Uma crônica do liberal-fascismo, por Rogério Mattos

O filme The Vice mostra como o liberalismo do século XX se organizou como uma forma de controlar os Estados, de nunca mais ficar sob sua tutela, como no antigo império territorial, o modelo britânico do século XIX.

Uma crônica do liberal-fascismo, por Rogério Mattos

O filme The Vice mostra como o liberalismo do século XX se organizou como uma forma de controlar os Estados, de nunca mais ficar sob sua tutela, como no antigo império territorial, o modelo britânico do século XIX. Mostra igualmente como liberalismo e fascismo (o “solo e sangue”) andam sempre juntos, não importa a partir de qual configuração de poder. O filme The Vice, lançado no Brasil no início de 2019, conta a história do vice-presidente de George W. Bush, Dick Cheney. Retrata-o como um jovem caipira e beberrão que não consegue levar adiante sua formação em Yale. Por intervenção de sua esposa, ele consegue terminar os estudos, largar a bebida e se tornar um burocrata a serviço da Casa Branca no tempo da presidência de Richard Nixon. No início de sua carreira, seu superior imediato é Donald Rumsfeld. Dois fatos marcantes envolvem os dois personagens ainda no início da década de 1970. O primeiro é a guerra movida por Nixon contra o Camboja em meio às movimentações do presidente para encurtar ou suprimir a impopular Guerra do Vietnã. O filme retrata o bombardeio daquele lugarejo distante como algo inapropriado, um genocídio de povos rurais que não poderiam de forma alguma interferir nos rumos da política internacional. O neófito Cheney parece não compreender os propósitos dessa ação e é prontamente censurado, ridicularizado, por seu superior, Donald Rumsfeld. O caso Watergate serve para uma facção do Partido Republicano não envolvida diretamente com o escândalo promover uma caça às bruxas aos membros de seu partido que tinham ligações mais próximas com o presidente. Sai o grupo mais próximo a Nixon e, com a presidência de Gerald Ford, Rumsfeld se torna Secretário de Defesa. A partir de então, Dick Cheney começa a galgar postos mais altos na burocracia do Estado (se torna Chefe de Gabinete da Casa Branca) e tenta se lançar candidato ao Congresso. O filme o retrata como alguém inábil com as palavras. Sua mulher, antes responsável pela conclusão de seus estudos (não mais na prestigiosa Yale, mas na Universidade de Wyoming), toma seu lugar nos palanques do estado natal do casal, o conservador Wyoming. Assim, ele consegue ser eleito para o Congresso e depois reeleito por cinco vezes, até ser chamado para ocupar o cargo de Secretário de Defesa de Bush pai, onde dirige a famosa operação Tempestade no Deserto. Com a eleição do democrata Bill Clinton, Cheney se afasta da vida política e se torna CEO da petroleira Halliburton. O interesse geral do filme parece ser mostrar como um burocrata sem grandes talentos, atuando mais nos bastidores da política do que enfrentando publicamente pautas controversas, adquire um poder inaudito devido a essa mesma obscuridade. Tanto que um dos motivos de sua retirada da vida pública foi uma de suas filhas ter assumido sua homossexualidade: sua continuidade na vida pública poderia expor sua família e desacreditar sua história de político conservador. Quando acontece o 11/09, Cheney vê a oportunidade de ter o protagonismo que jamais sonhara. Antes, contudo, Bush filho teve que convencê-lo a assumir a vice-presidência durante as eleições. Sua esposa, praticamente mentora de sua exitosa carreira de político e empresário, é contra. Seu primeiro ato de ousadia é passar por cima dos problemas familiares, tanto com a esposa como com a filha, e aceitar o convite. Aceita-o também por ver em Bush Jr. uma personalidade fraca. O que os problemas pessoais lhe serviram de impedimento para que ele mesmo tivesse sido o candidato republicano e não o também beberrão e caipira Bush (o caso da homossexualidade é retratado como um impedimento maior para a candidatura de um político conservador), não seriam de grande monta no cargo de vice. Com um presidente fraco, poderia montar sua própria equipe à revelia da executivo. Poderia se tornar, assim, o presidente de fato: essa a tese central que o filme busca comprovar. O vice, no caso, é o presidente de fato. Ele passa a cercar toda a equipe montada pelo presidente com homens