A esquerda e a classe média, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Numa de suas obras que chegou até nós, Aristóteles afirma que a classe média é a única capaz de estabilizar e pacificar uma cidade. A predominância dela impede a tirania dos ricos (que são poucos) ou dos pobres (que são muitos).

“… é evidente que a melhor comunidade política é a formada por cidadãos de classe média, e que igualmente a cidade mais bem administrada é aquela na qual a classe média é mais larga e, se possível, mais forte que as duas outras classes juntas, ou, caso não seja possível, sozinha, pois ela pode fazer a balança pender a favor da classe à qual queira unir-se, evitando, assim, que qualquer dos extremos contrários seja dominante. Grande, então, é a felicidade da cidade na qual os cidadãos possuem uma fortuna suficiente e moderada, pois onde alguns têm fortuna em excesso e outros não têm nada surge uma democracia extremada, ou uma pura oligarquia, ou poderá surgir uma tirania de um desses extremos. Com efeito, a tirania se origina da democracia extremada quanto da oligarquia, porém, muito menos frequentemente das formas moderadas de constituição e outras similares a esta.” (Política, Aristóteles, Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 158/159)

A classe média brasileira é minúscula. Apesar disso, tem conseguido desestabilizar nosso país. Em 1930, a classe média aderiu ao projeto getulista. Em 1946 ajudou a redemocratizar o país. Em 1964 a classe média foi às ruas apoiar o golpe militar. Esmagada pelas duas crises do petróleo e pela crise da dívida externa, exigiu eleições diretas e participou do processo de redemocratização consolidado quando da promulgação da Constituição Cidadã em 1988. A partir de 2015, a classe média voltou às ruas para exigir um golpe de estado parlamentar/judiciário. Consolidada a deposição de Dilma Rousseff através de um processo fraudulento, a classe média endossou o projeto neoliberal autoritário de Jair Bolsonaro (votando nele ou simplesmente se abstendo de votar em Fernando Haddad). 

O diagnóstico que Jessé Souza fez da classe média brasileira no seu novo livro é historicamente preciso e eticamente inquestionável. A balela do patrimonialismo, que culpa a política e o Estado (vistos como fontes inesgotáveis da corrupção) e inocenta o mercado (como se ele fosse capaz de destilar apenas moralidade e igualdade), fornece as bases ideológicas para a ação/inação dos membros dessa classe social.

Se o liberalismo vira-lata tem como função ocultar a rapina da elite de proprietários, no que ser refere à alta classe média, o mito vira-lata permite legitimar os seus privilégios de classe com expressão de uma suposta superioridade moral inata. Foi por conta disso que frações importantes da classe média incorporaram como sua essa leitura da sociedade.

Para a classe média, o tema da moralidade, que lhe permite se ver como mais virtuosa do que a elite e o povo, torna-se mais evidente em função da maior ou menor sensibilidade à questão da corrupção restrita ao Estado. Agora há boas razões para se odiar e desprezar o povo: afinal, é graças à suposta conivência deste que existem líderes populistas e inescrupulosos. A preservação do abismo social da desigualdade mais injusta pode ser agora moralizada e justificada.

Assim, as formas mais universais de preconceito de classe de qualquer capitalismo – analisadas na seção inicial deste livro – adquirem uma dimensão nacional que permite legitimar a desigualdade mais cruel. Embora exista desigualdade em todo o mundo, a singularidade do nosso caso, tão monstruoso, deve ser buscada em contextos nacionais específicos, criados pela luta de classe, ou melhor, aqui, pela opressão de classes.

