A demagogia de Temer na reação ao estupro coletivo

Jornal GGN – Ignorando a existência da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o presidente interino, Michel Temer, anunciou recentemente a criação do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, como resposta ao estupro coletivo da adolescente no Rio de Janeiro. A tentativa de emplacar um novo órgão federal enquanto sucateia outro já existente que cumpre a mesma função foi muito criticada pela sociedade.

Em artigo para o Justificando, a coordenadora do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, Gabriela Cunha Ferraz, disse que “alguém precisa avisar para o presidente interino que esse órgão já existe”. “São 13 anos (sim, 13!) construindo e implementando políticas públicas para as mulheres. São 13 anos formando e coordenando uma rede nacional de atendimento à mulher que envolve não só os estados e municípios, mas também as Defensorias Públicas, Ministérios Públicos e secretarias de segurança do país inteiro. São 13 anos de luta para elaborar uma política transversal que acolhe mulheres dos quatro cantos do país dentro do princípio da isonomia e com foco na igualdade de gênero. Isso representa muito trabalho e não é assim, de um dia para o outro, que o senhor pode decidir ignorar todo esse histórico e reinventar a roda através de um núcleo com as mesmas competências”.

Para a autora, mais do que fazer parte da solução, o presidente interino faz parte do problema. “Vivemos em um país que nutre a cultura do estupro, a cultura da violência e da desigualdade de gênero. Naturalizamos a violência contra a mulher e tentamos encontrar justificativas para esconder nossos crimes. Rotulamos as mulheres para nos sentirmos menos culpados (ou até mesmo inocentes) e, assim, vivemos fomentando a violência nos nossos atos, como, por exemplo, não nomeando mulheres para cargos de primeiro escalão do governo ou esvaziando as competências de uma secretaria que luta, há anos, pela vida e pela liberdade das mulheres. Tudo isso é violência”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Do Justificando

Presidente Interino Temer, nós já temos um órgão de defesa e proteção da Mulher

Por Gabriela Cunha Ferraz

Na mesma semana que uma jovem de 16 anos foi estuprada por diferentes homens, sai um laudo do IML que constata a existência do ato sexual com penetração afirmando, contudo, que não houve violência porque não existia presença de lesões traumáticas no órgão genital. A pergunta é: Como é possível afirmar que não houve violência, meu caro? Quem assistiu ao deplorável vídeo que circulou na internet, viu, claramente, que a jovem estava completamente desacordada. Nestas condições, ela já não oferecia qualquer resistência e não foi necessário usar violência física para forçar a relação sexual não consentida. Vale frisar que a relação aconteceu se forma não consensual porque a jovem estava apagada e sem condições de manifestar sua vontade. Isso, por si só, configura o tipo penal do estupro.

A partir deste fato, presenciamos um verdadeiro show de horrores. Cidadãos em redes sociais e a própria polícia civil – através do delegado Alessandro Thiers, pretendeu usar a conduta da jovem como justificativa da violência sofrida. Alegaram que ela teria sido mãe aos 13 anos e que era dependente química. Tentaram afirmar que ela já havia participado de outros episódios de sexo grupal e, com isso, pretendiam, justificar o que é simplesmente injustificável. Como sempre acontece nesses casos, a vítima foi coagida e deixou de ser protegida para ser brutalmente acusada.

Mas, nada disso importa. Nenhuma dessas informações é relevante para um processo de investigação de um crime de estupro. Simplesmente não interessa! Houve penetração vaginal e ocorrência de atos libidinosos sem consentimento e com uma vítima desacordada. Isso é a única coisa que precisamos apurar para configurar o tipo penal em questão. E, no caso posto, os próprios agressores provaram o crime ao registrar e divulgar as imagens do estupro com seus rostos e vozes. Existe prova em imagem, existe comprovação de autoria, existe materialidade do fato e, portanto, existe crime. Nada mais importa!

Mas, como tudo pode piorar, nesta última terça feira (31), veio a cereja do bolo das barbaridades. O Presidente interino Michel Temer, ao lado do seu Ministro da Justiça Alexandre de Moraes, realizou uma coletiva de imprensa para dar uma satisfação pública à sociedade. Neste momento ele anuncia a criação de um Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a mulher, atrelado ao Ministério da Justiça e com recursos originalmente destinados às operações da Força Nacional.

Alguém precisa avisar para o Presidente interino que esse órgão já existe e se chama Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), criado há 13 anos com a missão de defender nosso direitos, fiscalizar a aplicação da Lei Maria da Penha e combater todo e qualquer tipo de violência, seja ela física, moral, psicológica, sexual ou patrimonial. Além disso, Sr. Presidente, a SPM também trabalha pelo empoderamento econômico das mulheres para que todas nós possamos gozar de uma vida livre e independente. Uma dessas conquistas, Sr. Temer, é colocar a mulher como beneficiária de programas sociais como o “Minha Casa, Minha Vida” e o Bolsa Família” que o senhor pretende acabar. Esse protagonismo serve como uma alavanca para colocar as mulheres na liderança de suas famílias, gerenciando seus bens e garantindo sua independência. Caso o senhor não perceba, essa é uma forma de retirar a mulher da subjugação dos homens, fortalecendo sua imagem dentro da família e, consequentemente, na sociedade.

