Valerian, uma obra prima de Luc Besson

O grande teórico Heinrich Wölfflin afirma que “…devemos mencionar, mais uma vez que cada época cria sua medida, e que nem todas as vistas são possíveis em todos os tempos.” (Conceitos Fundamentais da História da Arte, Heinrich Wölfflin, Martins Fontes, São Paulo, 1996, p.  94). Portanto, não é um erro dizer que toda obra de arte é tributária do contexto em que foi produzida e que este contexto fornece a chave para compreender melhor sua beleza e importância.

Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, filme de Luc Besson que entrou em cartaz esta semana, tem como pano de fundo o multiculturalismo. Numa estação espacial que foi crescendo por acréscimos astronautas de nações, culturas e religiões diferentes coexistem pacificamente com seres inteligentes oriundos de diversos outros planetas. Empurrada para fora da órbita terrestre, a imensa cidade espacial segue sendo ampliada e colonizada por outros alienígenas até se transformar num planeta artificial à deriva no espaço.

O multiculturalismo, tão em voga durante a construção da Comunidade Européia, tem sofrido ataques constantes de grupos intolerantes na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, etc…O fenômeno não é recente http://internacional.estadao.com.br/noticias/europa,violencia-contra-estrangeiros-cresce-em-oito-paises-europeus,322974, mas parece ter piorado em virtude do afluxo de refugiados da guerra patrocinada pela CIA na Síria. Tanto isto é verdade que, em diversos países europeus, o desempenho eleitoral dos partidos de direita e extrema direita cresceu significativamente nos últimos dois anos.

O filme Valerian valoriza o multiculturalismo no momento em que a Europa ameaça mergulhar novamente no nacionalismo exacerbado e excludente. A obra de Luc Besson baseada nos quadrinhos de  Pierre Christin (roteiro) e Jean-Claude Mézières (ilustrações), apresenta uma complicação semelhante àquela que afeta o cotidiano europeu. No centro da Cidade dos Mil Planetas cresce um problema. Mas o problema não é aquele apresentado inicialmente aos personagens Valerian e Laureline. Tampouco foi criado pelos invasores que ambos são levados a combater até descobrirem o que realmente ocorreu.

A atualidade do tema tratado por Besson reforça a utilidade do seu filme. Mas não se enganem, esta utilidade vai muito além da superfície. Afinal, em se tratando de arte “…o útil não é belo senão pelo elemento intelectual da finalidade percebida e pelo elemento sensível da satisfação experimentada de antemão. Ela é uma antecipação do agradável por intermédio da percepção de um conjunto de meios bem ordenados para esse fim. Ele satisfaz, portanto, a inteligência e a vontade, e pode também, desde já, satisfazer a sensibilidade. Quando se produz esse triplo resultado, quando o útil nos transporta de antemão para seu termo e para seu fim, a finalidade torna-se beleza.” (A arte do ponto de vista sociológico, Jean-Marie Guyau, Martins Fontes, São Paulo, 2009, p. 91).

Valerian sugere que a verdade e a força da xenofobia, seja ela ou não fictícia, não estão na sua mensagem e sim na sua capacidade de se multiplicar à medida que os racistas cometem novos crimes para encobrir os crimes que já cometeram. As duas únicas coisas que podem nos libertar do ciclo vicioso que a xenofobia cria são a verdade e a compaixão, duas coisas que pertencem a campos distintos e complementares (intelecto e emoção) que foram muito bem trabalhadas no filme.

Luc Besson já fez bons filmes, mas Valerian é acima da média. Uma obra prima digo sem qualquer temor de contestar os jornalistas brasileiros que atacaram duramente o filme do cineasta francês. Em Valerian ele abusou da ficção para instigar os espectadores jovens (e não tão jovens assim) a refletir sobre sua própria realidade. Além de belas imagens e algumas sequencias engraçadas, como aquela em que Laureline e seu parceiro descobrem que  “o prato mais caro do melhor banquete é o que se come cabeça de gente que pensa” (não sei se a homenagem a Raul Seixas foi intencional) o filme é pedagógico e útil.

É impossível dizer com certeza qual foi a intenção do cineasta. Com efeito, “…nunca se pode saber de antemão que efeito o artista pretendia obter. Ele pode até querer introduzir uma nota estrídula, dissonante, se porventura sentir que é o que vai funcionar bem. Como não existem regras para nos dizer quando um quadro ou estátua [ou filme] ficou bom, em geral é impossível explicar com palavras exatamente por que sentimos estar diante de uma grande obra de arte – o que não significa, porém, que uma dada obra seja tão boa quanto aquela outra, ou que não se possam discutir questões de gosto.” (A História da Arte, E.H. Gombrich, editora GEN- LTC, Rio de Janeiro, 2013, p. 32).

O espaço artificialmente criado para possibilitar a coexistência pacífica de seres diferentes (Hannah Arendt) é delicado. Ele pode ser ampliado por acréscimos (como no caso da estação orbital que se transforma num planeta artificial) ou pode ser reduzido e até destruído por exclusões (como está ocorrendo na Europa em virtude da ação dos grupos racistas e partidos de extrema direita).

Nesse sentido, a Cidade das Mil Planetas pode ser considerada uma metáfora do Velho Continente que, apesar dos seus esforços políticos, voltou a ser assolado por problemas que pareciam ter sido superadas após o fim da II Guerra Mundial. É por esta razão que o filme Valerian ficou muito bom, atual e, paradoxalmente, atemporal. A tolerância nunca deveria ficar fora de moda.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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