Jessé de Souza, a elite nacional e o capital financeiro, por Luís Nassif

Estava lendo, agora, o artigo “No Brasil, desigualdade e corrupção se reforçam mutuamente, diz historiador”, na qual o historiador Thiago Krause se propõe a questionar algumas teses de Jessé de Souza.

Não me vejo habilitado a entrar em disputas entre historiadores. Mas vão aí algumas observações de jornalista financeiro, que conheceu razoavelmente a lógica e a psicologia do mercado, e das pesquisas que fiz para o livro “Os cabeças de planilha”.

O que ficou claro, nas leituras que fiz para o livro, é que havia pouco conhecimento de cientistas sociais e de historiadores econômicos sobre o papel do capitalismo financeiro, dos instrumentos financeiros e do funcionamento de mercados, tanto agora quanto no início da República.

O capitalismo financeiro é um fenômeno que começa a ser estudado apenas nos anos 60, por Ignácio Rangel, muito mais como uma formulação teórica da importância de se criar uma base financeira no país, do que propriamente como estudo da lógica do grande capital financeiro associado, que já existia especialmente na praça do Rio. Depois, surge nos estudos clássicos de Maria da Conceição Tavares.

Mas, durante o regime militar, essa influência é minimizada, especialmente a partir do governo Ernesto Geisel, e seu viés intervencionista e industrialista.

A partir da redemocratização, no entanto, o modelo de atuação política do capital financeiro se desenvolve em tudo similar à influência que começa no Império e vai até 1930.

1.     O capital financeiro coopta economistas (chamados de financistas na época) que surgem com o discurso da atuação isenta e científica, supostamente de acordo com o que de mais moderno o pensamento econômico mundial desenvolveu, os magos capazes de tirar o Brasil do atraso.

2.     Os partidos aliados recebem o discurso, como plataforma de campanha, e os fundos, como financiamento.

3.     No poder, assumem o compromisso de permitir os livres fluxos de capital e de criar o ambiente mais favorável para sua reprodução.

Celso Furtado trata da questão do metalismo x papelismo – isto é, da saída do padrão ouro para a emissão monetária, perpetrada por Ruy Barbosa – dentro das discussões teóricas sobre o tema. Considerava Ruy Barbosa um desenvolvimentista, por prover de capital de giro o incipiente movimento industrial do início da República. Não se dá conta – nem havia clareza na época sobre mecanismos de alavancagem dos mercados – dos jogos de interesse que diferenciavam o grande capital internacionalizado dos demais setores produtivos. E das grandes manobras de Ruy que acabam por jogar o país na crise financeira do Encilhamento e o fizeram sair corrido do Brasil, mas sócio de várias empresas do Conselheiro Mayrink, o seu Daniel Dantas.

Havia pouca informação sobre os movimentos de capitais no período e, especialmente, sobre as novas formas de alavancagem financeira, que criavam bolhas especulativas sucessivas. Passava despercebido as alianças do capital financeiro local – os filhos do café e do comércio negreiro – com os capitais internacionais, sempre de forma subordinada, como descobre Mauá.

No entanto, essa aliança, da sociedade subordinada entre capital financeiro nacional e internacional, está presente em vários momentos da história do Brasil. Foram manobras financeiras de Ruy Barbosa que levaram ao Encilhamento, assim como foram as manobras de André Lara Rezende e seus colegas que promoveram a apreciação do câmbio no pós-Real, uma combinação com juros elevados que travou por dez anos o crescimento brasileiro.

A pasmaceira que se seguiu, de Campos Salles até Washington Luiz, e do governo FHC até a maxidesvalorização de 1999, foi sustentada pela parceria do capital financeiro com mídia. Antes, era o capital escravo que se reciclava, se branqueava na praça de Londres e passava a utilizar o Estado nacional para trabalhos de arbitragem, conquistando taxas de retorno inéditas, no ambiente financeiro da época, nas concessões ferroviárias e nos empréstimos públicos. Depois, no pós-Real, ganhando simplesmente contratando empréstimos internacionais e aplicando em títulos públicos, a taxas várias vezes superior.

Em ambos os casos, o livre fluxo de capitais travou por completo o processo de industrialização, criou uma dívida pública enorme. A substituição de importações só se consolida com o controle de capitais e enquanto o país consegue driblar as restrições externas. Nos anos 30, é a moratória – e não apenas o projeto de Vargas – que leva o país a proibir o livre fluxo de capitais, e os capitais a descerem à terra para financiar a industrialização.

Com o Real, o capital financeiro assume definitivamente o comando. O ponto simbólico de partida foi o lançamento da biografia de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.

