O desequilíbrio entre a sociedade brasileira e a representação legislativa

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Um balanço feito pela equipe de reportagem da Rede Brasil Atual denota o desequilíbrio entre a composição da sociedade brasileira e a representação legislativa. Enquanto metade da nossa população é composta por mulheres, uma minoria do gênero conseguiu ser eleita para atuar no Congresso a partir de 2015. Negros e a população com até dois salários mínimos formam uma massa considerável no Brasil – no segundo caso, quase 60% dos ocupados declaram ter essa renda -, mas na Câmara apenas 20% se declararam dessa raça, e metade dos eleitos para a próxima legislatura tem patrimônio milionário. Enquanto isso, a bancada sindical é reduzida, ao passo em que a de ruralistas saiu fortalecida das urnas. 

No Congresso Nacional, retrato da sociedade brasileira é desfocado

Por Vitor Nuzzi, na Rede Brasil Atual

Com poucos jovens, negros e mulheres – e nenhum índio –, Legislativo brasileiro não reflete composição da sociedade brasileira

O Congresso que saiu das urnas em 5 de outubro – e será empossado em 1º de fevereiro – terá, como já se demonstrou, perfil mais conservador que o atual. Uma das bancadas que cresceram, e se mostra organizada, é a dos ruralistas, com 153 deputados. A sindical caiu de 90 para 51, enquanto a empresarial tem quatro vezes mais (217). Mas o desequilíbrio não está apenas na correlação de forças. A diferença entre a composição da sociedade brasileira e sua representação legislativa é gritante em todos os recortes de comparação entre os eleitos e dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Um caso é o da representação feminina: elas são 51% da população, mas o número de deputadas eleitas soma 10% do total, com ligeiro crescimento em relação à atual legislatura (9%).

Pretos e pardos, conforme a classificação do IBGE, somavam 53% da população em 2013. Dos eleitos, apenas 20% se declararam negros. Quase metade da nova Câmara terá parlamentares com patrimônio superior a R$ 1 milhão. Pela Pnad, 60% dos ocupados têm renda de até dois salários mínimos. Por escolaridade, aproximadamente 80% dos eleitos têm nível superior, bem acima dos 37% dos brasileiros com 11 anos ou mais de instrução.

“Mais importante do que ter um Congresso mais conservador é uma situação que repete e agrava os problemas de representação do Congresso atual”, diz o analista legislativo Sylvio Costa, criador do site Congresso em Foco. Além da sub-representação de mulheres e negros, ele destaca a ausência de índios. A propósito, esta é uma regra e não exceção. “Juruna foi o primeiro e último”, lembra. Em toda a história do Parlamento brasileiro, apenas o xavante Mario Juruna tornou-se deputado federal, eleito em 1982 pelo PDT.

No Dia do Índio, em 19 de abril de 1983, ele discursou: “Juruna é o primeiro índio que está representando brasileiro, porque o governo brasileiro não dá oportunidade pra índio, porque ele quer continuar tutelar toda vida índio. E nós não somos tutelados”. Juruna foi ousado e criticou o governo militar. O último dos generais- -presidentes, João Figueiredo, chegou a pedir a sua cabeça. Juruna, que não foi reeleito, morreu em 2002. Para Sylvio Costa, é preciso repensar a suposição de que o Congresso reflete a sociedade.

É a reflexão que faz também o deputado federal reeleito Daniel de Almeida (PCdoB-BA), chamando atenção ainda para a pouca presença de jovens. “Não é o perfil da sociedade brasileira. Essa eleição foi, mais do que outras, influenciada pelo poder econômico, pelo discurso desprovido de conteúdo. Uma reforma política é absolutamente inadiável”, afirma.

Para Sylvio Costa, se o Congresso é muito conservador e está distante da composição real da sociedade brasileira, aumenta a responsabilidade do governo. O Executivo pauta o Congresso”, observa, destacando a disputa, entre os parlamentares, pelos recursos orçamentários. “O governo tem poder imenso. Vai depender da capacidade de articulação.”

