A cidadania criminalizada, por Guilherme Scalzilli

A cidadania criminalizada

por Guilherme Scalzilli

As figuras antipáticas e impopulares de Anthony Garotinho e Sérgio Cabral embotam os significados de suas prisões. Mas a identidade dos personagens (e até sua inocência) tem pouco a ver com o aspecto mais preocupante dos episódios: o exibicionismo punitivo esvaziado de conteúdos jurídicos ou morais.

A banalização do encarceramento, a humilhação pública dos réus, a pantomima da soldadesca, a verborragia agressiva dos procuradores, eis que o teatro “excepcional”da Lava Jato vai sendo naturalizado, virando uma rotina de atitudes extremas desnecessárias.

Esse costume só existe graças ao limitado leque partidário da operação. Sua isonomia negativa espelha o recorte originalmente desigual, que também explica a tolerância que a operação desfruta na cúpula do Judiciário. Se tratamentos indignos pudessem atingir lideranças do PSDB, o precedente seria cortado na primeira tentativa.

O padrão temerário da Lava Jato evidencia uma peculiar desconfiança nos ritos processuais. As cortes inferiores e as autoridades policiais parecem querer castigar os indiciados antes que se defendam, exorbitando o prejuízo para que ele fique irremediável mesmo no caso de absolvição. Preferem tolher direitos ao risco de impunidade.

Há quem considere tais direitos “privilégios”, alegando que fogem às práticas vigentes. Assim opera o que chamei de “malufismo jurídico” (abusa mas prende), um raciocínio de fachada solidária que parte das violações cotidianas sofridas por negros e pobres para chegar à tolerância com as violações praticadas contra ricos e brancos. Em vez de se rechaçar quaisquer formas de injustiça, defende-se generalizá-la.

A metáfora bélica do “combate” à corrupção explica o tom raivoso dos seus apologistas. Mas não é outro o espírito do crime organizado, nem o da polícia assassina. Em comum, a ideia de que o exercício pleno da cidadania configura um obstáculo, uma veleidade burguesa ou, pior, um subterfúgio de malfeitores.

E a narrativa guerreira é sedutora. A glamourização midiática alimenta a ostentação repressiva gratuita, que alimenta o gozo obsceno com o sofrimento de Garotinho, Cabral e outros réus. O apelo sensacionalista supre a falta de motivos para os requintes autoritários e desmoraliza, ou inibe, eventuais medidas recursivas que venham repará-los.

O comando da Lava Jato sempre buscou exatamente isso: saciar a psicose vingativa do público, instrumentalizando o espetáculo do justiciamento precoce em troca de uma popularidade que imponha as “convicções” dos acusadores. Quando fizerem o mesmo com Lula, por exemplo, todos ficarão satisfeitos e conformados.

Tipicamente fascista, o punitivismo demagógico não é apenas um sintoma da falência dos valores da democracia representativa. É, acima de tudo, elemento agravador do problema. O apoio da sociedade nunca legitimou fenômenos dessa natureza; pelo contrário, abriu caminho para tragédias históricas. Já devíamos ter aprendido a evitá-las.

http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/2016/11/a-cidadania-criminalizada.html

Redação

2 Comentários

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  1. Fla X Flu

    Virou Fla x Flu a relação da justiça com movimentos sociais e com políticos de esquerda…

    Vale gol de mão, pênalti fora da área e gol impedido…

    Não é apenas mais questão de certo ou errado, falso ou verdadeiro  –  agora é paixão pelo meu lado ainda que esteja errado, será defendido e pouco importa as armas usadas para tal fim!

    A relação do procuradores tem tom ofensivo contra coisas que importam para pessoas mais humildes!

    Pouco importa a quebra a destinação dos royalties do petróleo?

    Será que é difícil entender que quanto mais o pais gastar em educação, será melhor para  todos os habitantes do pais, ainda que alguns tenham a condição de estudar em qualquer parte do mundo?

    Garantia e obrigatoriedade para estudar não deveria ser lei?

    E defendida por todo judiciário?

    A quebra desta regra não será um ato de violência contra seu próprio país?

    Não consigo entender, o por que deles não conseguirem entender isso!

    Eles não se sentem responsáveis?

    Não é com eles?

    Que menos escolaridade pode levar a maior violência?

    É difícil enxergar isso?

    A justiça caminha para o irracional ou para a lógica abstrata…

  2. Ney Matogrosso defendeu a generalização das injustiças

    Em 2013, o Ney Matogrosso defendeu não o fim das injustiças contra os pobres, pretos, putas e petistas mas que tais injustiças sejam atinjam também os ricos. De acordo com o referido artista:

    “Não posso dar a opinião legal, mas, como brasileiro, eu acho que é decepcionante, porque pobre não tem todos esses direitos, preto não tem todos esses direitos. Tudo indica que eles vão escapar. O Supremo vai ficar abalado. A confiança depositada pelo povo no Supremo ficou abalada, mas tudo bem, eles dizem que não ficam abalados com isso. Eles estão pouco se lixando para a opinião pública”.

    http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:LpdL6FLau8kJ:brazil.indymedia.org/es/red/2013/10/525593.shtml+&cd=5&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

    O Ney Matogrosso queria que as injustiças praticadas contra pretos, pobres, putas e petistas fossem solucionadas estendendo-as às demais pessoas, como se two wrongs would make a right.

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