O mito nacional liberal e vira-lata é o elemento necessário para transformar a maldade e o sadismo de classe em virtude moral. Por conta disso, as frações majoritárias da classe média brasileira engoliram de bom grado o veneno destilado por sua elite e seus intelectuais orgânicos.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 121/122)

Ao mesmo tempo que condenam a corrupção, os varões de classe média a praticam de forma escandalosa e escatológica. Impossível não citar aqui os depoimentos que forneceram o substrato empírico para o livro de Jessé Souza:

Com os juízes os presentes funcionam que é uma beleza. O cara termina incorporando ao salário – afinal, é a mania deles.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 176)

… os caras são muito vaidosos, alguns se acham intelectuais. Quando o cara é muito vaidoso o método é pagar uma palestra com 100, 200 ou 300 mil reais, e ainda faz o cara se convencer de que é por sua cultura jurídica. Ou fazemos seminários internacionais com grandes jornais e revistas comentando e fotografando – aí eles piram. Nesse meio, você tem que saber comprar a vaidade dos caras, fazer com que se sintam mais importantes do que são. Ou então compramos diretamente a sentença.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 176/177)

…o João mandou uma loura – que foi favorita dele durante um tempo e depois passou a trabalhar com a gente, dessas muito bonitas e de 1,80 de altura, como só tem no Sul – levar, numa bolsa grande dessas de marca, um milhão de reais, misturando reais e dólares

A ordem do João foi mais ou menos assim: ‘Põe aquele vestido vermelho justinho da Armani que te dei, entrega a mala e faz o juiz feliz.’ O fulano passou um fim de semana com a loura, ficou o dinheiro e a mala, e o João construiu a boate bem onde queria. É assim que funciona com o Judiciário.

Mas não foi uma experiência agradável, vou confessar, já que a moça foi humilhada de um modo meio violento. Fomos ela e eu levar a mala com dinheiro vivo para o juiz. Começamos a discutir o modus operandi jurídico do caso com o juiz e mais dois auxiliares na própria sala do juiz, depois do expediente.

Betina, era assim que a moça se chamava, era estudante de Direito e de fez em quando arriscava um palpite sobre o caso. A certa altura, o juiz se irritou e disse que ela não era advogada, mas puta, e estava ali para outro serviço. Na mesma hora, botou o pau para fora, na minha presença e de outros dois, e mandou a moça chupar.

Depois mandou que fizesse o mesmo com os dois funcionários. Em seguida entra um terceiro assistente, todos obviamente de confiança do juiz e de sua equipe ‘privada’. Ao ver a moça ainda de joelhos e já com o vestido meio rasgado, lança um olhar entre divertido e intrigado à cena, e então o juiz o interpela: ‘Quer também?’ Ato contínuo, a moça cumpre pela quarta vez o mesmo ritual. Esse pessoal adora um abuso, quase tanto quanto dinheiro.” (A classe média no espelho, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 177/178)

A classe média brasileira é hipócrita, corrupta, elitista, cruel e, sobretudo, ignorante. Ao aderir ao golpe de 2016, ela deixou claro que não cumpre e nunca será capaz de cumprir uma função de estabilizar a sociedade como gostaria Aristóteles. Afinal, seu projeto político atual não inclui sequer a possibilidade de expansão da classe média a longo prazo através de projetos de inclusão social e garantia de saúde e educação para as parcelas mais pobres da população.

Para realizar o ideal aristotélico de construir no Brasil uma sociedade estável baseada numa nova classe média mais forte do que os ricos, a esquerda deve virar as costas para a classe média tradicional. Jessé Souza demonstrou que ela se espelha nos inimigos da democracia inclusive. Portanto, a classe média (composta principalmente de juízes, procuradores, médicos, dentistas, advogados, comerciantes, engenheiros, etc…) deve ser empurrada para a direita onde preferiu se colocar. Assim, quando recuperar o poder, a esquerda poderá governar sem prestar contas à classe média e fazer ela pagar o preço tributário de suas escolhas.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

12 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Enquanto não se discutir a
    Enquanto não se discutir a influência dessas corporações nefastas na administração pública esqueçam…..

    E isso só será possível com controle verdadeiramente popular, essas agências e esses órgãos de controle em que os próprios fiscalizados se fiscalizam é bazófia, é provocação ao povo……

    A verdade é uma só, com cebolorio político esse país não avança, e se depender da mídia quadrilheira, assassina e corrupta o país irá mais rápido para o buraco……

  2. Hipocrisia, o próximo e o distante.

    Infelizmente, parte da anomia institucional e política se deve a outros aspectos (se eles estão presentes e claros no texto, perdoem a repetição), como a incapacidade de olhar o fato mais próximo como o alimento do Monstro.

