“Água como direito não está no centro das políticas públicas”, critica Di Mauro

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Unesp – Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI)
 
 
Cláudio Antonio Di Mauro fala o especial IPPRI_Unesp “Água, matéria primeira”

Cláudio Antonio Di Mauro é geógrafo e professor aposentado do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da Unesp, Câmpus de Rio Claro. Atualmente é professor do Programa de Pós Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Câmpus de Presidente Prudente, docente e Diretor do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia. Entre 1998 e 2004 presidiu os Comitês de Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Paulista e Federal). Foi membro da Agência Nacional de Águas (ANA) no período de 2007 a 2008; consultor da Unesco e presidente da Comissão Nacional de meio Ambiente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB). Foi prefeito de Rio Claro (SP) pelo Partido Verde (PV) por dois mandatos (1997 a 2004). 

IPPRI_Unesp – No imaginário nacional, o Brasil possui muita água em seu território. Mesmo assim, periodicamente enfrentamos seca, como a de 2013-2014. Na condição de especialista em gestão de água, como explicar essas crises?

Di Mauro – No Brasil, a água como direito do cidadão ou mesmo como recurso não está considerada no centro das políticas públicas e, muito menos, nas políticas do governo. Nosso País possui cerca de 12% da água doce disponível no Planeta, que pode ser transformada em água potável. Essa água está distribuída de maneira irregular, na compreensão das políticas de desenvolvimento. Áreas como a Amazônia, por exemplo, onde as águas estão mais disponíveis para captação e são registradas elevadas vazões e precipitações pluviais, são também pouco habitadas pelos seres humanos. O são pela fauna e flora. Nas metrópoles, onde há densidade populacional, há deficiência na disponibilidade hídrica.

Os dados históricos sobre precipitações pluviais mostram certa constância nas somatórias anuais, mas também são observadas ocorrências de variações das chuvas tanto para mais quanto para menos. No caso do Sistema Cantareira, responsável por abastecer cerca de nove milhões de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo, foram anotados os riscos de ocorrerem anos muito secos e períodos com inundações, com reflexos na situação dos reservatórios.

No processo de disponibilizar a outorga para que a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) captasse água no Sistema Cantareira, que foi concedida em 05 de agosto de 2004, os documentos demonstraram essa variação e tais riscos. Foram introduzidos nesses documentos procedimentos estruturais e não estruturais que serviriam para prevenção. Infelizmente, tais condicionantes não foram respeitados pelos órgãos de gestão.

Em 2014 tivemos precipitações pluviais abaixo das médias anuais. Mas não foram atendidas as ações que implicariam em reduzir significativamente seus efeitos nos recursos hídricos. Assim, podemos afirmar que o nível atingido pela crise foi claramente detectado e previsto, com mais de 10 anos de antecedência.

IPPRI_Unesp – Os artigos 20 e 26 da Constituição Brasileira, que tratam do domínio da água, esclarecem que as águas doce e salgada são bens da União. O que a União faz para protegê-los?

Di Mauro – O primeiro artigo da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) afirma que “A água é um bem de domínio público (…) um recurso natural limitado, dotado de valor econômico (…). Em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação animal…”. Significa que no Brasil não há propriedade privada da água. Não há água de domínio municipal. São dos Estados e do Distrito Federal as águas que nascem e desaguam em seus territórios, bem como as subterrâneas. O domínio da União se dá em rios que drenam mais de um Estado e em águas transfronteiriças, aquelas que delimitam o território nacional com outros países, e as que são represadas por construções com utilização de recursos financeiros provenientes da União, ainda que sejam em rios de domínio dos Estados ou Distrito Federal, as hidrelétricas, por exemplo. Equivale a dizer que existe solidariedade entre União, Estados e Distrito Federal nos cuidados que devem se adotados para com os recursos hídricos.

A lei que criou o Singreh determinou que a gestão de recursos hídricos seja descentralizada, participativa, com presença do poder público, de usuários e das comunidades. Daí a necessidade de formação dos Comitês de Bacias Hidrográficas. Contudo, como a água não é fulcro das políticas públicas e governamentais, esses organismos tão importantes não são formados e estruturados adequadamente.

A mesma situação pela qual passa o Estado de São Paulo em relação ao Sistema Cantareira também ocorre nas demais regiões brasileiras. Em geral, o planejamento de desenvolvimento implantado no Brasil tem tido um caráter desenvolvimentista a serviço dos equivocados interesses do capital, em detrimento dos interesses públicos. Assim, os temas centrais e importantes para a vida do Planeta, e mesmo para o desenvolvimento, são relegados para segundo e terceiro planos, a exemplo da água, da preservação de biodiversidades, das políticas urbanas e rurais, entre outros.

Essas temáticas são fundamentais até mesmo para a manutenção do modelo equivocado. Mas o que tem prevalecido no País é a opção para manter práticas dilapidadoras dos patrimônios ambiental e social. Assim é que detectamos falta de compromisso com as políticas de recursos hídricos tanto por parte da União, quanto dos estados e do Distrito Federal. Ressalte-se que, embora pouco estruturados, os órgãos públicos que tratam do assunto são dotados de competentes quadros técnicos. Infelizmente, prevalecem as decisões políticas que desprestigiam tais profissionais.

