Boaventura: os conceitos que nos faltam

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Outras Palavras

Boaventura: os conceitos que nos faltam

Direitos Humanos, Democracia, Paz e Progresso terão se transformado em biombos para ocultar um mundo cada vez mais desigual, violento e alienado? Mas como superá-los?

Por Boaventura de Sousa Santos

Os seres humanos, ao contrário dos pássaros, voam com raízes. Parte das raízes estão nos conceitos que herdamos para analisar ou avaliar o mundo em que vivemos. Sem eles, o mundo pareceria caótico, uma incógnita perigosa, uma ameaça desconhecida, uma jornada insondável.

Os conceitos nunca retratam exactamente as nossas vivências, até porque estas são muito mais diversas e mutantes que as que servem de base aos conceitos dominantes. Estes são, afinal, os conceitos que servem os interesses dos grupos social, política, econômica e culturalmente dominantes, ainda que matizados pelas modificações que lhes vão sendo introduzidas pelos grupos sociais que resistem à dominação. Estes últimos nem sempre recorrem exclusivamente a esses conceitos. Muitas vezes dispõem de outros que lhes são mais próximos e verdadeiros, mas reservam-nos para consumo interno. No entanto, no mundo de hoje, sulcado por tantos contactos, interações e conflitos, não podem deixar de tomar em conta os conceitos dominantes, sob o risco de verem as suas lutas ainda mais invisibilizadas ou mais cruelmente reprimidas. Por exemplo, os povos indígenas e os camponeses não dispõem do conceito de meio ambiente, porque este reflete uma cultura (e uma economia) que não é a deles. Só uma cultura que separa em termos absolutos a sociedade da natureza, de modo a pôr esta à disposição incondicional daquela, precisa de tal conceito para dar conta das consequências potencialmente nefastas (para a sociedade) que de tal separação podem resultar. Em suma, só uma cultura (e uma economia) que tende a destruir o meio ambiente precisa do conceito de meio ambiente.

Em verdade, ser dominado ou subalterno significa antes de tudo não poder definir a realidade em termos próprios, com base em conceitos que reflitam os seus verdadeiros interesses e aspirações. Os conceitos, tal como as regras do jogo, nunca são neutros e existem para consolidar os sistemas de poder, sejam estes velhos ou novos. Há, no entanto, períodos em que os conceitos dominantes parecem particularmente insatisfatórios ou imprecisos. São-lhes atribuídos com igual convicção ou razoabilidade significados tão opostos, que, de tão ricos de conteúdo, mais parecem conceitos vazios. Este não seria um problema de maior se as sociedades pudessem facilmente substituir esses conceitos por outros mais esclarecedores ou condizentes com as novas realidades. A verdade é que os conceitos dominantes têm prazos de validade insondáveis, quer porque os grupos dominantes têm interesse em mantê-los para disfarçar ou legitimar melhor a sua dominação, quer porque os grupos sociais dominados ou subalternos não podem correr o risco de deitar fora o bebê com a água do banho. Sobretudo quando estão a perder, o medo mais paralisante é perder tudo. Penso que vivemos um período com estas características. Paira sobre ele uma contingência que não é resultado de nenhum empate entre forças antagônicas, longe disso. Mais parece uma pausa à beira do abismo e a olhar para trás.

Os grupos dominantes nunca sentiram tanto poder nem nunca tiveram tão pouco medo dos grupos dominados. A sua arrogância e ostentação não têm limites. No entanto, têm um medo abissal do que ainda não controlam, uma apetência desmedida por aquilo que ainda não possuem, um desejo incontido de prevenirem todos os riscos e terem apólices contra todos eles. No fundo, suspeitam serem menos definitivamente vencedores da história quanto pretendem, serem senhores de um mundo que se pode virar contra eles a qualquer momento e de forma caótica. Esta fragilidade perversa, que os corrói por dentro, fá-los temer pela sua segurança como nunca, imaginam obsessivamente novos inimigos, e sentem terror ao pensar que, depois de tanto inimigo vencido, são eles, afinal, o inimigo que falta vencer.