    Casos e mais casos de abusos, violências simbólicas e reais, conivências e compactuações existem constantemente sem que se dê o devido valor ou consideração. Sua validade e realidade são anuladas, quando não mais, por teorias globais que não conseguem lidar com esses fatos “pequenos”, “micros”.

    A verdade e a pertinência dependem de quem diz, quando diz e como diz. Um fato pequeno publicado tem mais valor do que o mesmo pequeno fato dito pelo sujeito comum, pela pessoa da esquina. 

    Prestando atenção nos casos de assédio sexual, dei-me conta que o modo de desqualificar a vítima e a ocorrẽncia (que, por si só, desqualifica e silencia a vítima) é algo mais extenso como prática, ocorrendo em situações as mais diversas onde existe relações de poder e autoridade. Trata-se de uma estrutura. 

    Por exemplo, como me contou uma pessoa recentemente, em uma universidade paulista, ocorreu uma espécie de pactuação entre empregados e burocratas para a eliminação de membros que discordam das políticas internas (há uma série de negligências e omissões envolvidas, então, a discordância se deve ao fato da pactuação servir para a ocultação destes delitos). São realizadas pequenas vigilâncias sobre os funcionários visados; buscam sabotar e reorgamizar o trabalho em prejuízo dos funcionários vigiados; é fomentado o isolamento destes funcionários; até mesmo no campo privado é estimulado o haapy hour e a “amizade” entre os funcionários para a alimentação de sentimento de grupo (é o tipo de situação que seria digna uma pesquisa sobre organização do trabalho). Pequenas divergências pessoais, que se devem a gostos e hábitos diferentes, servem para ampliar a divergência; o problema deixa de ser organizacional e começa a se tornar pessoal, um “ajuste de contas”. Trata-se de um “fascismo de microescala”, mas quem veria deste modo de fato? Há um bocado de ressentimento, intolerância, fragilidade pessoal, obediência à autoridade… utilizados de forma micropolítica. 

    A estupidez como forma de governo, portanto, não é algo que se deve à eleição. Vai mais longe em seu alcance. E é muito próxima. 

     

  3. A esquerda voltar ao poder,
    A esquerda voltar ao poder, só pela via revolucionária. Porque a estratégia de conciliação de classes do PT não deu muito certo.

  4. A esquerda voltar ao poder,
    A esquerda voltar ao poder, só pela via revolucionária. Porque a estratégia de conciliação de classes do PT não deu muito certo.

  5. Nenhuma classe média presta
    A classe média que lê o ggn não gostou do texto, ou não entendeu.
    A classe média tem sua valoração estética e cultural, não é só questão econômica, ou de posição na “hierarquia social”, mas de concepções do outro e do “eu”. E a ralé, até para os ditos progressistas, são os outros sem nada do “eu”. Animais, por assim dizer. Muito do que a esquerda pequeno burguesa diz sobre os mais pobres, poderia ser dito pra um cachorro de rua, só que este ganharia mais apoiadores.

    A esquerda tem que abandonar as classes médias no seu total. Vai pra perifa. Tira sede de partido das zonas nobres e vai pra perifa. Vai ser até bom, pq o Moro vai mandar cassar msm. Mandar polícia na favela fica mais difícil…

