Relatos do caos do coronavírus no Amazonas: “É como ir para a guerra sem nenhuma arma”

O estado do Amazonas tem a pior taxa de incidência de casos confirmados de coronavírus do país

Foto EPA
‘É como ir para a guerra sem nenhuma arma’: médicos e MP relatam caos no Amazonas com a pandemia
Por Ricardo Senra
Da BBC Brasil

“Sempre houve déficit no Amazonas, sempre faltou vaga. Sou formada há mais de 10 anos e sempre vi pacientes nos corredores das emergências porque não tem lugar nas enfermarias”, conta uma médica que atua em emergências, UTIs e em ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Manaus.

Hoje, a profissional está na linha de frente do combate ao novo coronavírus no Estado.

“A piora é substancial. Sem macas, agora os pacientes ficam em cadeiras nos corredores das emergências. São pessoas com suspeita de covid-19 contaminando todo mundo. A gente não sabe quem tem, quem não tem, porque até os exames estão em falta”, diz.

“A equipe de enfermagem também é a que mais sofre: eles não têm equipamentos de proteção individual. Não têm, simplesmente não têm.”

A cena narrada pela médica é repetida por outros quatro profissionais de saúde do Amazonas ouvidos pela BBC News Brasil ao longo da semana.

O Estado tem a pior concentração de casos confirmados do Brasil: 323,7 a cada milhão de habitantes (quase o triplo da média nacional: 111/milhão).

Além de hospitais superlotados e falta de equipamentos, profissionais denunciam escassez de exames, salários atrasados e riscos enfrentados por médicos e enfermeiros.

“Está sendo o caos”, diz uma das profissionais, que conta que colegas têm comprado equipamentos do próprio bolso para poderem trabalhar. “Álcool 70, coisas básicas, máscara, capote de proteção. Compramos praticamente tudo”acrescenta ela, com a voz embargada.

“Atualmente, a gente tem quer rezar para o paciente não chegar em estado grave.”

Com mais de 90% dos leitos ocupados por pacientes com o novo coronavírus, segundo o governador, o Estado recebeu do governo federal uma verba extraordinária de mais de R$ 40 milhões, para o combate específico à covid-19, doença causada pelo vírus.

Médicos, enfermeiros, procuradores e promotores, no entanto, questionam onde o dinheiro tem sido investido.

Silêncio

Nesta semana, a Sociedade Brasileira de Cardiologia questionou o governo do Estado, em uma carta à qual a reportagem teve acesso, sobre o uso de verbas federais para o combate à covid-19.

“Para onde estão sendo enviados os recursos e os investimentos da área de Saúde no Amazonas?”, diz o texto.

Na quarta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MP) ajuizaram uma Ação Civil Pública na mesma linha.

No texto, eles pedem que o Estado seja obrigado “a publicar informações claras e atualizadas, no site na internet, sobre verbas federais já recebidas e a receber e sobre o repasse, pelo Ministério da Saúde, de respiradores, equipamentos de proteção individual (EPIs) e testes.”

A BBC News Brasil procurou, por telefone, e-mail e mensagem de texto, o governo e a secretaria de Saúde do Estado em busca de esclarecimentos. Nas mensagens, a reportagem pergunta como as verbas federais de urgência destinadas ao enfrentamento do novo coronavírus têm sido usadas no Estado.

A BBC News Brasil também enumerou as reclamações dos profissionais de saúde sobre falta de equipamentos, superlotação de unidades e dúvidas sobre o uso das verbas.

O Estado não respondeu a nenhum dos questionamentos.

Documento do MPF-AMDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionAutoridades questionam onde verbas federais estão sendo investidas

Segundo o portal da Transparência, nos meses de março e abril, R$ 46.138.354,09 foram transferidos pelo governo federal para o Fundo Estadual de Saúde (FES), administrado pela Secretaria Estadual de Saúde.

O valor deveria ser destinado especificamente ao “enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.

Na ação ajuizada na Justiça Federal, o Ministério Público destaca “que o Estado já recebeu verbas federais para o combate ao Covid-19, como se extrai do portal do Fundo Nacional de Saúde, o que justifica a prestação dessa informação”.

Ainda segundo a ação, “o MPF e o MP-AM destacam que não foram adotadas até hoje, mais de um mês após o início do surto, medidas que assegurem a transparência das ações públicas”.

Mortes de médicos

A carta enviada pela sociedade médica também discute o “apagão” de verbas emergenciais no Estado.

