“Estamos tentando tirar do OPAS”, disse Dominghetti e ninguém prestou atenção, por Hugo Souza

O Fundo Estratégico da Opas é, segundo a própria Opas, “um mecanismo de compras internacional criado no ano 2000 para auxiliar os países e territórios das Américas a terem acesso a insumos de alta qualidade para a saúde”.

Agência Senado

“Estamos tentando tirar do OPAS”, disse Dominghetti e ninguém prestou atenção

por Hugo Souza

Esta é a história de um projeto de lei que poderia ter sido capital para o Brasil lidar com a pandemia de covid-19, mas que se arrasta há quase um ano no Congresso Nacional; que poderia, fosse aprovado lá atrás, descentralizar, agilizar e baratear a importação, por exemplo, de insumos para vacinas, kits intubação e oxigênio hospitalar.

Todavia, só agora, há um mês, este projeto de lei passou a tramitar em regime de “urgência” no Congresso, justamente após a CPI e a imprensa começarem a trazer à luz as negociatas feitas pelo Centrão, militares e evangélicos no vácuo de ações do Governo Federal para garantir vacinas, insumos, equipamentos e até sedativos para o enfrentamento da covid-19 no país.

Trata-se do Projeto de Lei 4710 de 2020, de autoria do deputado Fábio Abreu (PL-PI) e que autoriza, em nome do combate à pandemia, a importação pela União, estados, municípios e pelo Distrito Federal de insumos, equipamentos e medicamentos por meio do Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que é o braço da OMS nas Américas.

O Fundo Estratégico da Opas é, segundo a própria Opas, “um mecanismo de compras internacional criado no ano 2000 para auxiliar os países e territórios das Américas a terem acesso a insumos de alta qualidade para a saúde”.

Além de insumos e kits intubação, o PL prevê ainda a importação via Opas de medicamentos, equipamentos de proteção individual (EPIs), equipamentos médico-hospitalares, testes laboratoriais, oxigênio medicinal e respiradores. O item que não tiver registro na Anvisa, prevê o PL, será liberado no Brasil caso já tenha autorização para uso dada pelas agências sanitárias dos EUA e da União Europeia.

A tramitação do PL 4710/2020 no Congresso começou no fim de setembro do ano passado, com a apresentação do projeto, e assim ficou, parada, durante longos nove meses, até meados de junho deste ano, quando a Câmara aprovou regime de “urgência urgentíssima” para a matéria, coincidentemente, repito, no momento em que a CPI começou sua guinada de foco do negacionismo para o “negocionismo”.

Nestes meses de dormitação em vez de tramitação, o Brasil viveu capítulos especialmente dramáticos da pandemia, como a crise da falta de oxigênio em Manaus; a morosidade da vacinação, inclusive por causa da falta de insumos para o Butantã e a Fiocruz; o escabroso desabastecimento de remédios do kit intubação; e o pior momento da pandemia, quando o país chegou a registrar quatro mil mortes por covid-19 em um só dia.

No último 29 de junho, finalmente foi escolhido o relator do PL 4710/2020, deputado Giovani Cherini (PL-RS), que apresentou relatório para votação apenas dois dias depois, em 1º de julho – dois dias depois de ser designado, mas um ano e meio após o início da pandemia e já com mais de meio milhão de brasileiros mortos pelo covid-19.

“A OPAS, ao centralizar os procedimentos de negociação, seleção de produtos e de fornecedores e toda a parte burocrática e administrativa envolvida no processo de aquisição, consegue obter preços muito vantajosos. Desse modo, o ganho não ocorre somente na obtenção de fontes adicionais para aquisição de produtos, com consequente ampliação da oferta, mas também na redução dos custos envolvidos nessas aquisições, o que gera maior economia e preservação do orçamento do SUS”, dizia o relatório.

Naquele mesmo dia, 1º de julho, o projeto foi aprovado por unanimidade no plenário da Câmara. Ou quase. Foram 379 votos a favor e um contra. O voto contrário foi do deputado Rui Falcão (PT-SP) – é provável que tenha sido um equívoco.

A novidade do PL 4710/2020, aparentemente, ficaria por conta da possibilidade de estados, municípios e Distrito Federal abrirem uma nova, importante e transparente frente de compras de insumos, medicamentos e equipamentos para lidar com a covid-19. Isso porque, durante a pandemia, a União chegou a procurar a Opas pelo menos duas vezes para importar remédios em caráter excepcional, no sentido do que prevê o PL. Nessas duas vezes, porém, não parece ter sido exatamente para ajudar.

Na mais recente, documentos da Anvisa mostram que agora há pouco, no último 28 de maio, e a pedido do Ministério da Saúde, a agência autorizou a importação de mais de um milhão de comprimidos de Azitromicina. A Azitromicina é remédio do famigerado kit covid.

Na outra vez, no fim de março, o Ministério da Saúde atropelou, embaralhou, atrapalhou um esforço da Opas de tentar intermediar a compra de medicamentos de outro kit, o kit intubação, no mercado internacional para ajudar o Brasil, o que vinha sendo feito a pedido do próprio Brasil.

Quando a Opas estava cotando preços com fabricantes, descobriu que o Brasil estava fazendo isso também, paralelamente, via Itamaraty, que, na época, ainda estava sob a batuta de Ernesto Araújo. A representante da Opas no Brasil, Socorro Gross, protestou veementemente: “as quantidades que nós cotamos, que são as quantidades que cotou o Ministério da Saúde, eles [fornecedores] não podem cotar para o Brasil [via Opas]”.

Por aquela época, entre março e abril, o país viveu um grave desabastecimento de medicamentos do kit intubação. Os preços dispararam. O anestésico Propofol, por exemplo, que em dezembro de 2020 custava algo em torno de R$ 13,00, em abril estava sendo vendido a não menos que R$ 33,00, mais de 150% mais caro. O preço do relaxante muscular Rocurônio disparou 216%. O preço do sedativo Midazolam chegou a subir retumbantes 894%.

Nesta esteira de “trapalhadas” e preços nas galáxias, a farmacêutica Belcher, de Maringá, que tem um dos sócios ligado a Ricardo Barros e que tentou intermediar a compra pelo Ministério da Saúde da vacina chinesa CanSino, a US$ 17 dólares a dose; a Belcher, dizíamos, está distribuindo no Brasil o anestésico Propofol, o relaxante muscular Rocurônio e o sedativo Midazolam.

Nas bulas, a Belcher informa que esses três remédios estão sendo vendidos “conforme a RDC n.º 483, de 2021 – Anvisa/MS”.

A referência é a uma resolução da Anvisa datada de 19 de março que autoriza a laboratórios brasileiros a “importação de medicamentos identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional relacionada ao SARS-CoV-2”.

Agora, muita atenção.

Notório personagem do esquema Davati/Amilton, o cabo Dominghetti enviou em 23 de fevereiro mensagem para um contato identificado como “Rafael”, dizendo o seguinte:

“Rafael, tudo bem? A compra vai acontecer, tá? Estamos na fase burocrática. E em off, só você sabendo, quem vai assinar é o Dias mesmo, tá? Caiu no colo do Dias e a gente já se falou, tá? E quinta-feira a gente tem uma reunião para já finalizar com o ministério. Tô em Brasília até agora, entra e sai de reunião do ministério… Nós estamos tentando tirar do Opas para ir para o Dias direto”.

“Estamos tentando tirar do Opas”.

Não me diga. Desde quando?

Hugo Souza é jornalista

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Hugo Souza

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