A cultura do ódio é também problema de saúde pública

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Jornal GGN – Carta publicada pela ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ligada à Fiocruz, traz para o debate o momento ímpar que vivemos. A intolerância nos leva para além da cidadania e dos direitos humanos, causa prejuízo à saúde pública, à sanidade. 

O clima de macartismo que vivemos nos leva a outra dimensão além das consequências políticas, esse ódio traz consequências para a saúde pública, em doenças cardiovasculares, depressão, suicídio, desalento. Sem entrar na legalidade ou ilegalidade de eventos que nos empurram para esse abismo, a entidade traz um quadro terrível de desmonte do ânimo nacional, com separação de grupos e aumento do nível de agressividade.

Leia a carta a seguir.

Vivemos tempos terríveis: carta à comunidade da Saúde Coletiva

Esta semana, o reitor afastado da Universidade Federal de Santa Catarina, professor de direito Luiz Carlos Cancellier se matou. Em sua nota de despedida da vida disse: “Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade”. Não foi um simples afastamento, mas uma política deliberada de intimidação, de achacamento, de decretar a culpa antes do julgamento, de linchamento midiático. 
 
Não vamos aqui entrar na discussão dos procedimentos legítimos ou legais. Outras vozes mais bem informadas que as nossas já se pronunciaram 1,2,3.
 
Queremos aqui falar do que estudamos e conhecemos. O clima de macartismo que se instalou no país tem consequências para além da política imediata, para além do jogo do poder e das disputas eleitorais, que se esperaria democráticas. O clima de ódio tem impacto na saúde da população brasileira, já sofrendo as consequências do desmonte das políticas sociais e do SUS. Inúmeros artigos científicos apontam os efeitos nefastos do estresse sobre a saúde, efeitos estes já bem mapeados quanto aos mecanismos biológicos que levam às doenças cardiovasculares 4 e, obviamente, ao sofrimento psíquico de eventos traumáticos, que podem levar ao suicídio 5.
 
Todos sofrem, ao longo da vida, eventos estressantes. Mas chega um ponto em que os efeitos de cada evento se acumulam, gerando um quadro clínico com manifestações graves 6. É isso que estamos vivendo na sociedade brasileira atual. Quantos de nós já não desistimos de conviver com grupos, de manifestar opiniões francas, simplesmente porque não aguentamos mais o nível da agressividade da resposta? Quando qualquer afirmativa que não seja chancelada pelas autoridades de plantão leva a agressões verbais desmedidas.
 
Na mesma semana em que o Excelentíssimo Sr. Reitor Luiz Carlos Cancellier desistiu da vida, o professor Naomar Almeida, nosso colega de tantos anos e membro do Censelho Consultivo da ENSP, demitiu-se da reitoria da Universidade Federal do Sul da Bahia, da qual foi, sem dúvida, o principal idealizador. E que, como ele mesmo relata em carta 7, o “modelo de integração social que praticamos buscou promover ampla inclusão étnico-social, respeito à diversidade de saberes e engajamento da sociedade na governança institucional, com representação política efetiva nos órgãos consultivos e deliberativos da Universidade”. E, mais uma vez, uma democracia travestida, com “mera aparência de legalidade” se coloca em andamento.
 
Na mesma semana, mãe e filha saindo do cinema abraçadas foram agredidas por parecerem um casal gay.
 
Na mesma semana, um prefeito declarou censura à liberdade de expressão artística, ao impedir a instalação de uma exposição em um Museu Municipal, por julgar inapropriada aos cidadãos com base em sua leitura e crenças religiosas.
 
É hora de dizer um basta. A cultura do ódio é também problema de saúde pública 8.
 
Não aceitamos mais condenações a priori, conduções coercitivas a cidadãos, perseguições injustificadas. Estamos a caminho de uma sociedade doente, não somente como metáfora, mas como uma avaliação objetiva das condições de vida e saúde da população brasileira. O reitor Luiz Carlos Cancellier foi uma vítima, um mártir mesmo, do modelo intolerante, preconceituoso e agressivo de tratar os cidadãos brasileiros que não se moldam pela antidemocracia midiática.
 
A Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca neste momento se solidariza com a UFSC, e com todos os dirigentes públicos das instituições de ensino e de pesquisa, ameaçados, não só pelas restrições orçamentárias, mas pelo julgamento farsesco, por notícias falsas, por agressões pessoais. É hora de união de todos que acreditam na democracia real, na igualdade de direitos, no ensino e na ciência como formas de contribuir para uma sociedade mais justa.

Carta aprovada pelo o Conselho Deliberativo da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca dia 3 de outubro de 2017.
__________
1. Universidade Federal de Santa Catarina. Manifestações de pesar com o falecimento do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier de Olivo. http://noticias.ufsc.br/2017/10/entidades-manifestam-pesar-com-o-falecimento-do-reitor-da-ufsc-luiz-carlos-cancellier-de-olivo/.
2. Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal. Conselho Federal e Colégio de Presidentes emitem nota contra espetacularização do processo penal. http://www.oab.org.br/noticia/55662/conselho-federal-e-colegio-de-presidentes-emitem-nota-contra-espetacularizacao-do-processo-penal.
3. Ordem dos Advogados do Brasil – Santa Catarina. OAB/SC manifesta pesar pela morte de reitor da UFSC: “É chegada a hora de debater seriamente a forma espetacular e midiática como são realizadas as prisões provisórias no Brasil”. http://www.oab-sc.org.br/noticias/oabsc-manifesta-pesar-pela-morte-reitor-ufsc-ampquote-chegada-hora-debater-seriamente-forma-espetacu/14577. 
4. Kronenberg G, Schöner J, Nolte C, Heinz A, Endres M, Gertz K. Charting the perfect storm: emerging biological interfaces between stress and stroke. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci 2017; 267(6):487-94.
5. Shalev A, Liberzon I, Marmar C. Post-traumatic stress disorder. N Engl J Med 2017; 376(25):2459-69.
6. Karam EG, Friedman MJ, Hill ED, Kessler RC, McLaughlin KA, Petukhova M, et al. Cumulative traumas and risk thresholds: 12-month PTSD in the world mental health (WMH) surveys. Depress Anxiety 2014; 31(2):130-42.
7. Almeida-Filho N. Carta aberta à comunidade da UFSB. https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/320413/Reitor-da-UFSB-renuncia-e-reclama-de-desmonte-da-universidade.htm.
8. Nancy Krieger: Are hate crimes a public health issue? The BMJ Opinion 2017; 24 aug. http://blogs.bmj.com/bmj/2017/08/24/nancy-krieger-are-hate-crimes-a-public-health-issue/.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. ”ódio ” é muito

    ”ódio ” é muito subjetivo.

    Depende aonde vc se expõe.

      Eu devo ser o cara mais odiado deste blog.

    E o blog não  prega a cultura do ódio ?

    Não prega.

     Mas odeia os contrários.

     Sorry,no singular : O contrário.

    EU.

  2. Pré-conceito também é caso de saúde pública

    Venho refletindo durante anos sobre os gestos que as pessoas fazem se aproximam de pessoas com esterótipos diferentes.

    Quando se aproximam de mim, que no caso sou negro, percebo a imediata mudança de semblante e gestos de proteção à bolsa ou celular como se prenunciassem o sofrimento de uma possível violência.

    De início era até um toque sutil, mas ultimamente, este ato tem sido de forma velada e sem o menor constrangimento.

    Acredito que tais gestos são devidos à sentimentos de medo justificada talvez na falta de segurança que assola o mundo social.

    Mas, se uma pessoa se assusta com cada ser com medo de sofrer algum tipo de violência, é possível que esteja em franco desenvolvimento sentimentos como o pânico ou até mesmo depressão.

    E se compararmos que essa pessoa tende a ter essa reação diversas vezes ao dia, a tendência é que possa também desenvolver alguma patologia ligada ao coração em virtude dos sustos diários.

    Em tempos de uma sociedade cada vez mais doente por conta do ódio, o pré-conceito racial e social também poderiam ser estudados como possíveis patologias do futuro.

  3. Vamos sim:

    “Não vamos aqui entrar na discussão dos procedimentos legítimos ou legais”:

    O judiciario brasileiro seria indigno de sair do cu de um porco.  E seus “juizes”, menos ainda.

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