  6. O PT precisa deixar de ser um

    O PT precisa deixar de ser um partido de funcionários públicos encostados no Estado e voltar a ser de trabalhadores da iniciativa privada e pequenos e médios empreendedores. É isso que os petistas não entenderam. Os encostados nos cofres públicos só estão interessados em seus privilégios; pouco importa se o governo é comunista, fascista, ou de  direita ou esquerda democráticas. O que interessa é manter e aumentar seus privilégios. Esses encostados nos cofres públicos nem sempre o são diretamente, muitos são profissionais liberais casados com parceiros/parceiras que mamam nos cofres públicos. Assim, pela via da cama, se beneficiam de atendimento médico, odontológico, auxílio moradia, auxílio educação, auxílio Ricardão, aposentadoria e pensão milionária e vitalícia etc etc etc. Se os negócios no escritório não vão bem, tem sempre o baita salário do companheiro/companheira para segurar as coisas. Muitos sequer se preocupam com aposentadoria, já que contarão com aquela paga pelos cofres públicos para o companheiro/companheira. Ainda mais se o cônjuge tiver uma sinecura num cartório, um empreguinho de R$ 20 mil/mensais para bater carimbo, tirar xerox numa seção do Poder Judiciário, do Ministério Público, Tribunal de Contas e outros cabides semelhantes. E petistas gigolôs de mandato como Paulo Paim, entre outros, sempre os protegendo contra reforma da previdência e corte de outros privlégios. Já quando se trata de retirada de direitos dos trabalhadores celetistas, não há petista que consiga impedir qualquer governo de implementar. Para falar diretamente, os encostados nos cofres públicos só tem a temer gente como Paulo Guedes, jamais qualquer deputado ou senador petista. (Faço uma ressalta: não se confunda funcionário público encostado nos cofres públicos com Servidores Públicos, que são poucos, mas existem). 

  7. Desmentido
    Desmentir Aristóteles não é para qualquer um. É evidente que o Fábio usou o texto sem o seu contexto apenas como pretexto. A classe média apoiou Lula, tirou a Dilma e elegeu Bolsonaro. A relevância da classe média é evidente em todo o mundo, e o Brasil não seria uma exceção.

    1. Como todo golpista pilantra

      Como todo golpista pilantra você acredita que o golpe de estado contra o PT foi algo normal e desejável. Veremos o que você fará quando Bolsonaro começar a cair. Logo logo será a sua vez de sofrer e chorar. 

  8. A esquerda deve virar as costas para a classe média tradicional

    “a esquerda deve virar as costas para a classe média tradicional…”

    Mas foi exatamente isso que a esquerda fez enquanto o PT estava no poder!

    A senha foi aquele discurso da ridícula Marilena Chauí, “Eu Odeio a Classe Média”. Depois disso começou uma cascata de diatribes dos petistas contra a classe média, contra brancos, contra paulistas, foi criado o rótulo “coxinha” e não parou mais. Resultado? A classe média, que estava na dela e até simpatizava com o PT, foi engrossar as passeatas contra Dilma.

    No mínimo, foi uma péssima ideia para um momento em que o PT clamava haver incluído milhões na classe média. Então agora o PT está malhando sua própria criação? Difícil de explicar o motivo de tanto ódio. Talvez as causas sejam psicológicas. Notei a linguagem chula usada por Jessé Souza. Mesmo se aquela história da loura e do juiz fosse verdade, ninguém colocaria aquilo em um livro que se pretendesse sério.

    Procurando uma explicação mais racional, eu penso que os petistas ficaram fascinados quando viram que haviam, finalmente, conquistado a massa de eleitores de mais baixo nível social, muito mais numerosa. Até então o PT tinha se sustentado justamente na classe média, sobretudo a classe média politizada do ABC paulista. Esse foi o primeiro reduto eleitoral do PT na época em que o povão votava mesmo era em ACM, Jader Barbalho, Collor de Mello e outros “ilibados homens públicos”.  Conquistado o eleitorado pobre, o PT permitiu-se dispensar o eleitorado da classe média, e fez isso de uma maneira ostensiva. Só que os petistas se esqueceram de uma coisa: o eleitorado pobre não é politizado, não segue ideologias. Muitíssimo mais corrupto que a classe média, o eleitorado pobre é venal, acostumado a dar seu voto a quem está com a chave do cofre no momento. Por isso votava nos antigos coronéis do sertão. Quando viu que o saco de bondades do PT estava vazio, deu as costas ao PT sem nenhum remorso. Acaso alguém foi fazer passeata para defender Dilma Rousseff?

    Não sei se será um bom negócio para a esquerda doravante virar as costas para a classe média e ficar só com os pobres, pois afinal todo pobre quer ser classe média. Acho que se a esquerda quer mesmo voltar ao poder, deveria primeiro descobrir a origem de tanto ódio à classe média. Se necessário com o auxílio de um psicólogo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador