Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Congresso terceirizado não vale um biscoito Mabel, por Urariano Mota

 

Sobre o projeto de lei 4330/2004, da traiçoeira terceirização, votado pela Câmara do Deputados, pretendo falar das notícias na imprensa  à luz da  minha própria experiência.  

Antes, uma breve informação sobre o original autor do projeto. A grande ideia foi do ex-deputado federal Sandro Mabel, de Goiás, assim chamado, Mabel, em razão da sua grande indústria de biscoitos Mabel, uma das maiores de toda América Latina. Falam que a Mabel já foi terceirizada para um grupo norte-americano, mas o esperto deputado continua à frente de empresas ligadas ao grupo. Se guarda alguma relação com o nome, fica o aviso: atenção, trabalhadores e sindicalistas, comer Mabel faz mal à saúde e ao futuro dos seus filhos.   

Mas vamos adiante.

Até antes da traição da última noite de quarta-feira, que continua pelo menos até quando o PL se transforme em lei, o Tribunal Superior do Trabalho determinava que a terceirização no Brasil só devia ser dirigida a atividades-meio. Esse entendimento servia de base para decisões de juízes da área trabalhista, e mencionava que poderiam ser contratados os serviços de vigilância, conservação e limpeza, bem como “serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador”, “desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta” do funcionário terceirizado com a empresa contratante.

Bom, já antes dessa última traição do congresso, na prática não era bem assim. Falo com a experiência de quem trabalhou na administração de contratos e licitação de empresa estatal. Se assim era o espírito da lei, assim não era o seu cotidiano. O que isso quer dizer? Nas relações de favor que se criaram no Brasil, que passa pela colonização portuguesa e o trabalho escravo no lar do senhor, contratados de empresas terceirizadas passam por indicação de gerentes de empresas contratantes. Mas entendam, tudo  conforme a carne da lei. Nada no papel. Tudo no aceno, no piscar de olhos, no aperto de mão, em cima da lei de costumes. Nada que venha a ser provado por documentos materiais. Mas agora, o que era uma transgressão às normas éticas, passou a ser um projeto de lei. É o cinismo que campeia sob votação no congresso. A sacanagem é legal. O que isso quer dizer?     

O G1, da Globo, publica:

“Críticos apontam que ao direcionar a contribuição ao sindicato da atividade terceirizada e não da empresa contratante, o trabalhador terceirizado será atrelado a sindicatos com menor representatividade e com menor poder de negociação.

No setor bancário, por exemplo, os terceirizados não serão representados pelo Sindicato dos Bancários, que teriam mais poder de negociação. Portanto, o terceirizado que trabalha num banco, por exemplo, não usufruiria dos direitos conquistados pela classe bancária”. 

Mas há muito, os empregados que possuíam contrato de trabalho como terceirizados perderam os benefícios conquistados pela categoria, como, por exemplo, piso salarial maior, plano de saúde, vale-alimentação, participação nos lucros. Explicação: eles não eram da categoria, argumentava-se. Entendam. Por exemplo, recepcionistas em um banco estatal não eram bancárias. Eram prestadoras de serviços. Digitadores de documentos e cheques não eram bancários. Eram trabalhadores privados especializados na arte de ler códigos eletrônicos. Mas agora os próprios caixas e trabalhadores da retaguarda de um banco podem sair também da categoria de bancários. Vão se misturar aos sem categoria de sempre. 

As notícias mencionam de passagem que a representatividade sindical passa a ser do sindicato da empresa contratada e não da contratante, na terceirização no serviço público. Insisto: há muito era assim nas atividades-meio, ou seja, nas atividades que não eram o objeto de trabalho da contratante. Quero dizer: há muito os trabalhadores sem força organizativa haviam sido forçados e a emigrar para falsas caracterizações da sua atividade. Mas isso era legal, digamos. Era um bom negócio para as estatais, que em tese deviam servir ao interesse publico, e contratavam pelo menor preço. Uma legalidade de socialismo difamado, ou melhor, de exploração socializada. Eles, os terceirizados de atividades-meio, eram os outros – os párias do serviço público.     