O analista destaca uma “perda razoável”, pelo menos 40 cadeiras, de deputados mais identificados com a esquerda. “Isso significa um espaço menor para defesa de temas ligados aos direitos humanos, criminalização da homofobia, por exemplo.” Segundo ele, a maior consequência da eleição desse novo Congresso é um “cenário potencialmente de maior tensão”. Outro ponto é o da fragmentação. O número de partidos representados no Parlamento aumentou de 22 para 28. Na Câmara, Costa lembra que as cinco maiores legendas elegeram 263 deputados, enquanto as demais têm 250.

Ruralistas

Entre as bancadas organizadas, destaca- se a ruralista, que crescerá de 142 para 153 deputados na próxima legislatura. Tem objetivos bem definidos, como a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que aguarda parecer em comissão especial. A PEC transfere do Executivo para o Congresso a prerrogativa de aprovar demarcação de terras indígenas. Esta é uma prioridade declarada da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que durante a campanha eleitoral entregou carta aos principais presidenciáveis enfatizando sua reivindicação.

Em seminário no final do ano passado, a presidenta da entidade, a senadora reeleita Kátia Abreu (PMDB-TO), foi explícita: “As demarcações indígenas não se concentram mais nas florestas; hoje entram nas áreas produtivas, que são transformadas em terras indígenas”. A instalação da comissão especial foi uma vitória da bancada ruralista. Recentemente, a senadora também se reelegeu para a presidência da CNA. Outro líder ruralista, Ronaldo Caiado (DEM-GO) foi eleito e passará da Câmara para o Senado.

Apontado como outra liderança dessa bancada, o deputado catarinense Valdir Colatto (PMDB) também cita, em entrevista no mês passado à TV Record em seu estado, a questão indígena como central, além dos quilombolas. “Estamos perdendo grandes investimentos. Há uma grande insegurança jurídica no campo”, afirmou o parlamentar, além de defender mudanças na legislação trabalhista rural.

Na bancada empresarial, sai Sandro Mabel (PMDB-GO), que não se candidatou, após cinco mandatos consecutivos na Câmara. Ele é o autor do Projeto de Lei 4.330, sobre terceirização, combatido pelas centrais sindicais e cotado para voltar à pauta ainda este ano. Um dos líderes do grupo é Laércio Oliveira (SD-SE), defensor do projeto. O deputado é dirigente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

O analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), acredita que Dilma Rousseff sofrerá pressão maior dos empresários, a quem precisará fazer sinalizações, em um cenário de provável ajuste de contas públicas – seletivo, para preservar programas sociais e investimentos – e sem tanto a oferecer do ponto de vista de incentivos. E isso deverá exigir maior atenção dos trabalhadores, com uma bancada menor. “No (início do) mandato passado, a presidenta teve de acalmar dois segmentos, a classe média e a imprensa. Agora, precisa resgatar a confiança do mercado.”

Cartolas

Menos numerosa, mas ativa, a chamada bancada da bola se mobiliza pela aprovação do PL 5.201, sobre renegociação de dívidas dos clubes de futebol. Na prática, é a bancada da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), diz o jornalista José Cruz, especializado em legislação do esporte. Ele lembra que os principais membros do grupo foram reeleitos (casos de Vicente Cândido, do PT-SP, e de Jovair Arantes, PTB-GO, vice-presidente do Atlético Goianiense), e ganharam reforços.

A CBF segue sendo uma instituição poderosa, lembra Cruz. “No tempo de Ricardo Teixeira ele chegou a colocar o ex-ministro do TCU Marcos Vilaça como chefe de delegação para um amistoso no exterior”, exemplifica. “Vamos saber sobre quem é quem, dos novatos, principalmente, na votação do PL da dívida dos clubes, que dificilmente ocorrerá este ano.”

O jornalista lamenta que ainda seja difícil ver um cartola, ou ex-dirigente, trabalhando pela moralização da gestão esportiva. “O dia em que o esporte em geral e o futebol em particular forem administrados dentro de normas oficiais e rígidas, os trambiques vão desaparecer, como as transações de jogadores, a contratação por salários mínimos e pagamentos através do direito de imagem, de patrocinadores, de empresas fantasmas, enfim.” E critica o Estado por ser “omisso” na fiscalização.