A partir daí o capital financeiro passa a ter protagonismo cada vez maior, engordado pela continuidade das políticas monetária e cambial nos governos FHC, Lula e Dilma. Esse duplo torniquete, em câmbio e juros, deixou a indústria à mercê de importações cada vez mais intensivas e dos ganhos de tesouraria. Os ganhos financeiros tornaram-se mais relevantes que os operacionais, a não ser no curto período de explosão do mercado de consumo interno. E, aí, a bandeira da industrialização se perde e as campanhas contra Lula explicitam de maneira inédita o ranço preconceituoso, cujas raízes Jessé vai buscar na herança escravagista.

É esse ambiente que serve de cenário para as análises de Jessé de Souza. Não é fácil ser intérprete em tempo real do que ocorre, embora no final do século 19 Manuel Bonfim tenha logrado esse feito. Mas são as interpretações que melhor se ajustam a esse quadro de desmonte nacional.

O mais interessante é poder apreciar, em tempo real, e com o farol ligado por Jessé, os problemas decorrentes da falta de revisão crítica dos primeiros intérpretes, na generalização dos vícios brasileiros, sobrepondo-se às diferenças entre as diversas classes sociais.

Quando Luís Roberto Barroso apresenta como exemplo de malandragem a empregada do amigo que não quer o registro para acumular o Bolsa Família, ou quando Sérgio Moro e Deltan Dallagnol passam a pontificar sobre a herança dos degredados portugueses, fica nítido como as interpretações passadas vão ecoando através dos tempos, como ectoplasmas que nunca são exorcizados, e repetidas por leigos, na mesa de um bar ou no palanque do Supremo, devidamente absorvidos pelo senso comum.

É questão de tempo para que outros pensadores ajudem a desbravar as sendas abertas por Jessé.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. Esta imagem da existência de um capitalismo financeiro……

    Esta imagem da existência de um capitalismo financeiro é uma das saídas de quem acredita em capitalismo, mas não quer acreditar no que é LUTA DE CLASSES.

     

  2. Faz muito tempo que me

    Faz muito tempo que me perguntava se as interpretações do Brasil pelos assim chamados “clássicos” tinha todo o mérito que a Academia a eles devota. Pra mim sempre faltava alguma coisa nessas explicações. Algo mais estrutural. Algumas interpretações de autores considerados “vacas sagradas” eu via como picaretagem pura. Lhe é atribuido mérito que não tem.

    Não consegui ler todos os livros do Jesse de Souza, mas dos que li mostra que todo o trabalho de interpretação do Brasil tem que ser refeito. Claro, não é perfeito. Mas considero pertinentes e esclarecedoras as críticas que ele faz a todos que o antecederam. Alguém tinha que ter coragem pra questionar certos “nomes” que, no fundo, desprezo. Ele teve e tem esse imenso mérito.

    1. academia

      a academia foi fundada, e é mantida, para escrever a história oficial.

      como exemplo: o brasileiro cordial do B de Holanda não passa de uma caricatura do gaúcho do Sarmiento.

      estudando a formação política do Sarmiento, e sua história (não a oficial), podemos entender as cabeças locais. e, estamos falando da Guerra Guaçú.

  3. Nassif, quanto do faturamento

    Nassif, quanto do faturamento da Globo se origina em operações financeiras?

    A grande aliança se dá entre o capital especulativo e os grupos de mídia, que manipulam a percepção dos agentes para fundamentar jogadas de curto prazo. Por isso seus principais adversários são os estruturalistas(desenvolvimentistas), que tomam decisões com base em expectativas de longo prazo(a Petrobrás, núcleo do projeto estruturalista brasileiro, é sempre o principal alvo de ataques midiáticos).

    A mesma lógica que manipula os mercados para jogadas de curto prazo é aplicada na manipulação da opinião pública com fins eleitorais. No exterior, até os algorítmos utilizados nas finanças estão sendo incorporados por aqueles que buscam manipular os o eleitorado espalhando notícias.

    Basta notar o “jornalismo de curto prazo”, que se alimenta de revelações bombásticas, que nunca se comprovam, em jogada conjunta entre os grande grupos de mídia, que repetem exaustivamente essas notícias e prontamente as abandonam em seguida, apenas para embarcar em uma nova informação bombástica.

    Essa lógica do efeito manada nas finanças está intimamente ligada a formação das expectativas do homem médio, cuja visão não alcança o longo prazo(no caso brasileiro, a classe média, já que o povo parece ter uma ideia de seus interesses).

    A classe média é a grande consumidora desse “jornalismo de curto prazo”, que sobrevive de escândalo em escândalo, sem conformar uma narrativa uniforme e coerente. 

     

     

    1. https://jornalggn.com.br/comment/reply/1400941/1153097

       Olha, quando você disse “essa lógica de curto prazo…” que envenena (palavra minha) a sociedade, não pude deixar de escrever-lhes para falar que essa “lógica” também se aplica à previsão do tempo. Impressionante a justeza disso. Nesses tempos de seca e baixa nos reservatórios das hidrelétricas, a “previsão do tempo”, principalmente na Globo chega a ser hilária como suas chuvas fictícias quinzenais que nunca chegam. 

