A maneira como comentaristas econômicos e políticos televisivos analisam a questão fiscal compõe um dos episódios mais humilhantes do jornalismo brasileiro.
É inacreditável que, nesses tempos em que o jornalismo procura se diferenciar do opinionismo terraplanista das redes sociais, forme-se um discurso único, de tonalidade religiosa, em torno de bordões absolutamente primários.
Há uma correlação entre nível de atividade e gastos públicos abundantemente explorada pela teoria econômica. É uma discussão técnica das mais relevantes.
Há praticamente consenso de que em períodos de economia aquecida, a política fiscal tem que retirar dinheiro para impedir a pressão sobre os preços. E vice-versa. Em períodos de recessão há a necessidade de afrouxamento fiscal para recuperar o nível de atividade. Ou seja, a política fiscal tem que ser anticíclica. Se for pró-cíclica, ou seja, se em períodos de queda da atividade ampliar o corte dos gastos, aprofundará mais ainda a recessão; se for expansiva em períodos de crescimento, poderá pressionar os preços.
O equilíbrio fiscal depende da relação entre receitas e despesas. Caindo o nível de atividade, cai a receita, anulando parcial ou totalmente o corte de gastos. Se se pretende combater o déficit cortando as despesas, cada corte de despesas terá impacto sobre o nível de atividade, produzindo mais recessão e mais queda da receita, criando um moto contínuo.
O mundo civilizado, hoje em dia, discute a nova teoria monetária, o poder da emissão da moeda em períodos recessivos, os riscos das políticas austericidas. A única discussão possível é sobre a intensidade dos gastos à luz da ampla experiência internacional pós-2008.
No entanto, toda a discussão jornalística sobre o tema jamais aborda os fundamentos econômicos da austeridade ou afrouxamento fiscal. Entram argumentos religiosos, tipo bem ou mal, pecado ou virtude. Gastar é mau; economizar é bom. Assim mesmo, com a profundidade de uma dona de casa. E dizem com ar inteligente, um analista soltando uma batatada e se mostrando vitorioso quando o colega de bancada concorda com ele. É humilhante para o jornalismo.
Um dos argumentos é que gasto maior é medida política, porque rende dividendos políticos. Ora, render dividendos políticos é consequência. A discussão é sobre as causas: funciona, não funciona? Condenar a causa porque é bem aceita pela população é de uma mediocridade moralista acachapante. Se for bom para o povo, é ruim.
Outro argumento inacreditável é o bordão de que gastos públicos é nosso dinheiro que é desperdiçado pelo governo. Como se gastos públicos não revertessem para o público, na forma de recursos para saúde, educação ou até recursos diretos através da renda mínima. Ou então, considerar que todo gastos público é desperdício, ao mesmo tempo em que louvam a importância do Sistema Único de Saúde na pandemia. Por acaso passou pela cabeça desses gênios da idiotice que o SUS é financiado com gastos públicos?
Quando o país pagava os mais altos juros do planeta, não se falava em desperdício, mas em necessidade premente de rolar a divida pública, deixando de lado todas as discussões sobre a facilidade do governo em financiar uma dívida em moeda nacional.
Nem se fale do trabalho do Instituto Millenium, querendo provar o peso do Estado montando uma conta em que separa os gastos com pessoal dos gastos com saúde e educação – como se gastos com saúde e educação não fossem predominantemente gastos com pessoal, com agentes de saúde e professores.
O argumento mais recorrente é o que, em jurisdices, se chama de “ad terrorem” – ou seja, espalhar o terror como forma de argumento. Se romper a Lei do Teto, todos os investidores tirarão o dinheiro do país acabando com a economia.
Não há nenhuma sutileza em analisar com profundidade estrutura de gastos, em analisar o paradoxo de se falar em excesso de Estado para um país em que o Estado sequer chega nos limites da periferia, ou em se aprofundar minimamente nas discussões keynesianas sobre a função dos gastos públicos.
Aboliu-se completamente a curiosidade,