Daniel A. Dourado
Médico e advogado sanitarista, professor universitário e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Doutorando e mestre pela Faculdade de Medicina da USP, especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP, graduado em direito pela USP e em medicina pela UnB. Atua na área de Saúde Pública, com foco em Direito Sanitário, Políticas de Saúde, Direito Regulatório e Saúde Digital. Cofundador do centro de pesquisa independente HealthTech & Society.
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Análise do Relatório da Imperial College sobre Covid-19 no Brasil, por Daniel Dourado

Estudo delimita análise por estado, e é direto: grande parcela da população brasileira ainda está suscetível a adquirir a doença

Foto: Reprodução
Análise do Relatório da Imperial College sobre Covid-19 no Brasil
por Daniel Dourado*

 

Acaba de ser divulgado um relatório do Centro de Análise Global de Doenças Infecciosas da Imperial College London sobre a Covid-19 no Brasil. Antes de mais nada, vale ressaltar que se trata de centro colaborador para modelagem de doenças infecciosas da Organização Mundial da Saúde e que a instituição britânica é uma das principais universidades do mundo. Portanto, críticas são válidas e devem ser dirigidas ao método ou aos dados utilizados e não como muitas críticas infundadas que têm circulado no Brasil tentando desqualificar os pesquisadores ou a instituição.

Esse relatório concentra-se no Brasil pelo fato de o país ser o epicentro da Covid-19 na América Latina. Na apresentação do estudo, os autores esclarecem o uso de três medidas epidemiológicas para analisar a epidemia no Brasil: número de infecções, número de óbitos e número de reprodução. Para melhorar a precisão do modelo, foram estudados os 16 estados com mais de 50 óbitos reportados oficialmente.

E aqui vai um primeiro ponto bastante positivo do estudo: delimitar a análise por estado dá uma dimensão mais próxima do fenômeno epidemiológico do que analisar o país como um todo, sobretudo considerando a dimensão e a heterogeneidade do Brasil, em todos os sentidos.

O número de reprodução é o indicador da disseminação do vírus na população. Quando uma doença infecciosa atinge uma população, ela se espalha numa velocidade que depende de características do agente infeccioso (no caso, o vírus), do ambiente e da população. Isso é expresso no chamado número reprodutivo básico (“R0”), que estima para quantas pessoas cada portador transmite o agente. Para o vírus da Covid-19 (SARS-CoV-2) as estimativas iniciais, feitas nos países em que a epidemia apareceu primeiro, são de que o R0 está próximo de 3 (ou seja, no início da epidemia, cada indivíduo que se contamina em média transmite o vírus para 3 outras pessoas).

Esse número muda conforme alguma dessas características seja modificada. Considerando que o vírus permaneça estável (sem mutação significativa), mudanças no ambiente ou na população alteram o número de reprodução, (que passa a ser representado por “Rt”). O padrão habitual é que, à medida em que as pessoas adoecem e se recuperam, fiquem imunizados e deixem de ser suscetíveis à doença.

Quando esse número efetivo de reprodução (Rt) é igual ou menor que 1, significa que o agente infeccioso continua circulando, mas não mais em padrão epidêmico (crescente), por haver proporcionalmente poucos indivíduos disponíveis para serem infectados (por estarem imunizados). Essa é a base da chamada “imunidade de rebanho” (ou imunidade coletiva) e é também a mesma lógica da vacina, que cria imunidade (artificialmente) na população. Para a Covid-19, a estimativa baseada no número reprodutivo básico é que a imunidade coletiva só será alcançada quando entre 60 e 70% da população tiver sido infectada.

O estudo dos pesquisadores da Imperial College indica que o número de reprodução da epidemia de Covid-19 no Brasil começou entre 3 e 4 em todos os estados analisados (superior aos dos países europeus) e que caiu significativamente após a adoção de intervenções de saúde pública, como as medidas de distanciamento social, restrição de tráfego e fechamento de escolas. Outro aspecto importante do estudo é esse: há evidências consistentes de associação temporal entre as intervenções adotadas pelos estados e a redução da transmissão comunitária do vírus.

Com base na parametrização do número efetivo de reprodução (Rt) em função dos dados de mobilidade do Google, os resultados mostram que as intervenções de saúde pública foram acompanhadas de redução da mobilidade associada a diminuição do Rt. Entretanto, em nenhum dos estados analisados o Rt chegou a 1, variando de 1,14 (Santa Catarina) até 1,90 (Pará). Isso significa que, com os números reprodutivos superiores a 1, todos os estados brasileiros estudados ainda se encontram em padrão epidêmico, sem controle do aumento exponencial de infecções.

