Eu renuncio, por Fabiana Cozza

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Eu renuncio

por Fabiana Cozza

O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo correta. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.

Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.

Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.

Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.

Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas…

Ao lado de vocês, irmãos.

Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.

Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.

Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.

Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.

Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.

Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.

Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.

Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.

Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.

Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá.

Fabiana Cozza

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

25 Comentários

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  1. Ódio negro
    Muito, muito triste com tudo isso que aconteceu com Fabiana Cozza.

    Grande artista, alma iluminada.

    Se a alma não tem cor, como disse Chico César, o fascismo também não.

    Há fascistas de pele branca e há fascistas de pele preta. Ambos, subespécie humana. Fascistas negros atacaram Cozza para calar Ivone Lara. Alguma verdade há nas duas artistas de primeira grandeza que os incomoda profundamente.

    Nenhuma violência fascista se justifica. Repúdio total a esses canalhas racistas.

    1. Patrulhamento da cor da pele

      Embora indicada pela família como a intérprete que dona Ivone mais gostava e terem relações afetivas de família, setores de ´lideranças raciais negras´, iniciaram uma campanha sob alegação que Fabiana Cozza não teria melanina suficiente para a honrosa personagem… Por ser uma ativista contra o racismo ela se sentiu patrulhada e impedida da missão artística.

      Renunciou denunciando o patrulhamento de cunho racialista… foi isso!

       

      1. Obrigada pelo esclarecimento, Militao

        Eu nao tinha entendido nada. Depois li mais posts e ficou mais claro. É meio triste isso. Eu entendo a necessidade de representaçao, a demanda por intérpretes negras. Mas a coisa foi posta num nível absurdo.

    2. #

      Criticaram a indicação de Fabiana para interpretar D. Ivone, sob o argumento de que ela não é negra “o suficiente” para isso.

      Ou seja, negro discriminando negro.

      Vai mal este país…

      Alias, cabe perguntar aos negros racistas: qual é o problema com os pardos? Estragaram a raça?

       

  2. Espero que a repercussão

    Espero que a repercussão desse episódio deplorável coloque em evidência a intolerância e os preconceitos desses radicais que se apresentam como lutadores contra a intolerância e os preconceitos dos que têm menos melanina do que eles. Os argumentos dos críticos da escolha de Fabiana Cozza para interpretar Dona Ivone Lara são de uma indigência mental assombrosa. Por acaso, algum desses fariseus do racialismo reverso considerou “inadequada” a atriz negra Bárbara Sut para interpretar a Julieta de Shakespeare, na montagem em cartaz no Rio? Não é um avanço na luta contra os preconceitos? E quem ousaria criticar a escolha da grande soprano Jessye Norman para uma ópera de Wagner? O produtor que a recusasse por ser negra seria execrado e não duraria muito no meio. Nos Estados Unidos, atores negros interpretaram os Pais Fundadores do país, que eram todos brancos e vários deles escravocratas, no musical “Hamilton”, e apenas os intolerantes de lá torceram o nariz para a licença artística. Lição de casa: a grande arte deve ser regida pelo talento, não pela proporção de melanina na pele. Por que é diferente com Fabiana Cozza?

    Em tempo: não há artista com mais qualificações para o papel. 

    E, a despeito da polêmica, torçamos para que o musical seja um sucesso; Dona Ivone Lara e seus muitos admiradores merecem. 