Por sua vez, os grupos dominados nunca se sentiram tão derrotados quanto hoje, as exclusões abissais de que são vítimas parecem mais permanentes do que nunca, as suas reivindicações e lutas mais moderadas e defensivas são silenciadas, trivializadas pela política do espectáculo e pelo espectáculo da política, quando não envolvem riscos potencialmente fatais. E, no entanto, não perdem o sentido fundo da dignidade que lhes permite saber que estão a ser tratados indignamente e imerecidamente. Que melhores dias terão de vir. Não se resignam, porque desistir pode ser-lhes fatal. Apenas sentem que as armas de luta não estão calibradas ou não são renovadas há muito; sentem-se isolados, injustiçados, carentes de aliados competentes e de solidariedade eficaz. Lutam com os conceitos e as armas que têm mas, no fundo, não confiam nem nuns nem noutras. Suspeitam que enquanto não tiverem confiança para criar outros conceitos e inventar outras lutas correrão sempre o risco de serem inimigos de si mesmos.

Tal como tudo o resto, os conceitos estão à beira do abismo e olham para trás. Menciono, a título de exemplo, um deles: direitos humanos.

Nos últimos cinquenta anos os direitos humanos transformaram-se na linguagem privilegiada da luta por uma sociedade melhor, mais justa, menos desigual e excludente, mais pacífica. Tratados e convenções internacionais existentes sobre os direitos humanos foram sendo fortalecidos por novos compromissos no plano das relações internacionais e do direito constitucional, ao mesmo tempo que o elenco dos direitos se foi ampliando de modo a abranger injustiças ou discriminações anteriormente menos visíveis (direitos dos povos indígenas e afro-descendentes, mulheres, LGBTI; e direitos ambientais, culturais, etc.). Movimentos sociais e organizações não-governamentais foram-se multiplicando ao ritmo das mobilizações de base e dos incentivos de instituições multilaterais. Em pouco tempo, a linguagem dos direitos humanos passou a ser a linguagem hegemônica da dignidade, uma linguagem consensual, eventualmente criticável por não ser suficientemente ampla, mas nunca impugnável por algum defeito de origem.

Claro que se foi denunciando a distância entre as declarações e as práticas e a duplicidade de critérios na identificação das violações e nas reações contra elas, mas nada disso abalou a hegemonia da nova literacia da convivência humana. Cinquenta anos depois, qual é o balanço desta vitória? Vivemos hoje numa sociedade mais justa, mais pacífica? Longe disso, a polarização social entre ricos e pobres nunca foi tão grande, guerras novas, novíssimas, regulares, irregulares, civis, internacionais continuaram a ser travadas, com orçamentos militares imunes à austeridade, e a novidade é que morrem nelas cada vez menos soldados e cada vez mais populações civis inocentes: homens, mulheres e, sobretudo, crianças. Em consequência delas, do neoliberalismo global e dos desastres ambientais, nunca como hoje tanta gente foi forçada a deslocar-se das regiões ou dos países onde nasceu, nunca como hoje foi tão grave a crise humanitária. Mais trágico ainda é o facto de muitas das atrocidades cometidas e atentados contra o bem-estar das comunidades e dos povos terem sido perpetrados em nome dos direitos humanos.