Quanto ao número de infecções, o estudo estima que apenas uma pequena proporção de pessoas de cada estado tenha sido infectada até o momento (a chamada “taxa de ataque”), embora o Brasil já tenha mais de 100 mil casos confirmados. Nos 5 estados que concentram 81% das mortes reportadas até agora – São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Amazonas – a porcentagem estimada de pessoas infectadas varia de 3% em Pernambuco a 10,6% no Amazonas. Com exceção do Pará, que tem estimativa de 5%, todos os demais estados têm proporção das populações já infectadas abaixo de 2,3%. Para o estado de São Paulo, que é o mais populoso e tem o maior número absoluto de infectados, a estimativa é que apenas 3,3% dos habitantes já tenham sido contaminados.

Portanto, há uma grande parcela da população brasileira ainda suscetível a adquirir a doença. Em todos os estados, a proporção estimada de pessoas contaminadas está bem longe dos 60 a 70% necessários para formação de imunidade coletiva. Como se trata de vírus novo, para o qual não há imunidade prévia na população e nem vacina disponível, essa proporção de suscetíveis é elemento essencial para a dinâmica da epidemia de Covid-19. Além disso, é importante ressalvar que ainda são desconhecidas a extensão e a duração da imunidade adquirida ao vírus da Covid-19 (SARS-CoV-2) pelas pessoas que tiveram a doença e se recuperaram. Portanto, ainda não se sabe sobre a possibilidade de reinfecção.

No que diz respeito ao número de óbitos, um aspecto importante ressaltado no relatório é que há incerteza em torno da taxa de mortalidade por infecção (IFR – infection fatality ratio), sobretudo porque são desconhecidas a proporção de assintomáticos e extensão da subnotificação tanto de casos quanto de mortes. No entanto, mesmo analisando diferentes cenários de subnotificação em relação aos óbitos, os resultados continuam indicando que os níveis de infecção na população até o momento são significativamente inferiores aos exigidos para a imunidade coletiva “de rebanho”.

Mas uma das principais contribuições desse estudo está justamente nas estimativas da taxa de mortalidade por infecção (IFR). Além de considerar os dados disponíveis da epidemia na China e na Europa, os pesquisadores ajustaram essas estimativas não só quanto as estruturas demográficas das populações de cada estado, mas também quanto qualidade e capacidade de assistência médica disponível.

Para dar conta da conta da heterogeneidade substancial entre os estados, o modelo foi ajustado conforme a renda média de cada estado – a de São Paulo é aproximadamente o triplo da do Maranhão – admitindo que essa diferença resulte em disparidades significativas na qualidade e extensão dos cuidados de saúde disponíveis. Assim, embora, por exemplo, a população do Amazonas seja em média 7 anos mais jovem do que a de São Paulo, não se assume ingenuamente que a mortalidade seja mais baixa. Isso considerado, as taxas de mortalidade por infecção (IFRs) estimadas variam de 0,7% (São Paulo) a 1,2% (Paraíba), refletindo diferenças substanciais entre os estados em sua estrutura demográfica e prestação de assistência médica.

Com base nesses resultados, é possível compreender a conclusão dos autores de que, na ausência de mais medidas de controle para reduzir a transmissão, o Brasil enfrenta a perspectiva de uma epidemia que continuará a crescer exponencialmente. Isso está fundamentado nos seguintes elementos:

1) evidências consistentes de que intervenções para redução da mobilidade (isolamento social) diminuem a transmissão comunitária do vírus;

2) estimativas consolidadas de que as medidas adotadas nos estados brasileiros não foram suficientes para controlar a epidemia (Rt continua acima de 1);

3) estimativas robustas em vários cenários de subnotificação de que a proporção de pessoas infectadas está muito abaixo da necessária para formação de “imunidade de rebanho”;

4) estimativas muito bem fundamentadas de que a mortalidade por infecção nos estados brasileiros tende a ser elevada, sobretudo nos de menor renda.

Cabe salientar que nenhum modelo matemático prevê o futuro e nem pretende expressar exatamente a realidade. Mas o uso de método científico dá subsídios para tomada de decisões em políticas públicas. As decisões são políticas por natureza, mas podem e devem usar evidências científicas como substrato.

Dito isso, esse trabalho Centro de Análise Global de Doenças Infecciosas da Imperial College London é o que até o momento traz mais elementos para subsidiar as decisões que precisam ser tomadas nas próximas semanas no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil. As medidas mais drásticas de bloqueio (“lockdown”), que obtiveram sucesso no controle da epidemia na Ásia e na Europa, começam a ser consideradas em alguns estados brasileiros, embora ainda não tenham sido consistentemente adotadas. Mas as evidências são claras: não é hora de relaxar medidas de isolamento e sim de intensificá-las.