“Há de se ter clareza nas informações destes dados (financeiros) e não auferir capital político nessa conjuntura”, diz o texto.

Ao menos dois médicos morreram na última semana, em Manaus, após serem internados com suspeita de covid-19. Um deles teve a doença foi confirmada, segundo o Conselho Regional de Medicina do Amazonas. Ainda não há resultado dos testes para o segundo, enquanto as mortes de outros três profissionais, segundo médicos do Estado, também estariam ligadas à doença.

“Entendemos que é nosso dever salvar vidas. Somos fiéis ao nosso juramento, mas não podemos, num quadro caótico como esse, sermos negligentes. Temos consciência que muito mais pode ser feito sem sacrificar a vida dos colegas e dos cidadãos. Quantos mais profissionais da saúde precisam perder suas vidas para haver mudanças na saúde pública do Estado?”

À BBC News Brasil, uma das diretoras do conselho, a cardiologista Wladia de Albuquerque Silva, descreveu a situação dos profissionais de saúde sem equipamentos “como ir para a guerra sem nenhuma arma”.

Profissionais de saúde prestam assistência ao paciente em hospital de ManausDireito de imagemREUTERS
Image captionAlém de hospitais superlotados e falta de equipamentos, profissionais denunciam escassez de exames, salários atrasados e riscos enfrentados por médicos e enfermeiros

“A gente sabe que o Estado tem sua receita, sabe que esse valor foi repassado pelo governo federal, mas a gente não vê recursos sendo destinados para lugar nenhum aqui em Manaus. Estamos explodindo de casos. E não é uma situação só local, no interior é pior.”

Boa parte do efetivo de atendimento de saúde do Amazonas não é concursada e oferece serviços terceirizados ao Estado por meio de cooperativas. Dois enfermeiros que trabalham neste regime disseram à reportagem que estão com salários atrasados há dois meses.

No fim de março, já em meio à pandemia, quando o Estado já tinha mais de 80 casos confirmados, enfermeiros fizeram um protesto em Manaus pedindo a regularização dos pagamentos.

Alguns afirmaram estar há oito meses sem receber o salário regular. A BBC News Brasil questionou o Estado sobre os atrasos, mas não teve resposta até a quinta-feira (16).

Limite

Em uma semana, os casos confirmados da doença no Estado aumentaram 192% e os registros de óbitos subiram 360%. Esses dados colocam o Amazonas na fase de “aceleração descontrolada” do novo coronavírus, segundo o Ministério da Saúde.

Segundo o governo do Amazonas, 18 dos 61 municípios do interior têm casos da doença.

Na semana passada, em entrevista a jornalistas, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que a situação em “Manaus nos preocupa muito”.

Ao jornal El País Brasil, o governador do Estado, Wilson Lima, disse que “90% dos leitos estão com pacientes de covid-19”. “É uma corrida contra o tempo”, afirmou.

Além dos pacientes, a corrida afeta o cotidiano e a saúde mental de profissionais de saúde, que tentam como podem dar conta da nova demanda.

Homem desinfeta porto de ManausDireito de imagemREUTERS
Image captionEm uma semana, os casos confirmados da doença no Estado aumentaram 192% e os registros de óbitos subiram 360%

“A gente tenta o máximo possível preservar a vida do paciente, até se expondo em algumas situações”, diz uma profissional.

“Apesar da nossa situação ruim de material e tudo mais, o material humano está sendo nota 10. Vejo cada um tentando o máximo para salvar uma pessoa e enfrentar uma situação que chega no limite. É muito triste.”

Para médicos ouvidos pela reportagem, a crise expôs um problema antigo no Estado.

“A gente tinha até desistido de (esperar) alguma ação dos governantes, porque eles sempre usam a saúde como massa de manobra para poderem se eleger, mas de efetivo não faziam nada. Isso tem anos já”, diz uma médica concursada.

“Agora, a pandemia do coronavírus mostrou o tamanho da deficiência da saúde aqui no Amazonas. E só tende a piorar.”