      (Em 2015, quando a ordem era criar um clima ruím para Dilma, era o contrário)

      Bem, pelo menos, pelo visto, estamos abrindo a caixa preta desses safados.

      1. Previsões fictícias
        Caro Nassif, entro na discussão aproveitando a sua sugestão para outros pensadores ajudarem a desbravar as sendas abertas por Jessé Souza, cujo trabalho admiro bastante. Entre os comentários, há também diversas alusões à mídia brasileira, esta sim a principal vilã do atual momento brasileiro. Penso que é contra isso que temos que nos defender, dos escusos interesses externos sobre o Brasil disfarçados pela mídia brasileira, cujo poder de dominação atingiu no Brasil níveis estratosféricos, fenômeno provavelmente sem igual em outros países. Nisso eu concordo totalmente com o Jessé, de que enquanto não combatermos a grande mídia e retirar-lhe parte do poder de dominação, nossos esforços serão infrutíferos.
        O trabalho dele é de fato um grande farol, e serve para iluminar o que eu escrevi há poucos dias aqui no GGN, https://jornalggn.com.br/documento/vamos-falar-de-nossa-historia-cultural-por-carlos-ernest-dias de que as freqüentes interferências no campo da cultura e da educação promovidas por golpes políticos (vide acordos MEC-USAID nos anos 60) são responsáveis pela existência dessa descontinuidade reflexiva que nos impede de avançar e de construir uma narrativa progressista que abranja os tempos passados e presentes, em seus aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais da vida brasileira. A cada geração a reflexão parece começar do zero (Roberto Schwarz), e as narrativas deixadas a posteriori sobre os mesmos fatos históricos, políticos, econômicos e culturais estão quase sempre a serviço de uma determinada orientação ideológica conveniente com os discursos e interesses das elites econômicas e governamentais. Ou seja, a construção da história brasileira é totalmente interessada no sentido de perpetuar os absurdos privilégios que as elites mantêm para si, para isso se valendo de livros como Casa Grande e Senzala e muitos outros discursos ideológicos semelhantes.
        Não dá também, penso eu, em continuar argumentando sobre lava-jato sem considerar as forças e interesses externos que a promovem, como faz o Thiago Krause. Essa história de combate á corrupção é muito velha e sempre serviu para desestabilizar o país em favor dos interesses estrangeiros. Finalizando, compartilho da direção do comentário da leitora Ana Resende sobre a previsão do tempo na Globo, e tenho informações que comprovam que elas estão de fato sendo “fictícias” e falseadas no sentido de enganar a população sobre o que realmente está por trás da seca e da baixa nos reservatórios das hidrelétricas brasileiras

  4. Heranças

    Ha resistências em certos meios às ideias levantadas por Jessé de Souza e, embora va aparecer ainda muita gente querendo desconstruir suas analises, acho que no futuro proximo muitos historiadores, sociologos e politologos vão se apoiar nos trabalhos de Jessé de Souza, em que pese alguns “erros” la ou acola, para analisar o Brasil de Lula, Dilma, Lava Jato, golpe, ativismo judicial, etc, heranças de um Pais que não resolveu seus grandes males.

  5. Gilberto Freire antecedeu Jessé

    Concordo plenamente com as análieses de Jessé, mas, para sermos honestos, não podemos deixar de analisar a obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire. Neste livro, muita das estratégias de domininação e da ideologia que a justifica são demonstrados com fartura de exemplos.

    Mas a obra de Freire foi escrita em uma época muito mais conservadora que os dias de hoje e, para não ser descartada de imediato, o autor descreveu a tirania do senhor de escravos em termos muito benevolentes. Essa concessão passou a ser vista por muitos grupos de esquerda como a aceitação dos abusos. Em função disso, Casa Grande e Senzala tornou-se uma grande obra esquecida e sem defensores. De um lado a obra é criticada pelos opressores, que sentem-se incomodados com as denúncias e, de outro, a obra é criticada pelos mais puristas, que veem nela uma tentativa de justificar o crime contra a humanidade que foi a escravidão.

    1. A Tolice da Inteligência Brasileira
      Se ler o livro do Jessé A Tolice da Inteligência Brasileira verá que ele já estudou e criticou o Gilberto Freire assim como os outros luminares brasucas. Recomendo muito a leitura deste livro, e junto a este livro, para mim as leituras obrigatórias para iniciar a entender e discutir este momento “interessante” que vivemos são estes outro dois livros:
      A História Militar do Brasil do Nelson Werneck e
      O Capital do século XXI do Piketty.

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