O filme “Frances Ha” e releitura da tragédia de Hamlet

O mundo gira desse modo, sem fim e sem finalidade

A vida em uma agitada cidade grande pode representar uma fase boêmia, um projeto profissional ou ainda uma fase de desafios e adaptações sem um objetivo específico, onde cada esquina é uma onda caudalosa de um mar revolto prestes e te engolir, mas que você resiste bravamente na esperança de enxergar a terra firme.

Há muitas variantes nessas proposições, e variantes das variantes: viver – e sobreviver – em uma cidade com tantas pessoas, com tantas vidas cruzadas em espaços comuns mesmo que não nos demos conta um dos outros, é por si só uma fauna de possibilidades.

O pluralismo de eventos paralelos é tamanho que podemos ter todas as possibilidades citadas acima, de acordo com cada indivíduo. Você não sabe se aquela mulher tatuada do metrô é realizada profissionalmente, se aquele engravatado que caminha apressadamente na avenida mais importante da cidade ocupa um cargo o qual quer nos fazer acreditar ou se aquele estudante desleixado já encontrou seu rumo.

Não sabemos, e nem teremos como saber, já que estamos ocupados demais tentado justamente sobreviver com nossos próprios desafios e questionamentos existenciais.

Em Frances Ha (2012), filme escrito e dirigido por Noah Baumbach, a personagem que batiza a película (vivida por Greta Gerwig) é uma dançarina de balé que ainda não encontrou o rumo na carreira artística. Ela começa o primeiro ato da trama dividindo o apartamento com a melhor amiga, Sophie (Mickey Sumner), em uma relação de amizade tão próxima que, a princípio, pode-se crer que se trata de um casal lésbico. Mas é uma amizade que transcende para o amor: as duas, mas principalmente Frances, não se desgrudam. Conheceram-se na faculdade e, desde então, cultivam uma cumplicidade única.

Frances e a amiga Sophie: inseparáveis até o próximo giro da vida.

Mas o mundo gira, e as pessoas precisam deixar para trás o momento atual em nome de algo mais. Nada é para sempre é a máxima que orbita nossos pensamentos: você pode estar em um bom emprego hoje e um melhor amanhã; ou o contrário. Mas a revolução do globo pode ter diferentes velocidades para cada um, mesmo que, em um dado momento do espaço-tempo, duas ou mais pessoas tenham coexistido e se relacionado em um mesmo lugar e época.

A primeira grande mudança de ato no filme – que se divide entre drama e comédia –, nesse sentido, é a óbvia diferença aparente entre as inseparáveis amigas Frances e Sophie: a primeira, mais apegada ao agora, recusa-se a aceitar algumas mudanças que se apresentam diante dela. Como, em nome da moradia com a amiga, do contrato de aluguel e de outras desculpas, ela não aceita morar com o namorado. Recusa aceitando, aceita recuando. A resposta fluida e nada objetiva acaba em por fim ao relacionamento amoroso que já não parecia bem.

E se o mundo não espera a quem fica parado, a resposta da vida veio a galope: Sophie, pouco tempo depois, avisa à amiga Frances que vai se mudar. Ela encontrara uma vaga em um bom apartamento em um endereço onde há muito desejava fixar moradia. Para desgosto da protagonista, Sophie vai morar com outra conhecida em comum, sobre quem ambas não faziam os melhores comentários nos momentos de informalidade das noites regadas a álcool e nicotina.

Frances tenta adaptar-se às mudanças das pessoas ao seu redor, ao mesmo tempo em que lida com seus próprios problemas.

As revoluções desse mundo imaginário da trama não param, e os atos do filme são divididos em cada novo endereço de Frances após separar-se da amiga. Primeiro, aluga um quarto com dois amigos – Lev (Adam Driver) e Benji (Michael Zegen) –, chegando a ter que morar em uma espécie de república por conta dos problemas financeiros.

Frances não vê seu trabalho na companhia de balé decolar, sendo derrubada de cada grande apresentação, enquanto Sophie, com sua capacidade de ler livros apenas para estudo e a possibilidade de casamento com um namorado chato, mas rico e com possibilidades, mostra-se mais atenta aos novos tempos.

E não apenas ela. Aos poucos, todos aqueles que fazem/fizeram parte do pequeno universo temporário de Frances arrumam-se na vida, parecem encontrar o caminho por onde deverão trilhar em uma existência estável. Não que a jovem de 27 anos não tivesse planos, mas eles não acontecem, ao mesmo tempo em que ela não demonstra neurose por causa disso. Ela vive e segue vivendo, ainda que com espasmos de apego ao passado recente que já se foi.

Mais que a trama com ares de comédia de meia dúzia de personagens que tentam se descobrir como seres humanos e seus lugares em um mundo competitivo e desleal para com aqueles que não se encaixam nos padrões corporativos, Frances Ha é uma perfeita paródia da vida real cotidiana e sua luta diária pela re-significação do “ser ou não ser” da tragédia de Hamlet.

A diferença é que, tanto no filme como na vida real, não há a necessidade de vivermos grandes tragédias para sentirmos enormes transformações; basta o já conhecido aglomerado de pequenas delas no cotidiano, como saber se teremos como pagar o próximo aluguel, se o pouco a mais do almoço de hoje não faltará no jantar ou se aquela desejada viagem a Paris deve ser feita agora ou ano que vem.

O fato é que o mundo continua girando, gostemos ou não. Só nos resta acompanhá-lo, mesmo que do nosso próprio jeito.

O título é uma livre adaptação do autor para uma das citações do filósofo francês Jean Baudrillard: “O sistema gira desse modo, sem fim e sem finalidade”.

Redação

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