seus. Colin Powell é vigiado por uma turma completa de neocons, inclusive o hoje notório John Bolton, a quem Jair Bolsonaro fez questão de render continência e que se comprometeu até os limites da irresponsabilidade com a tentativa de golpe na Venezuela. Vendo essa configuração, fica mais fácil de compreender quando Lula e Celso Amorim relatam suas interlocuções com líderes do governo americano. O ex-presidente sempre cita Powell e Bush, e nenhum dos componentes da quadrilha de neocons que fazia parte do governo. Por incrível que pareça, e isso é o que o filme retrata, os dois faziam parte da ala moderada do governo… Bush então fica cercado pela turma de Cheney. Inclusive os relatórios dos serviços de inteligência são interceptados antes de chegar ao presidente e milhares desses informes até hoje estão desaparecidos. Bush não chegou nem a desconfiar de que era sabotado cotidianamente por seu vice. Com o 11/09 e as leis excepcionais que se criaram para combater a ilusão do “terrorismo”, uma lei que estabelecia a “presidência conjunta” é promulgada. O vice-presidente nos EUA tem um cargo ambíguo: ele não representa o executivo por ser tarefa do presidente. Como ele faz parte, pela lei, do Congresso, também nele não pode tomar parte para não interferir com temas do executivo nos trabalhos do poder legislativo. Nada disso mais importa depois do 11/09 e Cheney arroga para si poderes imperiais. Como vice-presidente investido de poderes imperiais e como CEO da Halliburton, trabalha duro na construção do amplo sistema de vigilância que hoje melhor conhecemos, como a NSA, na fabricação dos campos de concentração de Guantánamo e Abu Ghraib, e na legitimação da farsa das armas de destruição em massa que dariam acesso aos americanos às ricas reservas de petróleo do Iraque. Fim do filme, não sem antes ser introduzido com mais pujança a nota melodramática da filha de Cheney que se lança candidata e, para viabilizar sua candidatura, tem que esconder a posição sexual de sua irmã ou mesmo se declarar contra o casamento homossexual. Outro melodrama é quando Cheney, contestado depois do fiasco da invasão do Iraque, quase tem de renunciar, mas escolhe como bode expiatório seu padrinho político, Donald Rumsfield. Fim de festa? Para o filme talvez sim. Ele retrata o fundo conservador que ampara os candidatos republicanos, nisso servindo de metalinguagem explicativa para a eleição de Donald Trump em 2016. Por outro lado, mostra como os interesses corporativos assumiram um poder imperial, ao arrepio da presidência da república, e levaram o país à desmoralização com a Guerra do Iraque. É um bom filme para a classe primária de história contemporânea. Como podemos avançar um pouco mais? No ano de 2018 foi lançado um documentário, hoje legendado em onze idiomas e disponível pela própria produtora no youtube, chamado The Spider’s Web: Britain’s Second Empire. Existe um erro logo no título ao se tentar fazer acreditar que existe um “segundo Império Britânico”. Quem acompanha as publicações da Executive Intelligence Review com calma e já consultou suas edições antigas, a passagem de um império territorial para um imperialismo predominantemente financeiro, ambos sitiados na City de Londres, é algo que não surpreende. Com o processo de descolonização do pós-guerra, o Império Britânico, através da criação de paraísos fiscais, do fim do sistema de câmbio fixo acordado em Bretton Woods (com Nixon, em 1971) e, logo depois, com a provocação da Crise do Petróleo e a criação do sistema de petrodólares (molde para o futuro mercado de commodities), sustenta uma imensa rede de transações financeiras que o faz controlar talvez a maior parte dos fluxos monetários mundo afora. O documentário acima mencionado explica de maneira didática como se deu a passagem do império territorial para o financeiro, porém sem considerar as implicações políticas mais amplas, como no caso da revista fundada por Lyndon LaRouche, a Executive Intelligence Review. Todas as transações ilegais, seja as evasões fiscais, o tráfico de armas e drogas, as especulações com moedas de países estrangeiros ou na derrubada de ações nas bolsas de valores – tudo é acordado e/ou permitido a partir de Londres. A City é um Estado dentro de um Estado, com legislação própria, e não submetida ao voto dos eleitores do país. É uma espécie de