Claro que houve conquistas em muitas lutas, e muitos ativistas de direitos humanos pagaram com a vida o preço da sua entrega generosa. Acaso eu não me considerei e considero um ativista de direitos humanos? Acaso não escrevi livros sobre as concepções contra-hegemônicas e interculturais de direitos humanos? Apesar disso, e perante uma realidade cruel que só não salta aos olhos dos hipócritas, não será tempo de repensar tudo de novo? Afinal, a vitória dos direitos humanos foi uma vitória de quê e de quem? Foi a derrota de quê e de quem? Terá sido coincidência que a hegemonia dos direitos humanos se acentuou com a derrota histórica do socialismo simbolizada na queda do Muro de Berlim? Se todos concordam com a bondade dos direitos humanos, ganham igualmente com tal consenso tanto os grupos dominantes como os grupos dominados? Não terão sido os direitos humanos uma armadilha para centrar as lutas em temas setoriais, deixando intacta (ou até agravando) a dominação capitalista, colonialista e patriarcal? Não se terá intensificado a linha abissal que separa os humanos dos sub-humanos, sejam eles negros, mulheres, indígenas, muçulmanos, refugiados, imigrantes indocumentados? Se a causa da dignidade humana, nobre em si mesma, foi armadilhada pelos direitos humanos, não será tempo de desarmar a armadilha e olhar para o futuro para além da repetição do presente?

Estas são perguntas fortes, perguntas que desestabilizam algumas das nossas crenças mais enraizadas e das práticas que sinalizam o modo mais exigentemente ético de sermos contemporâneos do nosso tempo. São perguntas fortes para as quais apenas temos respostas fracas. E o mais trágico é que, com algumas diferenças, o que acontece com os direitos humanos acontece com outros conceitos igualmente consensuais. Por exemplo, democracia, paz, soberania, multilateralismo, primado do direito, progresso. Todos estes conceitos sofrem o mesmo processo de erosão, a mesma facilidade com que se deixam confundir com práticas que os contradizem, a mesma fragilidade perante inimigos que os sequestram, cooptam e transformam em instrumentos dóceis das formas mais arbitrárias e repugnantes de dominação social. Tanta desumanidade e chauvinismo em nome da defesa dos direitos humanos, tanto autoritarismo, desigualdade e discriminação transformados em normal exercício da democracia, tanta violência e apologia bélica para garantir a paz, tanta pilhagem colonialista dos recursos naturais, humanos e financeiros dos países dependentes com o respeito protocolar da soberania, tanta imposição unilateral e chantagem em nome do novo multilateralismo, tanta fraude e abuso de poder sob a capa do respeito das instituições e do cumprimento da lei, tanta destruição arbitrária da natureza e da convivência social como preço inevitável do progresso!

Nada disto tem de ser inevitavelmente assim e para sempre. A mãe de toda esta confusão, induzida por quem beneficia dela, de toda esta contingência disfarçada de fatalismo, de toda esta paragem vertiginosa à beira do abismo reside na erosão bem urdida, nos últimos cinquenta anos, da distinção entre ser de esquerda e ser de direita, uma erosão levada a cabo com a cumplicidade de quem mais seria prejudicado por ela. Foi por via dessa erosão que desapareceram do nosso vocabulário político as lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas, anti-fascistas, anti-imperialistas. Concebeu-se como passado superado o que afinal era o presente mais do que nunca determinado a ser futuro. Nisto consistiu estar no abismo a olhar para trás, confiante que o passado do futuro nada tem a ver com o futuro do passado. Esta a maior monstruosidade do tempo presente.

 Imagem: Linda Ramsay, Homem, Lua, Binóculos

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Menos direitos e menos humanos. Até quando?

     

    “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva.” (“Elegia 1938”, de Carlos Drummond de Andrade (poeta e gênio brasil-mineiro))

     