IPPRI_Unesp – Como anda a implementação o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) pelo Brasil?

Di Mauro – Tendo em vista essa falta de compromisso de governantes com as políticas públicas de recursos hídricos, o Singreh é capenga e patina em sua implementação. Mesmo sendo a Lei 9433-97 uma legislação nova, se houvesse efetiva intenção de implantá-la poderíamos ter uma realidade muito melhor. Os organismos do Singreh sob responsabilidade da União, dos estados e do Distrito Federal são estruturados com baixíssimo apoio dos governos centrais. As equipes são minúsculas para a execução das tarefas que lhes são atribuídas. Com isso há setores de usuários que não possuem interesse que o Sistema seja implementado, depredam nascentes, destróem Áreas de Preservação Permanente (APPs), não respeitam as áreas que têm como uma de suas funções a recarga dos lençóis freáticos, despejam esgotos e efluentes “in natura” nos corpos de água, desrespeitam outorgas, quando se preocupam em obtê-las. E a fiscalização a respeito desses abusos é absolutamente inerte. Fica a sensação de que há conivência governamental com tais malfeitos.

A situação dos Recursos Hídricos no Brasil está muito aquém das necessidades e temos imensos riscos de redução das disponibilidades hídricas em quase todas as bacias hidrográficas brasileiras. Mantido o cenário atual na implantação do Singreh e em sua influência nas Políticas de Governos, teremos consequências desastrosas e aprofundamento das crises hídricas para a produção e para o abastecimento público. Quanto aos biomas, que também seriam mantenedores de águas superficiais e subterrâneas, vivemos total falta de apoio dos governos, a exemplo das Unidades de Conservação.

IPPRI_Unesp  Qual o papel das Bacias Hidrográficas?

Di Mauro – As Bacias Hidrográficas são compostas de todos os fluxos e fixos que nela estão inseridos, além das externalidades que influenciam em seu funcionamento. Significa que elas comportam muito mais do que rios e lagos. Todos os componentes naturais, entre os quais as atividades sociais e econômicas, fazem parte da bacia hidrográfica, ou seja, plantios, áreas urbanizadas, estruturas de circulação. Ao reconhecer que os recursos hídricos são indispensáveis para a vida humana e todo seu sistema produtivo, cabe aos agentes construtores nas bacias hidrográficas prepararem um Plano de Trabalho que se dedique à preservação da água e demais componentes que influenciam na sua quantidade e na qualidade. Daí a necessidade de serem obedecidos os instrumentos de gestão de recursos hídricos, ou seja, o enquadramento das águas superficiais em uma classe que permita o seu aproveitamento pelo uso mais exigente, o consumo para ingestão humana e o banho em rios sem risco de contaminação.

A partir do enquadramento serão definidos os critérios para as outorgas. Assim será permitida captação da quantidade de água, dentro dos limites de quantidade e qualidade que mantenham a classe desejada. Portanto deve haver o plano de Recursos Hídricos e, por consequência, o estimulo para que suas diretrizes façam parte dos demais planos nacionais, regionais e locais. Todas as informações devem ficar disponibilizadas para que todos interessados tenham acesso a elas. Isso permitirá um controle social eficiente e eficaz. A bacia hidrográfica, por menor que seja, poderá desencadear processos de conservação, preservação ou de degradação dos canais fluviais e, portanto, da água necessária para consumo humano, animal e para todos os processos produtivos que direta ou indiretamente dela dependam.

IPPRI_Unesp – O senhor foi presidente do Comitê da Bacia PCJ, em São Paulo. O que mudou na gestão das águas paulistas depois da instalação do Comitê em 1998?

Di Mauro – Penso que atualmente a situação das águas superficiais, sub-superficiais e subterrâneas do Estado de São Paulo é crítica, tanto na questão da quantidade, quanto principalmente na qualidade. Os Comitês têm tarefas importantes a cumprir, mas não podem se sujeitar aos interesses governamentais e, muito menos, aos dos usuários que sejam depredadores. Isso depende da credibilidade, da preparação técnica e política dos seus componentes e da presença da sociedade civil organizada. Os Comitês que atuam sem ingerência político-partidário e empresarial em suas decisões e nas temáticas que aborda promoverão avanços. Todos os participantes têm seus interesses, na maioria das vezes legítimos. A articulação integrada com todos os setores, o que inclui a sociedade organizada, permitirá equilíbrio nas decisões. Infelizmente, no Estado de São Paulo, tivemos ações de Secretarias de Estado que decidiram influenciar onde os recursos financeiros dos Comitês seriam aplicados. Claro que os representantes de Estado podem levar suas demandas aos Comitês, mas não cabe a qualquer Secretaria emitir normas para financiar os projetos do Estado, na maioria das vezes, para atender interesses fisiológicos, desconformes com os Planos de Bacias construídos nas Bacias Hidrográficas.

Os recursos provenientes da cobrança pelo uso de recursos hídricos devem ser aplicados conforme o Plano da Bacia e em prioridades definidas pelos Comitês. Mas as direções dos Comitês precisam ter independência em relação às autoridades governamentais e ter a capacidade de efetuar os enfrentamentos, quando for o caso. A subserviência em relação às estruturas governamentais tem gerado dependência em relação a alguns setores de governos ou mesmo de usuários que muitas vezes exercem pressões para atender seus interesses.

Na época em que presidi o Comitê da PCJ (1998 – 2004) tivemos que fazer enfrentamentos com o Estado que queria ficar com uma parte dos recursos da cobrança pelo uso de recursos hídricos. Nosso Comitê foi decisivo para não acatar essa posição governamental. O sistema de recursos hídricos do Estado de São Paulo deve ao PCJ a possibilidade de aplicar os recursos financeiros conforme suas decisões. Vejo que tem crescido demais o controle do Governo do Estado de São Paulo em relação às decisões dos Comitês de Bacias Hidrográficas.

IPPRI_Unesp – As entidade civis e organizações são importantes para a gestão da água? Como elas auxiliam nesse processo?

Di Mauro – O controle e a participação social são indispensáveis na gestão dos recursos hídricos, seja com presenças nos Comitês ou até mesmo em situações eventuais. Há constante crescimento técnico entre os membros dessa representação. Muitas vezes tais componentes são vistos como problemáticos nos processos de tomada de decisões. Mas estabelecem um canal de debates que acrescenta nas decisões. Temos aprendido que o cidadão comum tem muitas contribuições a oferecer. É triste quando setores governamentais e de usuários procuram se apropriar de representantes das entidades civis e suas organizações. Deve fazer parte do Plano de Bacias a capacitação de todos os seus componentes. Na presidência do Comitê do PCJ, em muitos momentos, a sociedade civil exerceu papel de sustentação para decisões e suas concretizações. São olhares de grande valia.

IPPRI_Unesp  Quando propõe a diminuição das Áreas de Preservação Permanente das nascentes de rios de 50 para 15 metros, o Código Florestal, aprovado em 2012, parece andar na contra-mão da produção de água. Como essa legislação influencia na gestão da água?

Di Mauro – Todos nós que atuamos na área de recursos hídricos reconhecíamos que o Código Florestal de 1965, mesmo com suas modificações, precisaria ser revisto. Mas nunca estimulamos o desencadeamento do processo pelo fato de reconhecermos que a correlação de forças no Congresso Nacional tendia para interesses que não possuem a melhor visão sobre os temas ambientais e os recursos hídricos. Até mesmo nas relatorias deputados e senadores fizeram o que interessava para as bancadas ruralistas. Ao final, com aprovação e promulgação dessa legislação, a comemoração ficou por conta dos setores ruralistas mais depredadores. O crescimento desenfreado do desmatamento na Amazônia e no Cerrado brasileiros tem nítidas relações com a sensação de impunidade trazida pelo debate e pelo resultado final. Recentemente está sendo divulgado um documentário que trata da A Lei da Água produzido por WWF, SOS Mata Atlântica, ISA, IDS e Bem Te Vi Sustentabilidade, que demonstra de forma nítida os interesses que estavam em jogo e foram vitoriosos. Os resultados negativos das anistias para desmatadores e depredadores das nascentes e das Áreas de Preservação Permanente (APP) já estão sendo sentidos em diversas regiões, com diminuição da disponibilidade hídrica.

IPPRI_Unesp – Como acredita ser possível conscientizar para a preservação das fontes de água e seu uso sustentável?

Di Mauro – Estamos construindo um projeto de Lei de Iniciativa Popular para preservação da sub-bacia do córrego Bom Jardim, que é responsável pela captação de água que abastece 52% da população urbana de Uberlândia (MG). Situação semelhante acontece na UNESP em Presidente Prudente, que tem um curso, em nível de Mestrado Profissional, vinculado ao setor de recursos hídricos. São iniciativas que estabelecem o debate com todos os setores destas comunidades. No caso da UFU, teremos que reunir 22 mil adesões ao projeto. Não são apenas assinaturas, mas esclarecimentos sobre os motivos e os problemas que estão ameaçando o abastecimento público e mesmo a produção do agronegócio e da indústria localizada nas áreas urbanizadas. Nesse processo estão envolvidas as Escolas Municipais e Estaduais, com o pessoal da educação, pais e comunidade do entorno. É importante a tomada de consciência sobre os riscos a que as populações são submetidas com o consumo de água proveniente de rios que drenam após receber agrotóxicos. Na Região Metropolitana de São Paulo não é possível que tais redes escolares e as Universidades deixem de demonstrar os imensos riscos para a saúde de quem consome água do Volume Morto do Sistema Cantareira. Esses trabalhos são urgentes para que ainda tenhamos tempo em reduzir os danos produzidos pelo sistema e pelo modo de viver imposto em nosso cotidiano.

Assessoria de Comunicação e Imprensa do IPPRI_Unesp
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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