Vaticano do mercado financeiro. Foi assim durante o império britânico no modelo antigo e assim é no modelo atual. As ilhas Cayman, Jersey e demais paraísos fiscais servem para encobrir os negócios originados na City. Quando se indaga o Banco da Inglaterra, por exemplo, a instituição responde que as ilhas são independentes e que o Reino Unido não tem nada a ver com o que é feito por lá. Por causa dessa imensa rede de evasão fiscal, uma parte significativa das transações internacionais são feitas através dos circuitos londrinos e de suas filiais, como Wall Street. Investir em indústria e infra-estrutura, por exemplo, traria aos “investidores” o ônus de pagar todas as taxas inerentes ao sistema legal. Opta-se por investir nos mercados futuros, na securitização, nos fundos hedge, etc., do que reverter o fluxo de capitais para o incremento da economia física. O que a história de Dick Cheney tem a ver com essa mutação do Império Britânico? Ela simplesmente retrata que não se precisa mais abrir mercados como os britânicos tentaram com a China no século XIX com as Guerras do Ópio ou se aventurar, em plena Guerra Fria, numa guerra com o Camboja… Não é mais o mercado que vem complementar a necessidade de expansão territorial do Estado. Este é que vira serviçal daquele, ou seja, algo típico do liberalismo do pós-guerra, o ordo ou neoliberalismo. O Estado vem complementar, caso necessário, os desejos dos mercados. A militarização e a busca por territórios coexiste pacificamente com o mais sofisticado dos liberalismos. Com a crise financeira já adiantada durante o 11/09, a exploração da máquina de guerra estatal pelos agentes financeiros e a expansão de seus ativos com a invasão do Iraque (nunca se quis que a guerra fosse “bem-sucedida”, ou seja, que houvesse uma ocupação exitosa e permanente do território), deu-se um pouco mais de lastro para o sistema econômico transatlântico, inteiramente falido. Com a crise de 2008, o dilema da recuperação da economia do chamado “setor avançado” cai em dilema parecido: ela só consegue sobreviver através de taxas negativas de juros e a impressão descontrolada de dinheiro. Existe a ilusão de que isso não traz implicações maiores para a política internacional, já que práticas de estímulo econômico são bem vindas para que a situação social dos países não se torne catastrófica. Não haveria, inclusive, mesmo com a impressão generalizada de dinheiro, nenhum efeito hiperinflacionário. Vamos mostrar algumas consequências da política de “flexibilização quantitativa”: Caso for averiguado o preço dos imóveis em todo o setor transatlântico, a carestia é incontestável. Nos EUA, cresce sem parar o número de sem tetos. No Brasil, mesmo com a persistente recessão econômica, os preços oscilam levemente para baixo, ainda estando muito além do valor médio de antes da subida generalizada de preços. Isso é um efeito claro da sobra de recursos nos bancos de outra forma falidos, e que exportam seus ativos para especular com a moradia em diversos países. Um outro ponto foi a impostura da invenção do gás de xisto como substituto do petróleo. Essa invenção serviu de desculpa para a derrubada generalizada dos preços do barril de petróleo e praticamente foi o clarim que deu o sinal para o início dos golpes contra o Brasil e a Venezuela, além de terem servido como uma afronta direta a Rússia, na época envolta com os problemas na Ucrânia e a expansão descontrolada da OTAN em suas fronteiras. Um terceiro fator foi a criação da própria Primavera Árabe mundo afora. São os Irmãos Koch e tantos outros mega ricos que servem apenas como símbolos de como o capital apátrida e imperial foi usado no financiamento de movimentos contra-insurgentes em inúmeros países. Na ocasião, em reunião das Forças Armadas dos países asiáticos, Rússia, China e diversos outros países consideraram toda revolução colorida como guerra irregular de Estados estrangeiros em seu território. Assim, por diversos meios e com exemplos que podem ser multiplicados quase que ao infinito, o 11/09 serviu de ponto de partida para a reorganização do imperialismo internacional depois que as ilusões liberais do pós-1989 começavam a se desfazer. Reorganização econômica da Rússia, crescimento continuado da China, mobilizações populares em toda a América do Sul contra as políticas neoliberais e a eleição