    O texto é ele próprio demonstração do ato de estar à beira do abismo olhando para trás, e o autor o faz para quase se render a dizer que os conceitos progressistas, tanto instrumento quanto produto das lutas contra opressão e injustiça no século XX, perdem sua respeitabilidade no confronto com a realidade, que escancara a precária e provisória vitória dos adversários daqueles, inclusive com a apropriação, como parte do butim, dos avanços e vitórias simbólicas, discursivas, práticas e comportamentais destes conceitos e daqueles adultos ou crianças, que sob sua inspiração, teórica ou espiritual, controem ou orientam suas vidas (vídeo 1), pelos seus oponentes, como forma de (I) neutralizar seu potencial político de oposição e proposta de alternativa na disputa pública por legitimidade e adesão, (II) revestir-se de modernidade como disfarce de sua perfídia (“não pode com eles, junte-se a eles”, e numa imagem que me é muito cara, “o cavalo de Tróia”, troque, ou faça, o combate pelo aliciamento), (III) ao se apossarem os retrógrados dos instrumentos dos oponentes, deixar a estes desarmados, e se estes forem honestos o suficiente, passarão a buscar em si próprios as causas de suas derrotas, mas com excesso de zelo passam a desconstruir por si todo o edifício arduamente levantado (como se alguém que foi expulso de sua própria casa, ainda que desgastada e precisando de reforma, ao invés de reivindicar seu direito de retomada e denunciar o ato desonesto de usurpação, passasse a demoli-la e apedrejá-la como forma de por fim à disputa: parece sensato?)

    É inegável que diante das barbaridades que a desumanidade pratica diariamente (vídeo 1), das quais muito pouco conhecemos – conseguiríamos suportar sem dano emocional acompanhá-las com frequência? -, parece piada de mau gosto defender conceitos e ideias que mais parecem miragem no deserto, um moinho de vento com lâminas afiadas. Mas o que nos resta se desistirmos também desta trincheira conceitual, que realiza o freio psicológico quando nos damos conta de que somos potencialmente tão brutais, imperfeitos e injustos e propensos à agressão e violência quanto aqueles que abominamos, ou pior, à indiferença?

     

    “Todo o progresso é precário, e a solução para um problema coloca-nos diante de outro problema.” Martin Luther King

    http://www.citador.pt/frases/citacoes/a/martin-luther-king)

    “Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” Nietzsche

    http://www.citador.pt/frases/citacoes/a/friedrich-wilhelm-nietzsche/20

     

    Sobre direitos humanos, não tenho o conhecimento teórico do autor sobre o tema, mas como leiga interessada sempre me pareceu que sua defesa se deu exatamente como território onde “direita” e “esquerda” não estão em disputa, porque tais direitos seriam essenciais demais para serem postos em discussão, sob qualquer argumento, como dogmas benéficos da civilização. Não será o cenário de sua negação real cada vez mais grotesca mais um motivo para sua reapropriação pelos que de fato se identificam com sua mensagem original?

    Não é o mecanismo bem capitalista de cooptar tudo que se lhe opõe de modo a se tornar inexpugnável o melhor objeto de crítica e não uma autocrítica envergonhada de quem deixou seus ideais e disputas tão inacessíveis ao cidadão comum de modo a serem publicitariamente capitalizados pelos “apolíticos sem escrúpulos”? Por exemplo, um banco laranja do Brasil, a quem tenho especial ojeriza pela hipocrisia tão festiva, que recentemente lançou campanha com todo o discurso e aparência do empoderamento feminino e negro para fazer a “lavagem de imagem” de sua empresa de usura lucrativa: onde está o problema?, no discurso original, nas lutas ou na sua captação cínica mas coerente na função perversa de subversão por máquinas feitas para “higienização” ideológica e mercantilização absoluta? Não é este o jogo? A armadilha tão bem notada pelo autor (* fiz uma digressão, abaixo, rs) é na verdade o modo de ser dos processos de dominação, como forma de paralisar qualquer reação contrária; não seria o maior erro não ter incluído essa dimensão na estratégia de luta, e não é próprio daqueles que se dedicam a lutar por direitos, porque seres humanos, no desejo inconsciente de paz perpétua, considerarem que a trégua é permanente quando é apenas ardil? A impermanência não é apenas um conceito budista ou religioso ou da física (entropia), está ao alcance de qualquer um, mas é da natureza humana dos falíveis se enganar que os equilíbrios precários sejam duradouros o suficiente para que se incorporem à vida e se tornem imunização definitiva, e neste descompasso temporal entre a luta e a metabolização social da conquista é que os adversários da paz e da vida digna agem diuturnamente com a vantagem de que têm quase tudo a seu favor, é só continuar remando na inércia…

