2018, entre uma guerra do guano e a renovação democrática

A mensagem de Natal deste ano do comandante do Exército foi calma, mas também foi preocupante. Ela evidencia que os militares trabalham com a hipótese de que o agravamento da crise política, econômica e social poderá, em algum momento, se transformar numa crise militar https://www.youtube.com/watch?v=qEPHEHowHaI.

Os militares brasileiros são preparados para a guerra. Mas não para a guerra externa (comparado aos exércitos mais modernos o exército brasileiro é uma fraqueza desarmada) e sim para a guerra interna (doutrina que foi sendo construída ao longo do século XX e que ganhou sua forma mais elaborada após o golpe de 1964).

No plano interno nosso exército parece ser imbatível. Ele pode convocar mais homens do que as PMs e faz uso de armamentos muito mais pesados e modernos do que aqueles que são utilizados pelos policiais. Internamente, ninguém em sã consciência ousaria declarar guerra ao exército brasileiro.

Ao esclarecer a missão do exército em 2018, além de esboçar um cenário futuro plausível (o agravamento da crise política, econômica e social), o general Villas Bôas partiu de uma presunção absoluta (a de que que a integridade da corporação que ele comanda não será afetada pelo agravamento da crise). Ele cumpriu o papel que lhe competia de maneira satisfatória seguindo um plano militar bem definido.

Todavia, como qualquer estudioso de questões militares rapidamente aprende uma verdade terrível: plano militar é uma relação de coisas que quase sempre não acontecem. Como qualquer grande organização distribuída de maneira fragmentária num imenso território, o exército brasileiro também está fadado a ser vítima de si mesmo (insubordinação, fragmentação, corrupção, conflito armado entre comandantes de regiões distintas não podem ser descartados).

A crise política (recusa de Aécio Neves de aceitar vitória eleitoral legítima de Dilma Rousseff) desembocou num beco sem saída: o golpe de 2016 agravou a crise econômica. A politização dentro do Judiciário está provocando disputas terríveis entre os juízes. Dentro do Exército conflitos semelhantes agravados pela escassez de recursos não deixaram de produzir danos à hierarquia e disciplina. O general Villas Bôas provavelmente trabalha com este cenário alternativo, mas por razões óbvias ele não poderia expor suas verdadeiras preocupações ao respeitável público.

Em 2018 o Brasil pode renovar a democracia https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/2018-ano-da-renovacao-democratica-por-fabio-de-oliveira-ribeiro, mas também poderá colocar tudo a perder. Nada está definido. Em razão disso, resolvi esboçar aqui o pior cenário possível. Farei isso partindo de alguns pressupostos.

O primeiro deles é uma característica essencial do capitalismo:

“O sistema capitalista escapa ao controle social porque surgiu no curso da história como uma poderosa estrutura ‘totalizadora’ à qual tudo deve se ajustar, incluindo empregos, saúde, comércio, educação, agricultura, arte e indústria; a tudo, implacavelmente, ele impõe seus critérios de viabilidade e custo-benefício. E nos deixa muito ansiosos por uma nova utopia.(Desafios da Sociedade Contemporânea, Gilberto Dupas, editora Unesp, São Paulo, 2014, p. 76/77)

A força das utopias não diminui nos momentos de crise política, econômica e social (cenário esboçado pelo comandante do exército). Elas tendem a crescer e a se expandir para dentro de todos os lares e instituições. Apesar de ser considerada uma distopia pelos intelectuais de esquerda, no Brasil o fascismo cresceu nas ruas como uma utopia anti-petista da classe média: basta derrubar Dilma Rousseff que tudo vai melhorar, diziam comerciantes, empresários e jornalistas.

Um ano depois a situação é desoladora. Nada melhorou: apesar das medidas neoliberais adotadas por Michel Temer (ou por causa delas) o desemprego cresceu, o preço dos combustíveis aumentou, os juros bancários continuam estratosféricos e a renda da classe média declinou. O golpe beneficiou os banqueiros, mas eles cuidaram apenas dos próprios interesses deles.