Outro lado

Procurada por telefone, email e mensagem de texto durante toda a quinta-feira (16), a secretaria de saúde do Amazonas não respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil. Após a publicação da reportagem, a pasta enviou os pontos a seguir:

Uso de verbas federais

  • Dos recursos federais destinados ao Estado do Amazonas, foram contratualizados aproximadamente R$ 21 milhões, conforme detalhamento abaixo. Os demais recursos estão destinados para outras ações em processo de contratualização.
  • Contrato locação de Ambulância Tipo D (de suporte avançado) : R$ 10,3 milhões (180 dias)
  • Aquisição de Testes Rápidos: R$ 3,8 milhões
  • UTI aérea: R$ 4,1 milhões
  • Aquisição de colchões para uso hospitalar: R$ 104,5 mil
  • Materiais Hospitalares para estruturação de leitos no Hospital Chapot Prevost: R$ 11,2 mil
  • Pagamento de mão de obra por meio de parceria para fabricação de máscaras descartáveis: R$ 71 mil
  • Manutenção de câmara de refrigeração: R$ 15 mil
  • Locação de hospital de retaguarda (90 dias): R$ 2,6 milhões

Atrasos em salários

Os profissionais citados não recebem salários, mas pró-labore, pois são sócios das empresas e cooperativas. O prazo contratual prevê até 90 dias para o pagamento de serviços prestados. A atual gestão vem mantendo a regularidade no pagamento mensal das empresas médicas de modo que cada uma receba pelo menos uma competência mensal que, necessariamente, não será a do mês corrente.

Ressalta-se que o Amazonas é um dos poucos estados da federação que nunca atrasou salário de servidores públicos, mesmo diante das sucessivas crises econômicas dos últimos anos, que levou parte dos Estados a atrasar e até parcelar salários.

Falta de equipamentos

Apesar do aumento do consumo em até cinco vezes após a epidemia (hoje se consome em uma semana o que era consumido em um mês) e a escassez do produto no mercado mundial, o Amazonas ainda vem conseguindo manter até aqui um estoque de EPIs e o abastecimento de todas as unidades de saúde da rede estadual. Todavia, tem sido orientado aos gestores o uso racional e adequado dos EPIs – seguindo o que recomenda a Agência Nacional de Saúde (Anvisa) – para que não haja desabastecimento. As medidas, obviamente, não agradam aos profissionais, uma vez que o uso dos produtos está sendo controlado.

O que tem se observado é que, por medo da contaminação, os profissionais que atuam dentro das unidades têm exigido equipamentos diferentes daqueles definidos para cada ambiente e situação recomendada pela Anvisa. É o caso do macacão e da máscara N95, esta última indicada para uso em procedimentos que produzem aerossóis, mas que é reivindicada por todos, inclusive profissionais para os quais o equipamento indicado é a máscara cirúrgica.

O abastecimento vem sendo garantido com aquisições pelo Estado e Ministério da saúde, além de doações e de parcerias, como a que está em curso com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) para a produção de EPIs para a rede estadual de saúde.

Superlotação em emergências

Levando em conta que, além da covid-19, o Amazonas também enfrenta o período sazonal, que vai de novembro a maio, das Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG) por outros vírus – Influenza A e B, Metapneumovírus, Adenomavírus, Vírus Sincicial Respiratórios e outros – , foi criado um fluxo de atendimento na rede de urgência e emergência da capital-Manaus para acolhimento e manejo adequado desses casos e do covid-19.

Todo paciente que entra em pronto-socorro, serviço de pronto-atendimento (SPA) e Unidade de Pronto Atendimento (UPA) passa por uma triagem e aqueles que apresentam sintomas respiratórios que necessitam de cuidados são encaminhados a espaços chamados “sala rosas”. Nessas salas eles recebem o atendimento adequado segregados do restante do hospital e são testados e classificados enquanto aguardam a remoção para o serviço de referência, caso necessitem.

Por isso, tem sido recomendado que só busquem a emergência hospitalar pessoas com sintomas mais graves que realmente necessitem de atendimento médico. Para sintomas leves é recomendado que fiquem em casa.

Para reduzir a superlotação dos serviços de emergência, o Governo do Amazonas lançou em 6 de abril um chatboot com atendimento por telemedicina onde as pessoas podem acessar um aplicativo para receber orientações e até falar com um médico que vai dar as orientações sobre o que fazer diante de sintomas e qual o momento de buscar o serviço hospitalar. Até quarta-feira (15/04), 5.790 pessoas foram atendidas por meio do serviço.

Nesta sexta-feira, o governo inicia um novo processo de triagem externa em tendas montadas fora dos hospitais para garantir que só acessem a unidade as pessoas que realmente estejam necessitando de atendimento de urgência e emergência.

Mesmo com as limitações e a grande demanda, as unidades têm se esforçado para dar o atendimento adequado a quem precisa.

 

Redação

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