de Hugo Chávez ainda em 1999. O que talvez deva ser retido é que o modelo territorial-militar serve como um dos inúmeros recursos da City. Durante o governo de FHC, por exemplo, sua polícia não foi menos fascista do que seria uma polícia dos sonhos de Moro e Bolsonaro. É só lembrar de El Dorado dos Carajás e da política de guerra às drogas, drogas estas que só existiam por causa da liberalidade dos mercados, dos bancos e dos agentes financeiros adulados, incentivados e protegidos pelo governo brasileiro. Agora há uma inflexão do traficante de drogas para o miliciano. O problema do presidente atual é que ele não consegue ter uma distância minimamente “sanitária” desses elementos, como foi o caso dos economistas da PUC-Rio e toda a claque ultraliberal dos anos 1990 no Brasil. A suposta desordem dos traficantes de drogas agora é disciplinada por elementos oriundos do aparato militar. É uma nova fase, ainda mais cínica, de atuação do mercado financeiro. Bolsonaro não existe sem o neoliberalismo, assim como este se acomoda muito bem àquele. Um dos problemas atuais mais surpreendentes é a crença difusa de que se um liberal de orientação mais tradicional, ao estilo anos 1990, estivesse no poder, não haveria balbúrdia. Quem disse que o picolé de Chuchu é mais “preparado” que Bolsonaro? A suposta vida acadêmica de José Serra traz mais qualificativos para ele ser chefe de Estado? Não deve existir ponto de acomodação com o imperialismo, seja em sua manifestação territorial-militar ou meramente financista. O descontentamento com Bolsonaro não é porque ele “faz balbúrdia” cotidianamente. O Brasil adquiriu uma complexidade e uma consciência de si que dificilmente aventureiros irão conseguir desfazer. Não adianta chamar Mourão, Maia ou ressuscitar o Príncipe da Privataria. O que os mais recentes acontecimentos nos mostram, depois da fase em que ficamos mais na defensiva em plena escalada golpista, é que um estado de exceção permanente se ergue contra o atual estado de exceção. A diferença de agora para a época dourada do segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma é que a violência social nunca esteve tão exposta. Os motivos para termos chegado a tanto, apesar de todo o apoio da população a políticas soberanas, sociais, somente com um pouco mais de tempo e maturidade poderemos obter. Sem a paz necessária não se chegará a esse entendimento não necessário. Espero somente que nesse entretempo nenhuma comoção maior abale nossa sociedade…

RESUMO:

O filme The Vice conta a história da carreira do vice-presidente de George Bush, Dick Cheney, e seu papel depois do 11/09, quando assumiu poderes quase imperiais, bem superiores ao do chefe do executivo. O filme também mostra a passagem de um tipo de guerra que passou a não ter mais sentido, como a do Camboja (forjada em meio à Guerra do Vietnã), para um outro tipo de intervenção militar. Quando o mercado financeiro deixa de ser um complemento ao aparelho de Estado, mas este passa a servir aquele, não há mais motivo para um imperialismo do tipo territorial-militar. O filme mostra como o Império Britânico, após perder suas posses no pós-guerra, com o processo de descolonização, se transformou num império financeiro atuando ainda a partir da mesma City de Londres que, somada a Wall Street e aos paraísos fiscais, correspondem a pouco mais da metade das transações financeiras internacionais. Assim, um CEO de uma empresa multinacional consegue dirigir uma coligação de países para uma maldita guerra, sem o objetivo de controlar o território, não apenas para aumentar seus lucros. No 11/09 o sistema financeiro já dava mostras de estar num processo acelerado de bancarrota. A reativação da máquina de guerra da OTAN e o aumento dos ativos financeiros com a tomada do petróleo no Oriente Médio pode prolongar a agonia econômica do ocidente por mais alguns anos. O filme The Vice, em suma, mostra como o liberalismo do século XX se organizou como uma forma de controlar os Estados, de nunca mais ficar sob sua tutela, como no antigo império territorial, o modelo britânico do século XIX. Mostra igualmente como liberalismo e fascismo (o “solo e sangue”) andam sempre juntos, não importa a partir de qual configuração de poder. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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