A frustração da classe média se faz sentir como uma redução na rejeição a candidatura presidencial Lula. A fraqueza do novo regime é tão evidente, que Gilmar Mendes acena com o semi-presidencialismo (pressupondo que o novo presidente não será neoliberal). Todavia, a frustração com o governo Michel Temer (que tem o menor índice de aprovação da história republicana do país) e o medo do retorno do PT (o anti-petismo continua sendo alimentado pela imprensa) podem fornecer um combustível adicional para o agravamento da crise, levando-a a se propagar dentro do exército.

Nesse sentido, discordo dos analistas que consideram preocupantes as manifestações em favor de Lula no dia em que o TRF-4 julgará o processo do Triplex.  O fracasso ou sucesso delas não seriam capazes de desestabilizar o Brasil. Nesse momento, o que faria isso seriam manifestações organizadas justamente por aqueles que deram o golpe de 2016 e que foram abandonados à própria sorte pelo usurpador Michel Temer.

Apesar do discurso anti-petista, os arquitetos do golpe de 2016 tinham um objetivo político e econômico bem definido: a destruição do legado de Getúlio Vargas. Em razão disso – como segundo pressuposto de análise – vale a pena relembrar quais eram as principais características sociais do getulismo.

“Na ideologia da classe dominante, especialmente do grupo empresarial, as relações de classes são colocadas em termos de ‘paz social’, que é uma das formas sob as quais se exprime o Welfare State posto em prática no Brasil. Dando continuidade à política estatal iniciada por Vargas, a liderança empresarial coloca as relações com os assalariados, em especial o proletário, em termos de convívio harmonioso, fundado numa identidade de fins. ‘As nossas classes patronais, em perfeita concórdia com o poder público, reconhecem que não são de ordem meramente econômica as relações que devem existir entre empregadores. E se tais contatos se cingirem unicamente a acordos de ordem material, suscitarão, inexoravelmente, desentendimentos e contínuas lutas de classe’ (Roberto C. Simonsen, O problema Social no Brasil, pp. 15-16).

Em conseqüência, é necessário formular técnicas sociais destinadas a favorecer a integração do operário ao trabalho e à situação de lazer. É preciso povoar o lazer dos membros da classe operária com atividades recreativas e culturais que o afastem das cogitações relativas às relações políticas entre os homens. Além disso, ‘é fato sabido e comprovado que a atividade do trabalhador que se sente feliz no trabalho e fora dele rende mais’ (Lídio Lunardi, Bases de uma Nova Política para a Indústria Brasileira, p. 13). Para esse fim, mobilizam-se as ciências e os cientistas sociais. Algumas correntes da sociologia industrial surgem nesse programa, conforme o demonstra a análise de C. Wright Mills, em The Sociological Imagination. Trata-se de intensificar a integração social, diluindo as fronteiras de classe. Ao nível ideológico, diluem-se essas e outras cristalização da vida social.” (Estado e Capitalismo, Octavio Ianni, 2a. edição, editora Brasiliense, São Paulo, 1989, p. 144/145)

O governo Temer revogou diversos programas sociais (destinando mais recursos às empresas de comunicação), interrompeu o combate ao trabalho escravo (beneficiando deputados e senadores acusados de praticar a escravidão), reformou a CLT (para reduzir o custo da mão de obra) e quer privatizar a previdência social (para garantir os lucros crescentes dos bancos). Em pouco tempo as fronteiras entre as classes sociais se tornaram maiores e mais visíveis. Ao longo do tempo elas tendem a se cristalizar.  No final de 2017 o Brasil já pode ser dividido entre aqueles estão em condições de pagar o preço absurdo do gás e aqueles que foram obrigados a utilizar fogões a lenha improvisados.

