A incrível incapacidade de construir a terceira via, por Luis Nassif

Em outros tempos, os liberais produziram os estudos de focalização das políticas sociais, algumas propostas meritórias na área de educação, a implementação de planejamento e programas de qualidade em alguns setores. A superficialidade da cobertura jornalística, no entanto, a necessidade de defender diuturnamente o lobby da privatização geral e irrestrita, produziram um eunuco intelectual

Uma das maiores dificuldades da chamada terceira via é a construção de um projeto minimamente racional para o país. Com exceção de Ciro Gomes – que tem ideias fincadas no desenvolvimentismo – a rapa é de uma fragilidade intelectual constrangedora.

Não me refiro aos Lucianos Hucks e Joões Amoedos da vida, mas aos intelectuais que deveriam fornecer esse material conceitual. Até hoje a terceira via vive da ilusão dos economistas do Real, cuja especialização era exclusivamente a troca de moedas para interromper a indexação inflacionária. Nunca conseguiram avançar além da moeda.

Há anos Edmar Bacha abriu mão do pensamento teórico para se tornar um mero propagandista de mercado, assim como a maioria de seus companheiros, com exceção de André Lara Rezende. O último caso é de Pérsio Arida propondo a desconstitucionalização das políticas públicas, para conferir mais agilidade ao Estado. Segundo ele, os princípios seriam mantidos, mas sem o engessamento da Constituição.

O paralelo mecânico entre setor público e privado é de uma superficialidade assustadora, à altura da reforma administrativa de Paulo Guedes.

Em uma empresa privada, os conflitos de interesse são mínimos. Há um objetivo central – a busca da rentabilidade e do crescimento – em torno do qual alinham-se todos os setores. Já o setor público é palco, por excelência, de todos os conflitos distributivistas, tanto o conflito de classes quanto o dos grandes negócios.

A reforma de Paulo Guedes propunha acabar com a estabilidade do servidor público para conferir ao Estado a agilidade do setor privado e acabar com o aparelhamento. Ora, o aparelhamento consiste no governante de plantão lotar o Estado com indicações pessoais. A tal reforma ampliava em dezenas de vezes essa possibilidade. Então como iria acabar com o aparelhamento, ampliando as possibilidades de aparelhamento? Mesmo com esse teste de lógica, acessível a qualquer aluno de primeiro grau, grandes jornais explodiram em editoriais apoiando a reforma, fundando-se exclusivamente nos bordões de Paulo Guedes, reforçando um dos pontos centrais do custo Brasil: uma ignorância acachapante dos veículos de mídia em relação a temas básicos de políticas públicas.

Hoje em dia, o orçamento foi todo desconstitucionalizado. Entregou-se todo o orçamento nas mãos de parlamentares, através das verbas ocultas, o maior caso de suborno coletivo da histórica do país. É o que explica antigos arautos do mercado – como Fernando Collor e Aécio Neves – se posicionarem contrários ao impeachment de Bolsonaro.

Desconstitucionalizar as políticas públicas, portanto, significará submeter todas as prioridades nacionais aos critérios do presidente da Câmara Arthur Lira, da Ministra Damares, do Ministro Milton Ribeiro, do Ministro Marcos Pontes, do imenso zoológico formado à imagem e semelhança do general Eduardo Pazuello, o Ministro que desconstitucionalizou a Saúde.

É evidente que pode-se e deve-se buscar a eficiência no setor público, inclusive valendo-se de ferramentas do setor privado, medindo e avaliando, trabalhando com indicadores corretos, mas sem tratar ambos da mesma maneira.

Tome-se o caso das Organizações Sociais de saúde. A não ser em alguns casos específicos – como a parceria com hospitais sérios -, permitiram a corrupção mais deslavada, valendo-se da falta de controle na compra de insumos, na contratação de funcionários e na oferta de serviços. Para equilibrar as contas, simplesmente reduziam a qualidade do serviço, já que no setor público não existe a mesma competição existente no setor privado.

Em outros tempos, os liberais produziram os estudos de focalização das políticas sociais, algumas propostas meritórias na área de educação, a implementação de planejamento e programas de qualidade em alguns setores. A superficialidade da cobertura jornalística, no entanto, a necessidade de defender diuturnamente o lobby da privatização geral e irrestrita, produziram um eunuco intelectual, incapaz de uma idéia criativa sequer, especialmente quando o foco do discurso voltou-se novamente para a visão estereotipada da economia e dos falsos paralelos entre setor público e privado. São incapazes de identificar setores prioritários de Estado, sob a ótica de segurança nacional; incapazes de identificar áreas de maior volatilidade, que espantam o capital privado. Em qualquer país sério, serviços em setores voláteis são ofertados pelo Estado, conferindo segurança para o setor privado. Por aqui são incapazes de definir modelos que permitam essa complementariedade, porque pensam exclusivamente no negócio da semana seguinte. São incapazes de pensar em programas de investimento permanente, a não ser para a compra de ativos já existentes.

