Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“The Zohar Secret” revela o misticismo no cinema russo atual

O auge do Império Romano coincidiu com o surgimento dos textos mais enigmáticos da humanidade, como o “Zohar” que é a própria mística da Cabala. Se os seu conteúdo fosse revelado poderia provocar a queda do próprio Império. Mas o roubo dos pergaminhos por um legionário romano marcará o destino da História do Ocidente e da vida desse soldado que ficará prisioneiro em uma cilada Tempo-Espaço por sucessivas reencarnações até os tempos atuais. Esse é o filme “The Zohar Secret” (2015), mais uma recente produção russa onde está presente o tema do misticismo gnóstico. Seria o misticismo russo uma forma de reação à invasão do Marketing e da Publicidade na Rússia pós-comunismo? Uma reação contra mais um império, assim como os textos místicos judaicos e gnósticos enfrentaram o Império Romano no passado? Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Cinco anos de arrecadação de recursos por crowndfounding através da plataforma Kickstarter (site de financiamento coletivo que busca apoiar projetos inovadores), envolvendo 1.300 pessoas de 54 países conseguiram levantar algo em torno de 10 milhões de dólares entre dinheiro e equipamentos. 

O resultado foi o filme russo The Zohar Secret (2015), do diretor Vladek Zankovsky, lançado esse ano e ainda exibido de forma restrita em alguns festivais em Toronto, Roma, São Francisco, Roterdam, Moscou, Pequim, Tel Aviv e Odessa.

The Zohar Secret parece ser mais um exemplo da recorrência do cinema russo atual: o intenso misticismo, paradoxalmente após décadas do regime comunista e ateu soviético que foi depois substituído pela invasão do materialismo do marketing e publicidade ocidentais. Filmes como Generation P (de 2011, onde através de viagens místicas e lisérgicas o protagonista tenta se adaptar à Rússia pós-comunismo) e Branded (de 2012, onde o Marketing é visto pelo ponto de vista do misticismo teosófico) seriam dois exemplos dessa recorrência.

The Zohar Secret talvez traga uma pista do porquê dessa recorrência: em um tom entre tragicomédia e ficção científica, o filme coloca a Rússia no meio do choque de séculos entre dois impérios ou culturas – de um lado a civilização ocidental contemporânea que foi o resultado do antigo império romano; e do outro, a da tradição helenística herdeira do mundo clássico, mística e esotérica. O choque entre o império do Ocidente e o império do Oriente, Roma versus Constantinopla, a Igreja Católica versus Igreja Ortodoxa.

Um antigo manuscrito (o Zohar ou “O Livro do Esplendor” que influenciou o misticismo judaico durante séculos) cai nas mãos de Max ( Israel Sasha Demidov) na época do Império Romano no século II DC. Nesse manuscrito está descrito a história da humanidade, desde o início até o final dos tempos. Tentando usar essas informações para seu próprio proveito, Max sem querer aciona um mecanismo que influenciará as suas sucessivas encarnações no futuro. Enquanto não corrigir o erro (devolver o Zoahar a Jerusalém), Max pagará o preço sempre da pior maneira possível até chegar aos tempos atuais.

O diretor Vladek Zankovsky é ambicioso: em duas horas de duração quer colocar o mundo atual em perspectiva como a resultante do egoísmo de um legionário romano. Se tivesse devolvido o Zohar aos seus verdadeiros donos, o mundo seria bem diferente do que é hoje – uma horrível e exagerada caricatura do que foi o antigo Império Romano.

O Filme

The Zohar Secret começa mostrando que o Império Romano alcançou seu ápice de poder no século II DC, alcançando seus domínios da Grã Bretanha até o norte da África. Mais foi precisamente durante esse período que surgiu o mais estranho escrito, cujos autores foram os dez maiores sábios da época. Cada um deles estavam em diferentes níveis de compreensão da realidade. Quando uniram seus conhecimentos, o resultado foi o Zohar. 

Se esses pergaminhos fossem revelados, provocaria a queda do Império Romano e certamente levaria o mundo a um futuro bem diferente do que conhecemos. Então, César ordena a Décima Legião a apoderar-se desses pergaminhos e levá-los para Roma. Mas algo dá errado no caminho de volta – Max quer tirar proveito pessoal das informações do Zohar mas sofre um acidente, perde a memória e é condenado a vagar nas sucessivas encarnações à procura de si mesmo.

É seguido por uma espécie de Alter Ego ou, num sentido junguiano, a sua própria Sombra. Tenta convencê-lo a corrigir o erro e demonstrar que tudo o que ele vive é uma ilusão.