     

    Em uma entrevista no programa canadense The Agenda with Steve Paikin (video 2, a partir de 21m15s a 23m35s) um advogado de direitos humanos, Payam Akhavan, fez uma provocação interessante ao dizer que a participação das chamadas “celebridades” e outras figuras públicas em eventos que defendem causas nobres desvirtuam o que significa a luta real por direitos humanos, tirando proveito próprio ao assumir certos discursos que lhes dão visibilidade pessoal e mercadológica e lustram sua reputação, com pouco ou nenhum resultado positivo prático para as causas adotadas, e faz a crítica que realmente considero fundamental, de que deve haver um enfrentamento corajoso dos temas dos direitos humanos, sem glamourização e com respeito à situação real dos envolvidos.

    Por fim, acho que precisamos aproveitar situações de retrocesso para esse enfrentamento e o desmascaramento daqueles que, aparentemente alinhados às causas, as prejudicam, consciente e voluntariamente ou não. Estamos todos aprendendo, ou deveríamos. E já que a educação, por vias tortas, tem ocupado o debate público em situações limítrofes como o projeto neofascista “escola do partido único” (vendido como escola sem partido), a reforma destrutiva do ensino médio e recentemente o previsto corte de verbas para pesquisadores, é importante pensar também na educação em sentido amplo, permanente e feita para a vida e para a convivência. Acho que um dos principais responsáveis pelo retrocesso, que é global, é a ausência de educação social para a vida cidadã, pensa-se erradamente que a educação se resume aos processos formais e específicos de escolarização ou de pesquisa acadêmica ou ao que se recebe em casa, e se abandonam pessoas e temas que estão fora de ou extrapolam esses circuitos (sexualidade e gênero, por exemplo, são certamente assuntos que não podem ficar restritos a esses ambientes, precisam da arena pública, como tudo que é de interesse coletivo, para arejá-los, colocá-los à prova e efetivá-los) à própria sorte, que é o azar de ficarem à mercê da propaganda (que já se confunde com a comunicação social e com a cultura), como processo educativo elementar. Se até entre os acadêmicos e estudiosos há dúvida, confusão, discordância e oposição ao tratar dos conceitos progressistas citados pelo autor, como se pode esperar que por passe de mágica a população leiga ou desinteressada possa realizá-los na prática com a perfeição esperada pelos experts, sem que o processo de educação civil seja feito de igual para igual?

     

    * – mas pouco desenvolvida; teria sido melhor se debruçar sobre os motivos dessa falência da esquerda e dos ativistas sociais que construíram riquezas “weaponizadas” (usadas como arma) contra si próprios (como num cassino em que tudo que foi amealhado, num lance de astúcia do oponente, vira débito com cálculo de juros exponenciais …), de como o sistema capitalista e sua indústria cultural (na linha de frente, as comunicações tradicionais (jornais, revistas, TV, cinema comercial) e recentes (internet e suas aplicações)) são de fato um cacossistema (assim mesmo, um sistema “feio”) que vive de dissimulação, cujo enfrentamento requer que as lutas e conceitos sejam traduzidos de seu universo próprio – limitado a especialistas – para alcançar o cidadão comum naquilo em que ele pode se identificar ou compreender nos seus próprios termos e experiências… e colocar em prática com a certeza de que pode fazer a diferença, por mínima que pareça (o caso recente da morte de uma jovem advogada vítima de violência doméstica colocou esta questão em relevo, daquilo que pode e deve ser feito pelo cidadão comum quando se defronta com tais situações de violação dos direitos humanos). É difícil, controverso, amedronta, não há respostas prontas nem definitivas, mas não há alternativa que não a preparação para agir quando a vida impuser, ou porque está sob risco de ser feita indigna. 