 

* Daniel A. Dourado é médico, advogado, professor universitário e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)

Daniel A. Dourado

Médico e advogado sanitarista, professor universitário e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Doutorando e mestre pela Faculdade de Medicina da USP, especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP, graduado em direito pela USP e em medicina pela UnB. Atua na área de Saúde Pública, com foco em Direito Sanitário, Políticas de Saúde, Direito Regulatório e Saúde Digital. Cofundador do centro de pesquisa independente HealthTech & Society.

3 Comentários

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  1. Conforme o tempo vai passando, a realidade vai se impondo.
    Veja o caso do Equador. Há um mês vivenciou o pico da epidemia com o caos instalado. Mas isso se restringiu à cidade de Guayaquil. A imprensa noticiou que 1/3 da população da cidade se infectou, pois não teria adotado medidas preventivas para mitigar o contágio. O Equador tem uma população de 17 milhões de habitantes e computou o numero oficial de 1.700 obitos, mas estima-se que as vitimas fatais podem ser o dobro disso.
    Se a linha de previsão do Imperial College prevalece, como explicar o Equador? Por que as mortes não continuaram se alastrando mais, com uma explosão ? Provavelmente porque para além dos dados oficiais, o pais já ganhou a imunização da maior parte da população nos assintomáticos e já esgotou a parcela da população passivel de se tornar vitima fatal.
    O mesmo se dá com a Italia, por que continuaram os casos aumentando , mesmo um mes após adotar rigoroso confinamento em 09 março, sendo somente agora no mês de maio a atenuação da epidemia ? Por que a população, com perfil mais idoso, passivel de apresentar sintomas mais graves, demorou para se esgotar.
    Outros modelos preveem que SP (principal centro da epidemia) atingirá seu pico entre a semana que se inicia e a próxima. Depois começará o declinío, até porque a imprensa noticia que o numero de infectados pode ser 20 vezes maior do que o oficial.
    Luis Nassif previu 86 mil mortes até o fim de maio (https://jornalggn.com.br/noticia/em-30-dias-o-numero-de-obitos-podera-chegar-a-86-mil-em-calculo-conservador-por-luis-nassif/). Hoje 10 maio o pais registra oficialmente 10.600 obitos. Dificil achar factivel somar mais 70 mil obitos nos proximos 20 dias.
    Acontece que infelizmente a analise está contaminada pela política entre aqueles que torcem pelo caos para conseguir arrancar bolsonaro do poder e o grupo rival , de concreto mesmo só conseguirão destruir o pais economicamente. A epidemia segue seu curso soberano tranquilamente, sem se importar com as elucubrações inuteis dos homens, os quais se encarregarão de somar às vitimas uma terra devastada, aí sim podendo satisfazer suas previsões catastroficas de mortos, não pelo vírus , mas pela indigência em que a maioria da população será lançada. Terrivel .

    1. No Equador as mortes caíram com o Lockdown, não foi por imunização (Veja trecho de artigo do New York Times abaixo). Mesmo que seja 1/3 da população em Guayaquil, ainda está longe da imunização coletiva. E quanto ao governo Bozo, o problema é que ele não apresenta política nenhuma, estudo nenhum. É só chutômetro (aliás porque ele parou de falar da cloroquina mesmo, hein?), achômetro, e pregação de uma versão primitiva de darwinismo social (muito aprecida no regime nazista). Digo primitiva, porque coloca o homem na pré-história diante da natureza, negando a civilização e a inteligência como fatores de sobrevivência da espécia. Coisas como vacinas, remédios, coisas que Darwin explicaria como uma adaptação do ser humano à condições hostis.

      Veja esse trecho de artigo do New York Times:

      Trecho de artigo do New York Times:

      “Um bloqueio nacional (lockdown) ordenado pelo governo em meados de março parece estar dando frutos, à medida que as taxas oficiais de infecção se estabilizaram. As mortes também caíram acentuadamente em Guayaquil na semana passada. Dados oficiais mostram que 128 morreram em 15 de abril em Guayas, província que inclui Guayaquil. Isso é inferior a 614 em 1º de abril.

      Apesar da trégua, o presidente Moreno disse que o país está enfrentando um dos momentos mais difíceis em seus 200 anos de história, já que o custo econômico da pandemia foi agravado pelo colapso das receitas de exportação e pelas principais rupturas do país. oleodutos e pagamentos maciços da dívida externa.

      Ele agora enfrenta uma escolha difícil entre manter uma economia paralisada fechada por mais tempo ou arriscar um ressurgimento do vírus.

      Sob pressão de grupos empresariais, Moreno disse nesta semana que está considerando relaxar o bloqueio e permitir que algumas indústrias voltem ao trabalho. A notícia foi recebida com ansiedade em Guayaquil, onde muitos moradores estão divididos entre o desejo de voltar ao trabalho e o medo de reviver o caos das últimas semanas”.

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