Os ventos voam em direção a Beijing: relações Brasil-Argentina diante da China

Até 2020, o Brasil foi o principal parceiro comercial da Argentina – forte consumidora de manufaturas brasileiras –, seguido pelos Estados Unidos e China, alternando entre 2º e 3º lugar. Contudo, no contexto da pandemia de COVID-19 a China ultrapassou o Brasil e tornou-se a 1ª parceira comercial argentina.

Foto Casa Rosada

do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil

Os ventos voam em direção a Beijing: relações Brasil-Argentina diante da China

por  Filipe Porto, Luiz Gustavo Silva, Vanessa Pitondo, Vitor Gabriel da Silva e Ana Tereza Marra (Foto: Casa Rosada)

Diante da intensidade das relações da China com a Argentina, da deterioração das relações políticas entre Brasil e Argentina e do refluxo da liderança regional brasileira na América do Sul, os ventos sul-americanos estão mudando de direção, de Brasília para Beijing, com a China tornando-se uma alternativa ao vazio deixado pelo Brasil.

Até 2020, o Brasil foi o principal parceiro comercial da Argentina – forte consumidora de manufaturas brasileiras –, seguido pelos Estados Unidos e China, alternando entre 2º e 3º lugar. Contudo, no contexto da pandemia de COVID-19 a China ultrapassou o Brasil e tornou-se a 1ª parceira comercial argentina.

Da perspectiva da inserção internacional brasileira, essa mudança alimentou preocupações, por um lado, reforçou a China como concorrente do Brasil pelo mercado de manufaturados argentino. De outro, essa transformação ocorreu em um momento em que o Brasil está com menos condições políticas de exercer um papel construtivo que possa mitigar danos, por pelo menos 3 razões: i) as relações bilaterais com a Argentina estão deterioradas, devido ao antagonismo do governo Bolsonaro ao de Alberto Fernández; ii) o Brasil abandonou qualquer perspectiva de exercer papel como líder a fim de impulsionar a autonomia da região, e; iii) a China aprofundou sua incursão econômica e política na América do Sul, aparecendo como uma importante alternativa aos países, impulsionada não só pelo peso e força que possui na economia mundial, mas pelo vazio deixado pelo Brasil na região.

Assim questionamos, o Brasil perdeu a Argentina para a China? Há uma mudança de eixo na região de Brasília para Pequim?

Relações China-Argentina diante do refluxo do Brasil

 A Argentina possui recursos naturais importantes para o crescimento chinês, incluindo minerais estratégicos, como o lítio, ferro e cobre. Da mesma forma, a região dos pampas é um importante fornecedor de soja, carne suína e outros insumos agrícolas, e o país oferece ainda um mercado substancial de classe média para a compra de bens e serviços chineses de alto valor agregado, e acesso aos mercados ainda maiores por meio de sua participação no Mercosul.

O potencial argentino para a China elevou a relação bilateral para uma Parceria Estratégica em 2004, seguida de uma elevação do relacionamento para uma parceria estratégica abrangente durante a visita do presidente chinês Xi Jinping ao país, em 2014. Para o Brasil, a intensificação das relações China-Argentina sinalizou vulnerabilidades, em meio às dificuldades de avanço no MERCOSUL e ao refluxo de liberalização comercial, o país perdeu mercado de produtos manufaturados para a China na Argentina, o que traz consequências para o Brasil, uma vez que essa categoria de bens alimenta cadeias produtivas mais complexas que geram mais empregos, influenciam positivamente na criação de novas tecnologias e são vendidos com valores agregados bastante superiores a produtos primários.  

Para além do comércio, a cooperação da China com a Argentina também se diversificou para novos campos. Desde 2009, seguido de várias renovações, China e Argentina mantêm contrato de swap cambial, o qual o país sul-americano pode sacar em caso de necessidade financeira (foi o que ocorreu, por exemplo, em 2015, quando o volume de recursos emprestado pela China chegou a 40% das reservas argentinas). Os investimentos chineses no país também cresceram nessa última década. O refluxo na internacionalização das empresas brasileiras, principalmente de engenharia e construção duramente atingidas pela Lava Jato, e o desmonte de políticas de incentivo do BNDES, que financiavam exportações e investimentos na região, inclusive em infraestrutura, deixaram mais espaço para o gigante asiático, que assumiu no início dos anos 2010 obras de infraestrutura descontinuadas por empresas brasileiras. Em 2020, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China não concederam nenhum empréstimo aos governos da América Latina, mas em contrapartida ampliaram seus investimentos em setores chaves: infraestrutura e matérias-primas.

O recente estabelecimento de um acordo de transportes ilustra o aumento de investimentos chineses diretos na Argentina, foi firmado com representantes das companhias China Railway Construction Corporation (CRCC), China Machinery Engineering Corporation (CMEC) e Yutong, com o objetivo de revitalizar e criar novas linhas de ferrovias no interior do território argentino, investindo cerca de US $4,7 bilhões. Além da negociação que está em curso do acordo de investimento de US $3,7 bilhões na indústria argentina de suínos, com a construção de granjas inteligentes para a exportação de 822 mil toneladas de carne suína.

Outro destaque de cooperação foi no setor espacial, em que o território platino conta com um observatório espacial chinês para missões à Lua, espaço que é operado majoritariamente por militares chineses, que está instalado na província argentina de Neuquén, na Patagônia, uma região estratégica para o rastreamento de objetos no espaço e forte contribuinte para o projeto espacial chinês. O projeto foi recebido com muita cautela pelos EUA, já que a estrutura é capaz de captar sinais de satélites norte-americanos e de outros países no espaço, mas constitui-se em um importante ativo da relação bilateral sino-argentina.

