidões anônimas. 

 

“Beleza processada” (termo usado a certa altura do filme) e carne processada. O filme faz essa analogia tentadora – o sabor artificialmente condimentado da carne industrializada e a beleza hiper-realizada cirurgicamente da protagonista.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

7 Comentários

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  1. You may be a lover but you ain’t no dancer

    And don’t forget to look out!

    Vou ouvir agora mesmo kelter shelter

    Todas as mulheres se tornam como suas mães. Isso é a tragédia delas. Nenhum homem faz isso. Essa é a tragédia deles

    Mesmo que não concebamos e, portanto não demos à luz, não custa nada trocar de papel com sua mulher e ver se você gostaria de ser tratado por ela, no seu papel, da forma que você a trata não em representação, mas de fato, como o Rei representando seu próprio papel.

    Você gostaria que alguém tratasse sua mãe da forma que você trata sua mulher?

    Você gostaria que suas filhas fossem tratadas como você trata sua amada?

  2. A beleza não se resume apenas à aparência

    É o que eu acho no meu homilde modo de ver a beleza

    Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.

    Penso, logo não vivo. Seria o Oscar Wilde e o Descartes

    1. A tragédia dos homens

      A tragédia dos homens é não tornarem-se como suas mães. Não tornando-se como suas Mães, eles vão continuar oprimindo as mulheres e enquanto houver pelo menos um opressor, todos serão opirmidos.

      Quem conhece a História sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino. O progresso social pode medir-se exatamente pelo estatuto social do belo sexo (as feias incluídas).  Marx, Carta ao Dr. Kugelmann

  3. O pop não aceita ser o segundo.

    No encontro entre duas culturas, a mais consolidada tende a se impor. A milenar cultura japonesa antropofagocitou a pop – mesmo porque a pop não é exatamente uma cultura, no sentido de valores e costumes criados por um povo, de “baixo para cima”, mas sim algo criado nos laboratórios de marketing e imposto pela mídia “de cima para baixo” – criando figuras cuja extravagâncias exageradas e coloridas são verdadeiras paródias. O Ronald Mac Donald é tido como um palhaço pela cultura pop mas no Japão a turma chamaria de “cosplay”. Lembram a figura do Zé Bonitinho.

    Pena que a cultura árabe, outra milenar, não soube se palhacizar, estão tomando tiro e bomba até hoje. Ao Japão, bastaram duas bombas.

    A “cultura” pop pode ser muito agressiva e hostil quando encontra uma outra mais consolidada.

    ***

    Depois da guerra, Marilyn Monroe pintava o cabelo de amarelo? As “japas” pintam de qualquer cor. O topete da dona de casa parece um capacete? Os das “japas” de olhos azuis são.

     

  4. A América Latina os usa preferem destruir, parece inveja.

     “Japão e Alemanha receberam polpudos auxílios das potências capitalistas vitoriosas, preocupadas em evitar o avanço do socialismo pela Europa e pela Ásia”, afirma o historiador Anderson Batista de Melo, da Universidade de Brasília. Entre 1949 e 1952, a Alemanha Ocidental recebeu dos Estados Unidos quase 30 bilhões de dólares em valores atualizados. Boa parte dessa grana fazia parte do Plano Marshall, um programa patrocinado pelos Estados Unidos para reabilitar a economia da Europa após a guerra. Já o Japão recebeu um auxílio de 16 bilhões de dólares. Outro ponto importante na recuperação é que os dois países já tinham ótimos sistemas educacionais, capazes de formar técnicos e cientistas qualificados para ajudar as nações a se reerguerem após a derrota.

    http://mundoestranho.abril.com.br/historia/como-a-alemanha-e-o-japao-se-recuperaram-tao-rapido-depois-da-segunda-guerra/ 

  5. Que significado teria aquela

    Que significado teria aquela cômoda, da primeira foto deste post, replata de imagens de Cristo e Nossas Senhoras? Com uma centralização destacada para Nossa Senhora De Guadalupe (México) , considerada pela Igreja Católica, padroeira da America Latina?

    Ou seria mera decoração, consideradas pelos orientais exótica, da mesma maneira que absorveram costumes e simbolos da cultura americana?

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