E qual será o peso do ex-jogador e deputado Romário (PSB-RJ), agora eleito senador? “Ele fugiu à regra do tratamento elitista ‘Vossa Excelência’. Campeão mundial, se comportou com autoridade. Ganhou boa cobertura da mídia. Deverá moderar o tom no Senado, pois a casa é outra, menor, de mais diálogo. E como ele tem 4,6 milhões de votos nas costas, isso significa respeito político. Deverá ser muito assediado pelos pares”, comenta Cruz.

Agenda

O movimento sindical já começa a se rearticular sob a ótica de que a disputa no Parlamento será difícil. “É verdade que o Brasil elegeu uma presidenta progressista, mas elegeu também um Congresso extremamente conservador. Vamos disputar agenda. Mesmo na coalizão da presidenta Dilma, há muitos conservadores”, diz o presidente da CUT, Vagner Freitas, que defende uma “agenda de mobilização” para pressionar Executivo e Legislativo. “Serão quatro anos de caravanas a Brasília.” Ele dá como exemplo a reivindicação de redução da jornada de trabalho. “Se quisermos diminuir a jornada, temos de forçar para que o projeto passe. Não vai ser por uma canetada da presidenta.”

Logo após a eleição, o deputado reeleito Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex- -presidente da CUT, líder da bancada do PT na Câmara, defendeu maior mobilização em contraponto ao avanço ao conservadorismo no Congresso. “Agora será fundamental que a sociedade ocupe Brasília em todos os momentos”, disse à Rádio Brasil Atual.

De volta ao Congresso, agora como senador, Paulo Rocha (PT-PA) considera essa “renovação conservadora” no Parlamento proveniente de dois fatores: “A força do poder econômico e uma certa degradação da politica. É preciso fazer algumas reformas importantes, como a política, que vai ao encontro do sentimento do povo, de combate à corrupção, que aparece mais hoje porque há mais funcionamento das instituições.” Ex-sindicalista e ex-deputado, ele acredita que no Senado estará “a grande trincheira” de oposição ao governo. O senador eleito acredita na força do diálogo para que temas importantes, como reforma tributária e a discussão sobre o papel da mídia na democracia, ganhem repercussão na sociedade organizada.

Rocha é o autor original da proposta de emenda à Constituição (PEC) de combate ao trabalho escravo, em 1995, assim como de um projeto que resultou em lei que alterou o Código Penal, caracterizando aquela prática como crime. Ele entende que retroceder em questões relativas ao tema seria uma espécie de golpe parlamentar. “Esses avanços nós já conquistamos. Temos de ficar atentos e denunciar.” Em relação à proposta sobre a demarcação de terras indígenas, ele observa que o governo e Dilma simplesmente cumprem a Constituição. O artigo 231 confere à União a responsabilidade de “demarcá- las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A parada será dura. Dois dias depois da eleição, a Câmara, com apoio de aliados, derrubou decreto do governo sobre a política de participação social. E o PMDB deve lançar Eduardo Cunha (RJ) – não exatamente um amigo do Executivo – como candidato à presidência da Casa.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

8 Comentários

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  1. O diagnóstico é esse mesmo.

    O diagnóstico é esse mesmo. Sim, mas e as causas? Os porquês? Ora, a resposta está na ponta da língua de qualquer cidadão brasileiro medianamente informado; não precisa ser cientista político: um sistema político anacrônico e anti-democrático.

    No que tange ao processo eleitoral, nossa democracia evolui de 1988 para cá apenas no aspecto quantitativo. Entretanto, no aspecto qualitativo, no sentido da ampliação da representvidade, piorou. A distorção começa quando se dá um peso excessivo para os cargos do Executivo em contrapartida ao desprezo para os do Legislativo. 