Algumas notícias, em um cantinho de boxe, falam também que muitas vezes essas empresas terceirizadas têm capital social muito baixo, com poucos bens no nome da empresa ou dos sócios, e o trabalhador acaba enfrentando um longo périplo na Justiça para reaver seus direitos, dizem os representantes dos sindicatos. Mas já no cantinho dessa nota da imprensa passa-se ligeiro, feito gato sobre as brasas, pelo “capital social muito baixo” das contratadas. Não, amigos, muitas vezes as terceirizadas não têm capital muito baixo. Mais de uma vez, elas têm capital nenhum. A empresa é a documentação contida em uma pasta, que o licitante carrega, ao lado de sorrisos e promessas nada republicanas. Isso quer dizer: o capital de contratadas é no máximo a capital, onde moram. O capital é a capital. Mais papéis, papéis e muita esperteza. Mas tudo dentro da lei. Documentos de certidões negativas, capitais declarados em registros de cartórios, objeto social do contrato que é só lábia, palavras e palavras.

Mas continuemos ao redor do mundo fantasioso da notícia. Na Folha de São Paulo:

“Para as empresas que contam com a desoneração da folha, a retenção sugerida pelo governo era de 3,5% sobre o faturamento (média das duas novas alíquotas que ainda não foram aprovadas pelo Congresso). O relator decidiu que o recolhimento será pelas alíquotas atuais de 1% e 2%.

Em acordo com o governo, o projeto prevê que a contratante recolherá ainda 1,5% de IR, 1% de CSLL, 0,65% de PIS/Pasep e 3% de Cofins. O FGTS ficou de fora e será recolhido pela contratada….”.

As dúvidas são respondidas neste passo:

“Ao fim de um contrato, que direitos o trabalhador terceirizado terá?

Todos os direitos previstos na CLT, como multa do fundo de garantia, pagamento proporcional de férias, 13º salário e outros benefícios devidos, que devem ser pagos pela terceirizadora”.

Noto que há, na maioria das notícias, uma evidente confusão entre contratadora e contratada. Uma deve ser a agente, a contratadora – a que determina o contrato. Outra, a paciente, a contratada, que sofre a ação do contratante. Assim como há confusão também entre terceirizadora, o agente da ação, e terceirizada, a paciente. Mas fiquemos, por exemplo, no pagamento do FGTS, que a redação confusa deixou nas costas da empresa que terceiriza, quando é encargo da terceirizada. Pois bem, mesmo assim, isso não é verdade. Na prática. O funcionário responsável pela fiscalização do recolhimento dos encargos trabalhistas não tem condições de acompanhar TODA a folha do contratado, na integridade dos salários da contratada. A contratada pode apresentar recolhimentos de obrigações do contrato em outra empresa, sem rastros. Mais: se a contratada recolhe sobre os salários de todos os trabalhadores, mas se não o faz no valor dos salários pagos, sabe Deus. E o Diabo.

Em resumo, teremos pelo projeto de lei, que podemos chamar PL Mabel, escolas sem professores, bancos sem bancários, hospitais sem funcionários, serviço público sem servidores, jornalismo sem jornalistas, e até mesmo funcionários sem função, substituídos pela carne nova terceirizada, que vem com sangue para a máquina do lucro mais cínico, que invadiu de vez a esfera pública. O que faz sentido. A Lei Mabel vem de um congresso terceirizado, que não representa a categoria do povo trabalhador, pois sofreu a terceirização das empresas Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Sandro Mabel e companhia. O Barão de Itararé numa das suas reflexões falava que “O homem que se vende, recebe sempre mais do que vale. “ . O que vale dizer, enfim: esse congresso não vale nem um biscoito. Nem uma rosquinha Mabel.