     

    Vídeo 1 – programa Democracy Now (EUA, Pacifica) – “A Slaughter in Silence: How Trump’s “America First” Policy Enabled Ethnic Cleansing in the DRC” (Uma matança em silêncio: como a política “America em primeiro lugar” de Trump possibilitou “limpeza” étnica na República Democrática do Congo”, em tradução livre), entrevista com o jornalista Nick Turse, autor de artigo sobre o tema.

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=uKESdSYmXlI%5D

     

    Vídeo 2 – programa Agenda with Steve Paikin (Canadá, Ontário)- “A new world order in the making” (Uma nova ordem mundial em construção, em tradução livre), entrevista com Payam Akhavan.

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=ICocEjeGTEg%5D

     

    Vídeo 3 – Baiana System – Lucro (a esperteza que toscos generais não alcançam, nem com muita

    malandragem… / a trilha sonora final da redação deste comentário, by rádio UFMG, pois como disse em

    outro acerto Nietzsche, “a vida sem música seria um erro”.)

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=y7NJN0MFnTw%5D

     

    Abaixo, ambrosias mineiras da lavra de Carlos Drummond de Andrade.

     

    O CONSTANTE DIÁLOGO

     

    Há tantos diálogos

    Diálogo com o ser amado
    o semelhante
    o diferente
    o indiferente
    o oposto
    o adversário
    o surdo-mudo
    o possesso
    o irracional
    o vegetal
    o mineral

    o inominado

    Diálogo consigo mesmo
    com a noite
    os astros
    os mortos
    as idéias
    o sonho
    o passado
    o mais que futuro

    Escolhe teu diálogo
    e
    tua melhor palavra
    ou
    teu melhor silêncio
    Mesmo no silêncio e com o silêncio
    dialogamos.
     

     

    Carlos Drummond de Andrade
    In Discurso de Primavera & Algumas Sombras
    José Olympio, 1977
    © Graña Drummond

     

     

    O NOSSO TEMPO (trecho)

     

    V

    Escuta o horrível emprego do dia
    em todos os países de fala humana,
    a falsificação das palavras pingando nos jornais,
    o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo
    [ com flores,
    os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
    a constelação das formigas e usurários,
    a má poesia, o mau romance,
    os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
    o homem feio, de mortal feiúra,
    passeando de bote
    num sinistro crepúsculo de sábado.

     

     

    Carlos Drummond de Andrade
    In A Rosa do Povo
    José Olympio, 1945
    © Graña Drummond

    CONTOS PLAUSÍVEIS

     

    A OPINIÃO EM PALÁCIO

    O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.

    ― Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.

    Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.

    Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:

    ― Preciso de ti.

    A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.

    ― Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado. ―Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

    E virando-se para os serviçais:
    ― Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
     

    A VOLTA DO GUERREIRO 

    Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos amores.

    Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu, dizendo: 
    ― Não quero mais ver a guerra diante de mim.
    ― Eu não sou a guerra, sou o amor, querido ― respondeu-lhe a mulher, assustada.
    ― Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.
    ― Então farei carícias lentas e suaves. 
    ― O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme. 
    ― Ficarei quieta, não farei nada. 
    ― Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição. 

    Separaram-se para sempre.

    DESEMPREGO

    ― Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do Sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.
    ― Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.
    ― Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.
    ― E que foi feito das duas outras?
    ― A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas… 

    EXCESSO DE COMPANHIA

    Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda. 

    Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos. 

    Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas. 

    ― Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais. 

    Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
         
     

     

    Carlos Drummond de Andrade
    In Contos Plausíveis
    José Olympio, 1985
    © Graña Drummond

     

    (Fonte: http://www.algumapoesia.com.br/drummond.htm, consulta em 07/08/2018)

     

     

     

    Sampa/SP, 07/08/2018 – 17:52  (alterado às 17:56 e 18:14)

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