Mais que isso, sua única política é do anti. Mesmo com sua estratégia de esconder prioridades, por questão de tática política, Lula tem uma proposta clara, de inclusão do pobre no orçamento, de mudança nos fundamentos da política econômica. A ultra-direita bolsonarista também tem suas propostas, anacrônicas, atrasadas, mas que refletem o pensamento de seu público.

Já a terceira via só consegue contar com o anti. Se… Bolsonaro for impichado, seu candidato será eleito pelo anti-lulismo. Se Lula cair fora, o campeão Brancaleone será eleito pelo anti-bolsonarismo. Aí, quando seu candidato de maior futuro decide trocar o comando da antiga sexta economia do mundo por um programa de auditório, ficam todos na condição daquele personagem de programas humorísticos: ah, é? Ah, é?

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. São incapazes de propor avaliações sobre privatizações já realizadas ou de discutir seriamente a questão de monopólios privados formados na esteira desse processo ou de apontar soluções para a concentração bancária no país. Estão vinculados aos negócios da banca e não podem exercer o pensamento crítico. A questão central é continuam liberais ou foram capturados pelos interesses do mercado financeiro do qual se tornaram dependentes .

  2. Como pensar em tirar o país do atoleiro em que nos enfiaram sem um programa econômico que concilie crescimento com redistribuição e ataque frontal as desigualdades social, regional e de gênero? Um programa que inclua ao mesmo tempo projetos sociais de envergadura e que dê centralidade a questão ambiental. Tudo isso em meio a uma crise fiscal. O momento que vivemos já deveria ter acendido a luz vermelha entre os principais partidos de oposição ao bolsonarismo, da centro-direita — ou ao menos aqueles que ainda têm algum pudor democrático dentro desse espectro político– à esquerda para que, cada qual a sua maneira, estivessem preparando o que fazer no pós-Bolsonaro com a terra arrasada que será entregue.

  3. Nassif aponta com muita perspicácia a impropriedade da comparação entre setores público e privado: Não existe conflito de interesses no setor privado e a principal tarefa do setor público é conciliar interesses conflitantes.

    Acredito que falta criar um sentimento de repulsa sempre que um empresário se mete a dar conselhos em relação às políticas públicas. A sociedade deveria desprezar estes discursos de empresários. Ao se dedicarem a um interesse privado, criarem as melhores competências para gerir seus negócios, automaticamente se privam da preocupação com o que é público. Se fossem se ocupar do interesse público em suas empresas, aí sim se defrontariam com um enorme conflito de interesses. E teriam um problemão para colocar os negócios de volta aos trilhos. Por mais que os concorrentes também falem de seus magníficos propósitos, um quer comer o outro.

    Por isto, não tiro da cabeça que esta estória de ESG e responsabilidade social das empresas não passa de empulhação. É fazer o consumidor comprar e pagar pelo que não está à venda!

  4. Quando Getúlio Vargas, patrono da fundação ultraliberal, criou o Dasp, o “medalhão machadiano”, mesmo “anatoliano”, ficou sem chão. O favorecimento estremeceu com a perspectiva de alguma racionalidade mínima, evidentemente antípoda do “pai conselheiro” e influente. É de se admirar constrangedoramente a prédica predileta do gado, mugindo adestradamente contra o aparelhamento do Estado pelo PT. Esse lugar do afilhado é o busílis e cerne do patrimonialismo denunciado pelo Faoro, a moeda de troca angariada pelo “estamento burocrático” dos medalhões, assim, posto à verificação de competência pelos meros concursos, um horror para o “ócio” atávico da elite herdeira da nobreza. Esse o filão ou filhão, CQD.

  5. Por falar em “até hoje a terceira via vive da ilusão dos economistas do Real, cuja especialização era exclusivamente a troca de moedas para interromper a indexação inflacionária, sem nunca conseguirem avançar além da moeda”, o Arminio Fraga afirmou há poucos dias:

    “O Brasil tem uma característica fora da curva global. Quase 80% de seus recursos são gastos com folha de pagamento e previdência. Esse número supera em uns 20% o topo dos demais países”.

    Acho que o economista está superestimando os gastos com folha de pagamento e previdência e subestimando os gastos com a dívida pública.

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