    Mas quem se hablita a concorrer tendo pela frente custos que só os abonados ou beneficiários de esquemas podem suportar? Fala-se na casa de milhões os gastos de um candidato a deputado federal que queira ser competitivo. Claro que nesse processo a tendência é o Congresso se distanciar ainda mais do homem comum, do povo.

    Aqui no interior é comum um parlamentar ser eleito e releito por anos a fio sem nunca pisar no município. Simplesmente distribui dinheiro para o prefeito e vereadores pelos milhares de votos dos cidadãos, futuros orfãos da representatividade.

    Reforma poítica, para “ontem”, é a solução. Mudança que inclua o financiamento público de campanha.

  2. Nassif
    Como disse o

    Nassif

    Como disse o Berzoini:

    Contra um congresso conservador, pressão popular neles….

    Tá na hora dos petistas ( não só o Lula ) colocarem os “bonés” na cabeça….  

  3. Todas as forças vivas pelo

    Todas as forças vivas pelo bem da Nação tiveram que se empenhar completamente para evitar a vitória de Aécio Neves e de tudo o que ele representava. na eleição presencial. Não foi possível mover ao mesmo tempo uma campanha por melhorar o voto aos cargos repressentativos, infelizmente. Mas taolve, ao se ver os novos mandatos individulmente, o prejuízo talvez não seja tão grande assim, De todo modo, dificilmente teremos uma legislação como a atual, que já pode ser considerada como a pior do século.

  4. enquanto não houver

    enquanto não houver financiamento público de campanha,

    impedindo a participação hegemonica dos plutocratas,

    o congresso terá

    essa cara conservadora.

    desnecessário dizer que a mídia deve ser regulamentada.

    ou pelo menos que siga a constituição, pois muitos do congresso

    são dons dos meios de comunicação,

    o que é impedido pela constituição.

    mais um absurdo, mais umparadoxo desse sistema

    político legislativo arcaico.

  5. As últimas eleições demonstraram que existe militância…

    As últimas eleições demonstraram que existe militância de esquerda disposta a bancar a presidenta Dilma. O que falta é o PT, Dilma e o Lula tomar a dianteira das lutas populares. A reforma política deve ser encampada de vez pelo PT e por todas as forças progressistas. A inércia a qual o povo brasileiro foi colocado só favorece esse Congresso Promiscuo.

    É preciso que cada diretório dos partidos de esquerda saiam às ruas colhendo assinaturas, promovendo debates, organizando eventos e oficinas. Articulem com os movimentos sociais mais atos e intervenções. Ou seja, ocupar o vazio que existe hoje nas ruas de cada cidade com o povo em movimento.

    Em suma, o que está faltando é uma direção clara. E a Dilma e o PT tem a oportunidade histórica para isso.

    1. E eles querem isso?

      E eles querem isso? Militância é bom na eleição. Fora dela, afinal, quem vota, todos os dias e a toda hora, é a Globo, é a CBN, é o UOL, e todos os seus financiadores. É a bolsa de valores, são as agências de risco. Os brasileiros, cidadãos comuns, só sabemos (quando sabemos e do pouco que nos é comunicado) após as decisões tomadas.  

      1. Não sei se eles querem, no entanto a atual conjuntura…

        Não sei se eles querem, no entanto a atual conjuntura impõe a necessidade do enfrentamento para além dos muros do Congresso Nacional.

        O processo eleitoral é um período em que o nível de consciência política dos brasileiros aflora e possibilita amplos debates. Tendo em vista a quantidade de pessoas que saíram às ruas em defesa da reeleição de Dilma, é evidente que existe uma oportunidade única para o PT e a própria Dilma manter essas pessoas engajadas.

        O problema é: será que o PT vai saber aproveitar essa oportunidade para resgatar sua militância que foi esquecida? Caso o partido e a própria presidenta não utilizem essa força latente das ruas, serão engolidos pelo conservadorismo hegemônico no Congresso Nacional.

        A burocratização interna do PT engessou sua militância. Ocorre que, as lideranças do partido precisam acordar para essa realidade, sob pena de terminar o ciclo histórico do PT com o fim do governo Dilma. E isso é uma questão de sobrevivência. 

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