São 13 anos (sim, 13!) construindo e implementando políticas públicas para as mulheres. São 13 anos formando e coordenando uma rede nacional de atendimento à mulher que envolve não só os estados e municípios, mas também as Defensorias Públicas, Ministérios Públicos e secretarias de segurança do país inteiro. São 13 anos de luta para elaborar uma política transversal que acolhe mulheres dos quatro cantos do país dentro do princípio da isonomia e com foco na igualdade de gênero. Isso representa muito trabalho e não é assim, de um dia para o outro, que o senhor pode decidir ignorar todo esse histórico e reinventar a roda através de um núcleo com as mesmas competências. Não acredito que a força nacional esteja com dinheiro sobrando, capaz de financiar a criação de um núcleo que goze das mesmas prerrogativas de uma secretaria especial já existente. Como explicar esse gasto público? Como explicar que a SPM não participou da sua decisão de “envolver mais o ente federal” nos casos de violência contra a mulher?

A jovem carioca não foi a primeira mulher a ser coletivamente estuprada nesse país, Sr. Presidente. No mesmo dia, também ocorreu o estupro de uma menina no interior do Piauí. Desde o início de 2016 são recorrentes os casos de estupros coletivos em Salvador, relatados pela Promotoria da Mulher. Há dois meses, também testemunhamos um caso ocorrido contra uma mulher em Foz do Iguaçu. Mas, o que quero dizer ao senhor é que além deste não ter sido o primeiro, também não será o último caso. E sabe por quê? Porque nossa sociedade está doente e o nosso Governo também. Vivemos em um país que nutre a cultura do estupro, a cultura da violência e da desigualdade de gênero. Naturalizamos a violência contra a mulher e tentamos encontrar justificativas para esconder nossos crimes. Rotulamos as mulheres para nos sentirmos menos culpados (ou até mesmo inocentes) e, assim, vivemos fomentando a violência nos nossos atos, como, por exemplo, não nomeando mulheres para cargos de primeiro escalão do governo ou esvaziando as competências de uma secretaria que luta, há anos, pela vida e pela liberdade das mulheres. Tudo isso é violência. A questão agora é descobrir quem nasceu primeiro: O ovo ou a galinha.

Gabriela Cunha Ferraz é advogada, militante, Coordenadora do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil) e Realizadora do Projeto Vidas Refugiadas.

Redação

1 Comentário

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  1. Comentário Sobre o Artigo Sobre “Demagogia de Temer …”

    Em atenção à oportunida de poder manifestar-me neste espaço acerca da pauta linkada em https://jornalggn.com.br/noticia/a-demagogia-de-temer-na-reacao-ao-estupro-coletivo

    Agradeço a oportunidade e assevero em poucas linhas:

    1) O Presidente Michel Temer tem história na criação da Delegacia das Mulheres – ele inventou isto há muitos anos, como sabemos. Portanto, não entendo ser demagogia a celebração de uma atuação numa área em que ele tem história pública de comprometimento específico. E quem vai saber que fatores emocionais o levaram a abraçar por anos este tipo de bandeira? Sim, ele poderia estar na bandeira da economia, do esporte, da educação, etc. Mas tem em sua biografia este fato que nunca poderá ser diminuído pela grandiosidade do fato pelas mulheres do País que não tinham nada e com a atitude dele passaram “a ter também” esta ferramenta de autodefesa. Portanto, acho injusto o objetivo de desqualificar o Presidente (Interino) por suas declarações e decisão em criar uma Agência diretamente associada à ele. As mulheres deveriam fica contentes de que, em meio a tanta complicação atual ele tenha tido tempo para este assunto. Era mais fácil deixar quieto e não se pronunciar – afinal há tantas outras pautas e tantos Ministérios, não é mesmo?

    2) Por fim, ainda mercê da Vossa anuência em permitir-me mais um comentário no espaço: tudo que foi criado pelo núcleo duro do Foro do São Paulo e que desejava se apoderar da Nação, para colocar esta esquerda caviar que viveu amalgamada com as elites (como a Operação Lava Jato tem demonstrado) tem que ser expulso, banido e exterminado prá sempre da vida administrativa da Nação. Portanto, concordo que até “o nome da antiga Secretaria” seja eliminado. Por quê? Porque é outro Governo. Não um Governo perfeito, mas que já chegou fazendo auditoria e fazendo uma reavaliação do Estado. E … quanto aos corruptos? Dia-a-dia, conforme forem aparecendo, as Instituições que estão funcionando vão derrubando um-a-um, porque nós, povo brasileiro, estamos atentos!

    Obrigado pela oportunidade e Shalom!

    Prof. Jean Alves Cabral

    [email protected]

    João Pessoa, PB

     

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