Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Semeando vento e colhendo tempestade, por Ana Laura Prates Pacheco

“O menino que descobriu o vento” é um clichê estético que procura deliberadamente levar o espectador acostumado a séries de TV a não se chocar muito com aquela fome estetizada

Semeando vento e colhendo tempestade

por Ana Laura Prates Pacheco

Malawi é um pais da África Oriental, que ficou independente da Inglaterra em 1964. Cerca de 85% de sua população vive no campo, ficando a mercê das constantes inundações e secas sazonais, provocadas, dentre outros elementos, por razões ambientais como o desmatamento. A farinha de milho é a base da alimentação da população e também a base da economia local. Malawi é um dos países mais pobres do mundo: o relatório “A segurança alimentar e a nutrição no mundo” divulgado pela ONU em 2017 coloca esse país como um dos mais vulneráveis, já que o problema da fome é constante, a produção anual nem sempre é suficiente, e os armazéns governamentais que racionam cotas de alimentos frequentemente não conseguem suprir as necessidades da população.  Por sua vez, o “Atlas do agronegócio 2018” alerta para o fato de que a especulação financeira na bolsa de valores é um dos protagonistas do problema da fome no planeta, negociando commodities, e fazendo com que muitos ganhem dinheiro com a fome na África. A fome é um negócio lucrativo!

Nesse contexto tão dramático e urgente, chama atenção a abordagem escolhida pelo diretor (e também ator) inglês, filho de nigerianos, Chiwetel Ejiofor  para seu filme “The Boy Who Harnessed the Wind” que foi traduzido para o português como “O menino que descobriu o vento” – quando talvez a melhor tradução seria domar ou, literalmente, arrear. O filme tem uma bela fotografia, embora bastante clichê, como se estivéssemos assistindo a um documentário do Discovery Chanel com a voz cavernosa do narrador onipresente nos falando sobre os hábitos dos leões na savana. Os atores são belíssimos, apresentando uma atuação realista correta, mas sem nenhuma profundidade. Durante o desenrolar do drama a fome vai se instalando na aldeia e na família, mas as personagens continuam alinhadas e suas roupas étnicas seguem muito limpas e nunca estão amassadas. Um clichê estético que procura deliberadamente levar o espectador acostumado a séries de TV a não se chocar muito com aquela fome estetizada. Não é à toa que se trata de uma produção da Netflix.

O problema ético que o filme apresenta, embora compatível com o estético é, entretanto, bem mais sério e comprometedor. Na medida em que a ameaça da fome vai se aproximando do país, da aldeia e da família do protagonista – um adolescente de uma família que deseja mandar os filhos à universidade graças a uma identificação à linhagem materna, socialmente superior à do pai – a trama do filme vai se desenrolando de modo a enaltecer as saídas individuais em detrimento das coletivas. E, por incrível que pareça, o antagonista do menino, em drama edípico mal disfarçado, é justamente seu pai, filho da terra e das tradições tribais, e dividido pelos ideais de educação da esposa. O pai representa as tradições e costumes, mas também é ele o porta voz da lógica do coletivo e da comunidade. É ele quem mais respeita o Chefe, ancião e liderança local.

No filme chega a se levantar alguma leve referência aos interesses financeiros por trás da fome: quando o pai tenta pedir alguma ajuda na cidade, ele escuta que o “11 de setembro” havia provocado especulações na bolsa que afetara a cotação dos grãos. Do mesmo modo, insinua-se a indiferença do governo em relação à ameaça de fome devido à falta de estocagem suficiente, os problemas climáticos provocados pelo desmatamento e a exploração comercial da terra. Curiosamente, entretanto, o pai e o Chefe que são as únicas personagens que tentam, minimamente, levantar a voz e ensaiar um ato de resistência aos interesses econômicos e de poder que sustentam aquela situação insustentável, são exatamente as personagens fracas, as que sucumbem ou se rendem. O Chefe, ao fazer um discurso de reivindicação e denúncia do governo corrupto, é espancado até desfalecer e, em seguida, falecer. A lição de moral que parece ser extraída daí é: “Não adianta enfrentar os poderosos” – programando a impotência.

O pai, por sua vez, é a única personagem que parece tentar fazer uma leitura política da situação, mas, entretanto, ele é apresentado como o vencido; aquele que, no final, aprende a lição e fica com o rabo entre as pernas. O pior momento do filme, o mais cínico, é aquele em que o pai decide engajar-se em um movimento social de resistência. Desistindo no meio do caminho, quando chega em casa, encontra a família desolada por ter sido saqueada por famintos, as mulheres tendo corrido o risco de serem estupradas. Vejam que bela lição de moral. Vejam o que acontece quando um pai deixa sua família desprotegida para abraçar causas sociais.

Enquanto isso o nosso herói, munido com coragem e a bicicleta do pai, passa na frente de outros famintos, passa uma lábia nos agentes do Estado e, contra tudo e contra todos, consegue levar um saco de grãos para casa. O que importa os tantos outros que morreram pelo caminho?

Mas, como se não bastasse, o garoto é um gênio. O pai não tem dinheiro para pagar a escola, mas como já sabemos, nosso herói tem lábia e usa seu conhecimento sobre as escapadas da irmã com o professor para chantageá-lo. Assim, consegue o privilégio que os demais sem Money, mas menos espertos não têm: frequentar a biblioteca para obter conhecimentos de eletricidade, suficientes para construir um moinho de vento que, gerando energia, consegue fazer funcionar uma bomba de água para irrigar a plantação. O problema do filme, evidentemente, não está propriamente no fato de evidenciar os méritos de um garoto, sua insistência nos estudos e inventividade, mas sim na transformação dessas qualidades em um discurso da meritocracia e da iniciativa individual como a única saída para as mazelas do capitalismo.

Em “O menino que domou o vento”, o cinismo não está no mesmo lugar de “A vida é bela” de Benigni, com seu pai super-herói capaz de livrar o filhinho de todos os males e dores da humanidade. Aqui o pai é vencido por nosso Dom Quixote mirim que, por honra ao mérito, consegue uma bolsa para estudar nos EUA, enquanto a irmã, aquela que fugiu com o professor, tão inteligente quanto, virou uma mãe de família com quatro filhos. Aqui o pai não vale nada, pois não importa de onde se veio, o que importa é vencer.

Não custa lembrar que a energia eólica é uma das mais baratas e eficazes do mundo. E não consigo deixar de imaginar aqueles que ridicularizaram a presidenta Dilma – quando, em discurso, disse em outras palavras, que iria domar o vento – enxugando as lágrimas ao final feliz de “O menino que descobriu o vento”. Feliz para quem tem mérito, é claro, pois já dez o ditado: quem semeia vento, colhe tempestade! A tragédia de Moçambique que o diga.

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

1 Comentário

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  1. A mensagem é sempre a mesma. O macho pode dominar o vento, a fêmea só existe para reproduzir o macho e mante-lo vivo e saudável.
    É clichê.
    É a lógica do império.

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