Em uma das melhores sequências do filme, quando quando está vivendo na época da Revolução Comunista de 1917, Max conhece a última invenção: o cinematógrafo. Aterrorizado ao ver o aparelho projetar imagens dele mesmo em vidas passadas em uma tela, a Sombra tenta explicar: a verdade não está na tela, mas na fita cujas imagens são projetadas por uma luz interior. A realidade é uma ilusão projetada em uma tela em frente de nós. A fita são as informações em nossa mente que, no caso de Max, projeta seu sucessivo erro a cada reencarnação – não devolver o Zohar a Jerusalém.

Quanto mais Max repete o mesmo erro a cada encarnação (recusar-se a entregar o manuscrito ou tentar matar a Sombra que tenta esclarecê-lo quanto a ilusão de tudo), mais as mortes se sucedem nas formas mais violentas – na Idade Média, Guerras Napoleônicas, um soldado inglês na África, na Revolução Bolchevique, na I Guerra Mundial etc. Max é arrastado de uma época a outra sem compreender o propósito de tudo, perdendo inclusive a memória da sua própria identidade. 

E assim correrá a História como o desdobramento de um engano: a perpetuação do modelo do Império Romano através de diversos imperialismos que apenas imitam o original do início da Era Cristã. Enquanto o Zohar não for devolvido a Jerusalém, a História não ocorrerá tal como narrado nos manuscritos sagrados.

Reencarnação e repetição

Em The Zohar Secret há um evidente leit motiv gnóstico: a ruptura com o modelo evolucionista das reencarnações como oportunidade de aprendizado. Ao contrário, é uma prisão onde somos condenados ao sono do esquecimento, sempre condenados a recomeçar do zero e repetindo os mesmos erros. Max sabe disso e tenta se agarrar a alguma coisa para tentar levar uma vida normal (casar e ter filhos) e se livrar da maldição que o persegue desde os tempos de legionário romano.

A Sombra de Max tenta demonstrar que tudo é uma ilusão projetada da sua luz interior, como um projetor de cinema. A única forma de Max escapar da sua prisão é fazer o manuscrito (sua “luz interior”) retornar para casa (Jerusalém ou, no caso do Gnosticismo, o Pleroma). Mas sempre Max opta pela ilusão, fazendo tudo recomeçar até o filme conduzir o espectador a um final aberto.

O Zohar e a Cabala

O Zohar ou o “Livro do Esplendor” é a própria mística da Cabala, consistindo numa série de comentários místicos sobre a Torá (os cinco livros de Moisés com os ensinamentos passados por Deus na Revelação do Monte Sinai) contendo os segredos da Criação e do Universo. 

Foi escrito numa época bastante conturbada (séc. II DC) onde Israel penava sobre o jugo romano e tinha que se sujeitar à proibição do estudo da Torá. Preocupados com a perseguição e dispersão dos judeus que resultaria na perda da tradição oral dos ensinamentos da Torá, os sábios transcreveram seu conteúdo no Zohar de uma forma quase indecifrável impedindo que os não iniciados pudessem ter acesso aos segredos.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

7 Comentários

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    1. Ama ou odeia

      Esse é o tipo de filme daqueles que você ama ou odeia. Não há meio termo…

      Assim como o filme “Império dos Sonhos” (2006) de David Lynch, aliás um bom filme para criar o pretexto para acabar com um namoro ou casamento: leve a namorada ou a esposa para assistir ao filme. Depois de três horas o filme termina com final aberto, metalinguístico e sem conclusão… para provocar  uma discussão… ou DR – discussão de relacionamento.

  1. Segredo de polichinelo

    O Zohar trata o universo sob a perspectiva da geometria, da astrologia e das tradições judaicas. Moleza de interpretar, integrar e utilizar.

    Basta ter a chave.

  2. Zohar é uma fraude

    Cinema é ficção, mas cumpre ressaltar aos desavisados que o Zohar (da Cabala) foi escrito por um rabino espanhol na Idade Média. Isto foi comprovado pelo maior estudioso do misticismo judaico, o israelense Gershon Scholem. 

     

     

  3. Zohar é uma fraude

    Cinema é ficção, mas cumpre ressaltar aos desavisados que o Zohar (da Cabala) foi escrito por um rabino espanhol na Idade Média. Isto foi comprovado pelo maior estudioso do misticismo judaico, o israelense Gershon Scholem. 

     

     

    1. Sim, e um casamento, filhos,

      Sim, e um casamento, filhos, uma casa própria, um emprego, uma aposentadoria e a “redentora” são tão inquestionáveis quanto o capitalismo e a propaganda: não há vida fora disso, que dirá fora da Terra, em outros planetas… Ah, não, em outros planetas há, não é possível que sejamos assim tão únicos: somos padrão, iguais a todo mundo, não é mesmo?

  4. Muito bom, Wilson!
    Para todos

    Muito bom, Wilson!

    Para todos os que sentem, intuem, acham, percebem, imaginam ou pensam que as coisas podem ser diferentes hoje, no dia-a-dia das próprias vidas. Ruim para os que gostam de ilusões.

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