*Na Rádio Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/262017-333

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “Ao fim de um contrato, que

    “Ao fim de um contrato, que direitos o trabalhador terceirizado terá?”:

    Com a terceirizacao de Cunha?

    So ao esquartejamento.

  2. Esse monstrengo criado pelo

    Esse monstrengo criado pelo Mabel que o criou, claro, em causa própria já que é industrial, vagava há 20 anos pelas sombras da Câmara e poderia vagar por pelo menos mais cem anos ou mais se não fosse o horripilante Cunha o colocar na berlinda. Portanto, o Cunha é o grande culpado por ressucitar o monstrengo do confeiteiro de rosquinhas. Naquela Câmara só o Silvio Costa tem a coragem de enfrentar o Imperador Cunha, ninguém do governo tem coragem nem de apartear para  apoiar o Silvio. Lamentável, portanto fica aqui todo meu apoio ao Silvio Costa.

  3. Esse biscoito Mabel é tão

    Esse biscoito Mabel é tão ruim que uma vez compramos aqui em casa e ninguém quis comer, nem o Nico. Nem pra boicotar essa porcaria serve.

  4. Esta forma de terceirização já existe…

    Já existe em muitas áreas. Na música e arte onde trabalho praticamente não existe mais emprego. Só mesmo músicos de orquestras e escolas ainda se regem pela CLT, no resto como na música popular cada músico acompanhante tem de formar uma PJ (micro empresa ou MEI) para receber os cachês dos shows que faz com grandes artistas. E mesmo que o cara toque por 20 anos em todos os shows do mesmo artista não existe nenhum vínculo empregatício entre eles. Se o contratante quiser é só demitir, e o músico sai sem direito a nada. 

    A disseminação indiscrimida de práticas como essa conduziram a clase artística a uma penúria nunca vista antes. E a lei da selva impera com disputas sangrentas entre grandes artistas pela disputa de migalhas…

    Será que é isso mesmo que queremos para o conjunto de TODOS OS TRABALHARES do Brasil? Liberar a lei da selva na exploração da mão de obra em nome de uma modernidade suspeita??

  5. O jogo de Sandro Mabel com

    O jogo de Sandro Mabel com Cachoeira

    https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-jogo-de-sandro-mabel-com-cachoeirahttps://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-jogo-de-sandro-mabel-com-cachoeira

    Levantamento mostra que goiano possui a 5ª maior fortuna entre os parlamentares, R$ 70 milhões; dossiê encaminhado pela AGU à CPMI do Cachoeira denuncia susposto esquema de favorecimento em licitações de obras em rodovias federais de Goiás; deputado diz que não comenta documento apócrifo

    http://www.brasil247.com/pt/247/goias247/78364/Entre-os-mais-ricos-do-Congresso-Sandro-Mabel-enfrenta-den%C3%BAncia-Mabel-dossi%C3%AA-Cachoeira-ricos-Congresso.htm

    Sandro Mabel (GO) Ação Penal 352 – Crime contra a ordem tributária ***** Inquérito 2090 – Crime contra as relações de consumo, mercadoria imprópria Inquérito 2153 – Crime contra a saúde pública, corrupção de substância alimentícia ***** A ação penal está sobrestada até a quitação das dívidas com a Receita Federal, informa a página do STF na internet.

  6. Dizem que Eduardo Cunha

    Dizem que Eduardo Cunha cumpre o que promete. A quem ele prometeu desencavar um projeto de lei que estava parado há 10 anos? A quem interessa isso com toda essa urgência? Aos planos de saúde talvez? A esses ele prometeu mundos e fundos, inclusive resolver o problema de multas que os planos têm levado. A saúde está caminhando rapidamente pra uma terceirização de forma inclemente.  Tem mais coisa nesse lodo do que imaginávamos. 

  7. A precariedade institucionalizada

    Excelente, Urariano! Vou repassar; quiça bate em alguma sinapse dos zumbis do foco unico: anticorrupção.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador