Autópsia jurídica de uma crise, por Oscar Vilhena Vieira

Enviado por Anarquista Sério

Da Folha de S. Paulo

Autópsia jurídica de uma crise

Por Oscar Vilhena Vieira

Três me parecem ser as contradições que estão por trás do atual momento; quem pagará a conta delas?

Crises são fruto, sobretudo, de contradições que têm um forte potencial desestabilizador. Olhando a partir da lente do direito, três me parecem ser as contradições que estão por trás do atual momento.

Em 1988, optamos pela criação de uma democracia generosa, voltada a enfrentar o enorme deficit social que estruturou a sociedade brasileira ao longo de sua história. No início foi difícil: crise fiscal e desmandos de Collor. Com a estabilização, o projeto zarpou. Nestas últimas décadas, muitos foram os avanços, não apenas em termos de bem­estar e de abertura democrática, mas também de emancipação de setores tradicionalmente discriminados. Esse ciclo virtuoso começou a se fechar em torno de 2011, com a retomada da desigualdade, da opacidade da política e da dificuldade cada vez maior de assegurar as expectativas de acesso aos serviços públicos, por parte de cidadãos mais cientes de seus direitos. Essa contradição entre as expectativas de expansão e uma experiência de frustração da cidadania em relação aos seus direitos levou milhões de jovens às ruas, marcando o primeiro ato da atual crise.

Em resposta a essas manifestações, diversas inovações positivas foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico. Aprovou­se uma lei de acesso à informação, ampliando a transparência e a capacidade da sociedade de fiscalizar os atos do governo. Entrou em vigor uma lei de corrupção empresarial, voltada a enfrentar as investidas do poder privado sobre a democracia. Por fim, permitiu­se a delação premiada, que tem se mostrado uma ferramenta poderosa para desvendar o conluio entre as elites empresariais tradicionais e a classe política. Esse processo culminou, agora, com a proibição, pelo Supremo, do financiamento de campanhas por empresas. Essas mudanças, associadas a um fortalecimento paulatino de instituições de aplicação da lei, entram em forte contradição com uma cultura política patrimonialista, incapaz de separar o público e o privado. Os que não perceberam que suas velhas práticas não mais resistiriam à nova transparência prestam contas aos tribunais hoje. Aí o segundo ato desta crise.

A terceira contradição se refere à associação entre presidencialismo de coalizão e a chamada nova matriz econômica. Juridicamente, essa nova matriz significou uma ampliação da discricionariedade do Estado para favorecer determinados setores da economia, por intermédio de desonerações fiscais, juros subsidiados pelo tesouro, financiamento de grandes obras etc. O uso desses mecanismos, dissociados de critérios rígidos de transparência, eficiência e impessoalidade (artigo 37 da Constituição), tiveram um impacto perverso sobre nosso já heterodoxo presidencialismo de coalizão. Com o agravamento da crise fiscal, esse modelo se desintegra. Abre­se espaço para um novo e arriscado presidencialismo: o de colisão.

O que está em questão neste momento é: quem pagará a conta dessas contradições? O ajuste recairá prevalentemente sobre os direitos dos cidadãos mais vulneráveis ou sobre os privilégios dos grupos e corporações entrincheirados no Estado? A crise política alienará ainda mais os cidadãos do processo democrático ou desestabilizará a nossa predatória plutocracia partidária?

Redação

1 Comentário

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  1. A primeira contradição é um

    A primeira contradição é um dos motivos pelo qual é premente a necessidade de se aumentar a produtividade do Brasil, o PIB per capta; apesar de termos uma carga tributária relativamente alta, o valor arrecadado per capta fica muito aquém do que obtém os países desenvolvidos, o que mostra porque não temos ainda condição de oferecer serviços públicos no nível, por exemplo, dos oferecidos em países europeus. E o povo, ao provar um princípio de ascensão social e ter cada vez acesso mais fácil à informação, demanda qualidade cada vez maior dos serviços públicos.

    (E também precisamos racionalizar nosso funcionalismo, em especial o alto custo de nosso legislativo e judiciário. É ridículo que nosso custo por decisão judicial esteja entre os mais caros do mundo.)

    Resolver a segunda contradição, na minha opinião, passa necessariamente por uma desconcentração da mídia. No atual momento a grande mídia defende ferozmente o estado de plutocracia em que se encontra o Brasil, e não por acaso; entre seus maiores beneficiários encontram-se os donos dos grandes grupos de mídia. O melhor meio de se dar um impulso para resolver esse problema seria uma efetiva lei de meios, mas pelo menos a Internet tem a tendência de ir erodindo aos poucos o poder dos grandes grupos, então mesmo com políticos refratários a qualquer controle da mídia ainda há esperança.

    A terceira contradição tem raiz nos mesmos antros de onde nasce a corrupção; a ideia de levar vantagem em tudo, de que pequenos atos ilegais não representam problema, de que tirar vantagem pessoal de suas atribuições profissionais é perfeitamente normal. É daí que surge essa mistura do público com o privado tão danosa ao país. Esse, infelizmente, é o problema que deve demandar mais tempo para ser sanado, por ser questão cultural; provavelmente seriam necessários muitos anos, talvez décadas, de esforço concentrado de conscientização do povo para que algum resultado surja, e os políticos não parecem interessados em treinar o povo para ser verdadeiramente intolerante com a corrupção, a ponto de apontá-la mesmo em amigos e aliados e de evitar praticá-la mesmo quando o prejuízo não for visível.

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