Assim, percebe-se que a China tem se apresentado a Argentina como importante parceira econômica, expandido os canais de cooperação, diante do vazio deixado pelo Brasil, fato que tem se aprofundado no governo Bolsonaro. Muitos comentários e farpas foram trocadas pelos presidentes Jair Bolsonaro e o argentino Alberto Fernández: antes, quase não dialogaram após a vitória de Fernández em 2019, no último mês de maio Bolsonaro afirmou que não haveria mais carne na Argentina por conta da proibição da exportação do produto, o clima hostil aumentou ainda mais após a pandemia de Covid-19 e até o papel do exército argentino foi alvo de tweet ofensivo do presidente brasileiro.

Por seu passo, o governo de Fernández tem reconhecido cada vez mais o importante apoio oferecido pela China ao país para o desenvolvimento de projetos produtivos, bem como de infraestrutura, como os de água e saneamento, habitação, conectividade, energias renováveis ​​e transportes. A política externa de Bolsonaro, que antagonizou com o presidente argentino e, de outro lado, criou tensões nas relações com a China, não colocou o Brasil em posição política confortável para lidar com o aumento da presença da China na região e com o afastamento do parceiro platino.

No geral, Bolsonaro se apresenta claramente como opositor aos líderes que não mantenham ideologias de direita (como por exemplo os governos da Argentina, Venezuela e recentemente, declarou “Perdemos agora o Peru” quando Pedro Castillo liderava a contagem de votos), outrossim, observa-se uma explícita subordinação aos EUA em termos regionais, fazendo com que o país se oponha a iniciativas que demonstrem sua possível liderança. Assim sendo, perde-se cada vez mais a capacidade de barganha no cenário internacional e também em mercados nos países vizinhos.

Discordâncias

 Na falta de uma estratégia comum, Brasil e Argentina tem divergido sobre como lidar com a presença chinesa na região, sendo que a Argentina tem se mostrado mais aberta a adotar proposições do gigante asiático, o que ocorre no caso do 5G e da Belt and Road Initiative (BRI). No Brasil, a questão da instalação da rede 5G pela empresa chinesa Huawei, que detém a melhor relação custo/benefício, vem acompanhada de opiniões conflitantes do governo federal. Aliado e pressionado pelo governo dos EUA a tomar medidas restritivas contra a empresa chinesa, o governo brasileiro tomou a possibilidade de banir a empresa dos leilões e até mesmo se dirigiu de forma ofensiva ao governo chinês, desgastando assim a relação diplomática Brasil-China. Somente diante da grande dependência econômica que o Brasil tem para com a China e o forte avanço da pandemia do Covid-19 que, pela pressão de grupos econômicos e políticos interessados nas relações sino-brasileiras, a decisão foi revista.

Em contradição ao caso brasileiro, a Argentina seguiu outro caminho. O debate sobre a participação da empresa chinesa na instalação da rede 5G no país está mais pacificado. Em 2020, o Ministério das Relações Exteriores da Argentina entrou em contato com empresários chineses para discutir sobre os investimentos no país e os impactos da tecnologia 5G no mundo, colocando-se a previsão da incorporação do 5G, com apoio da Huawei, já para 2022.

Outro ponto de debate da relação com a China é a adesão à Nova Rota da Seda. O Brasil já se consolidou como o principal parceiro comercial de Pequim na região e também como maior destino de investimentos chineses na América Latina, dinâmica que uma negativa à Iniciativa do Cinturão e Rota dificilmente mudaria. Ademais, o alinhamento do governo Bolsonaro com Trump nos últimos dois anos atuou como limitação para que o país aventasse participar da iniciativa.

Em contraponto ao Brasil, na Argentina a adesão à Rota da Seda ganha cada vez mais força. Devido à difícil situação macroeconômica em que se encontra, o país  tem enfrentado muitas dificuldades de acesso a linhas internacionais de crédito. Espera-se que a entrada na BRI possa alavancar recursos e investimentos chineses no país.  A China tem, inclusive, negociado com a Argentina uma linha de crédito para financiar a importação de equipamentos chineses para a modernização e desenvolvimento do parque industrial argentino.

Consequências

 Deve-se mencionar que a intensificação das relações China-Argentina contribuiu para a diminuição da complementaridade econômica do Brasil com a Argentina, ao deslocar as exportações brasileiras de manufaturados e investimentos brasileiros, bem como por consequência dificultou o avanço da integração regional. Ao lado da expansão chinesa, o vazio deixado pela ausência de liderança do Brasil tem contribuído para que a região não consiga desenvolver uma estratégia coletiva para lidar com a ascensão chinesa. O papel do Brasil nos diversos acordos e blocos realizados na região é de considerável importância, tendo em vista o tamanho de sua população, da sua economia, de seu território, etc, assim, se se ausenta de coordenar mecanismos de concertação e integração, há diminuição da capacidade regional para lidar com atores externos e garantir autonomia.

Lembra-se que juntos, Argentina e Brasil representam cerca de 63% do território da América do Sul, bem como 61% do PIB da região. Como economias mais avançadas, foram pilares para a construção de iniciativas de integração regional. A deterioração da relação entre ambos também dificulta uma reação a China. Como consequência os ventos sul-americanos têm soprado em direção a Beijing.

Publicado originalmente em 28 de junho de 2021 no Opera Mundi.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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