A situação econômica das pessoas de classe média que apoiaram o golpe não melhorou em 2017. Ao ver o que está ocorrendo aos mais pobres (regressão a padrões civilizatórios compatíveis com aqueles que existiam no Brasil antes de Getúlio Vargas), elas certamente sentirão mais medo de cair na miséria. O medo da queda pode se transformar em resignação (como aparentemente está ocorrendo, já não vemos manifestações contra os aumentos de preço da gasolina) ou pode explodir a qualquer momento de maneira irracional.

Toda crise é uma oportunidade.

“A idéia de usar a razão para identificar e promover sociedades melhores e mais aceitáveis estimulou intensamente as pessoas no passado e continua a fazê-lo no presente. Aristóteles concordou com Ágaton em que nem mesmo Deus podia mudar o passado. Mas também concluiu que o futuro pode ser moldado por nós. Isso poderia ser feito baseando nossas escolhas na razão. Precisamos, então, de uma estrutura avaliatória apropriada; precisamos também de instituições que atuem para promover nossos objetivos e comprometimentos valorativos, e, ademais, de normas de comportamento e de um raciocínio sobre o comportamento que nos permitam realizar o que tentamos realizar.” (Desenvolvimento como Liberdade, Amartya Sen, Companhia de Bolso, São Paulo, 2010, p. 318)

Num contexto crise volátil como o brasileiro (governado por um usurpador que perdeu legitimidade inclusive entre aqueles que ocuparam as ruas para que ele chegasse ao poder), toda oportunidade pode ser perdida porque não temos instituições que atuem para promover nossos objetivos e comprometimentos valorativos. Este é o terceiro pressuposto analítico que vou empregar.

A credibilidade da imprensa desapareceu porque os jornalistas apoiaram o golpe de 2016 e nada melhorou em 2017. A respeitabilidade do Judiciário está em declínio, pois os  juízes batem boca em público e defendem de maneira mesquinha privilégios senhoriais (dentre os quais de ganhar acima do teto). A crença na democracia, que já estava abalada desde que Aécio Neves rejeitou o resultado da eleição presidencial, não melhorou muito depois das eleições municipais.

Surfando na onda conservadora, Doria Jr. foi eleito prefeito da maior e mais importante cidade do Brasil. Desde que assumiu ele se limitou a fazer quatro coisas: viajar, posar para fotos, destruir o legado de Haddad e deixar São Paulo caindo aos pedaços. O novo prefeito de São Paulo não foi capaz nem de decorar a Av. Paulista para o Natal de 2017.

Desempregados e abandonados à própria sorte por um Estado neoliberal que privilegia os interesses dos banqueiros, os pobres podem se sentir tentados a invadir a arena política. Insatisfeita com o resultado do golpe que deu, a classe média pode abandonar a resignação aparente em que se encontra. Instituições em frangalhos são incapazes de fomentar soluções racionais para os novos desafios políticos e velhos impasses sócio-econômicos. Com o legado getulista destruído, não haverá nenhum amortecedor entre as classes sociais.

É evidente que os conflitos tendem realmente a se acirrar em 2018 (como previu o general Villas Bôas). A estabilidade do exército presumida por ele, contudo, não pode ser considerado um consumado inquestionável. Ao se agravar, o conflito  pode se propagar para dentro do exército produzindo fraturas insuperáveis entre os comandantes militares e entre eles e seus subordinados.

No ano que vem o Brasil pode ser sacudido por uma guerra civil que será tão estúpida quanto a Guerra do Guano https://es.wikipedia.org/wiki/Guerra_del_Pac%C3%ADfico. Ao fim dela, a merda supostamente valiosa que todos querem controlar (o Estado e sua arrecadação) terá perdido totalmente seu valor porque não conseguirá mais proporcionar nem privilégios, nem direitos, nem paz social àqueles que não forem obrigados a enterrar seus parentes, sejam eles ricos ou pobres. Antes do primeiro tiro jaz a esperança. Depois dele todos os sonhos e pesadelos terão que ser enterrados.

 
Fábio de Oliveira Ribeiro

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