  3. Lamento por Fabiana Cozza e por nós, humanos de qualquer cor!
    Meus amigos do ´movimento negro´ mesmo concordando com a argumentação persistem apoiando as políticas públicas em bases ´raciais´, as tais ´cotas raciais´, e, conforme a boa sociologia trata-se simplesmente de políticas racistas com objetivo de outorgar e excluir direitos com base no falacioso pertencimento racial: a identidade racial sempre interessou ao projeto do racismo em todos os cantos do mundo. A polêmica que viola a dignidade humana de Fabiana Cozza, mais que sua dignidade artística, a meu ver, atinge a todos os brasileiros, por já ser fruto das leis de segregação de direitos raciais: elas vieram afirmar, através da poderosa voz do estado, o direito a ter direito através das falaciosas identidades raciais exclusivistas. Os termos da renúncia e as razões que a impediram de viver a honrada personagem de D. Ivone Lara, e as que motivaram o impedimento é uma tragédia anunciada: a vitória do racismo que tem por núcleo nos impor divisões por pertencimentos raciais e outorgas de direitos identitários dele decorrentes. Eis a nefasta presença de ´líderes raciais´ na defesa da exclusividade racial. A verdade é que um problema complexo como o racismo e suas discriminações não serão resolvidas por soluções simplistas facilmente acolhidas por governantes que são, culturalmente, racistas: retirar direitos de brancos pobres para entrega-los a pretos e pardos também pobres, sem nenhum investimento orçamentário, é solução simplória demais para a complexidade de 300 anos de racismo. Em Ruanda e Congo, na colonização alemã, a partir de 1880, foram outorgados direitos distintos a Tutsis e Hutus, eram povos que conviviam no mesmo território por milhares de anos. Na Índia, as cotas para ´Dallits´ vigora desde 1910 outorgada pelo império britânico. Eles continuam à margem da sociedade indiana, são os ´intocáveis´. A tragédia de Ruanda, vista em filmes e livros, retratam nos anos que ainda vivemos, a maior guerra civil da tão sofrida história africana: são os frutos de identidades raciais em vez da consideração da identidade humana. Mais de quatro milhões de mortos. Chacinas e genocídios alimentados pelo ódio agora vigente entre Tutsis e Hutus. Milhões que ainda vagueiam em acampamentos de refugiados na África Central. Nem precisa se reportar as leis de apartação dos EUA, inspiradoras de Hitler e das Leis de Nuremberg, e copiadas com requintes pelos Boers na África do Sul. Não há na história humana nenhuma experiência exitosa de segregação de direitos em bases raciais que não tenha resultado em tragédias, guerras e genocídios. Por isso, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao final da 2a guerra mundial, proibiu qualquer estado filiado a de produzir e promulgar leis em bases raciais: o Brasil, por seus governantes, parlamentares e Suprema Corte de Justiça colocaram a nação brasileira na contra-mão da história. O emprego de políticas públicas de identidade racial é a apologia do racialismo que tem na identidade racial a sua matéria prima. Foi o racialismo a base ideológica do racismo a partir do século 18. O racialismo veio se contrapor â poderosa força do iluminismo que afirmava: todo homem nasce com iguais direitos à vida, à liberdade e à igualdade.  Trata-se daquele mesmo racialismo repudiado por Nelson Mandela, em sua autodefesa no Tribunal da Africa do Sul, em 1963, quando foi condenado à prisão perpétua e lá permaneceu por 27 anos quando afirmava ao Tribunal: “O ponto que desejo mencionar em meu argumento não se baseia em considerações pessoais, mas em questões importantes que vão além do escopo do julgamento atual. Também gostaria de mencionar que, no curso dessa solicitação, me referirei frequentemente ao homem branco e aos brancos em geral. E enfatizava MANDELA:  Quero deixar claro que não sou racialista e detesto racialismo, porque o encaro como algo bárbaro, quer proveniente de um preto*, quer de um branco. A terminologia que empregarei é forçosa dada a natureza da solicitação que estou fazendo.” (a tradução diz ´negro´ o original ´black´). (https://mamapress.wordpress. com/2013/12/06/sou-um-negro-no-tribunal-dos-brancos-disse-mandela-em-julgamento-materia-da-folha/). Quando em 1551/1552, no histórico Tribunal de Valladolid, convocado pelo Rei Felipe, de Espanha, debateram-se de um lado o Bispo Las Casas, defendendo a proibição da escravização dos nativos do novo mundo e de outro o filosofo Jean de Sepúlveda, defensor da escravidão, definiu-se o direito do colonizador espanhol escravizar e desumanizar os nativos das Américas (e da África). Ali eles estavam sonegando identidades humanas por igualdade, trocando-as por identidades raciais de desiguais.  “Se colonizador e nativos eram desiguais mereciam não mereciam receber o mesmo tratamento”, ensinava Sepúlveda exibindo as Lições de Aristóteles a seu filho Nicômaco (Ética a Nicômaco). Bartolomei de Las Casas, foi o primeiro Bispo da simbólica Chiapas, atual México, argumentava que todos os humanos eram filhos de Deus e mereciam igual tratamento e evangelização para conhecerem a palavra de Deus. O filósofo Sepúlveda, estudioso de Aristóteles onde bebeu a doutrina de que, se havia homens livres e escravos ´por natureza´: “o homem livre merecia tratamento desigual, sendo essa a verdadeira igualdade”, bradava.  Essa tese aristotélica está consagrada na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, desde 2012, quando julgou por unanimidade conforme a Carta Cidadã que o estado pode outorgar leis de segregação de direitos raciais – as ´cotas raciais´ – tratando desigualmente a jovens pretos, pardos e brancos em nome de uma ´verdadeira igualdade´.  A despeito do art. 19 da CF/1988, desconsiderado pela Corte Suprema, onde está consagrado pelo constituinte originário:  “Constituição Federal de 1988 – Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”: (…) Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II – recusar fé aos documentos públicos; III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. A despeito da letra objetiva do art. 19 da nossa Carta Cidadã a Suprema Corte, decidiu, reitere-se, por unanimidade, que o art. 19 não merecia ser respeitado em nome do princípio aristotélico – conforme ficou consignado nos fundamentos do Acórdão do STF – a mesma doutrina defendida por Jean de Sepúlveda, legitimando a escravidão, consagrado no Voto do Ministro Ricardo Lewandowski, textualmente, que em nome das lições de Aristóteles, o tratamento desigual entre livres e escravos é o que configura a verdadeira igualdade entre pretos, pardos e brancos: “se os homens não são iguais merecem tratamento desigual” exatamente conforme ensinou o escravista filósofo de Atenas, a cerca de 2.400 anos.  Toda unanimidade é burra já nos ensinou Nelson Rodrigues e o fazia com base no antigo direito hebraico consagrado no Torá. A do nosso Supremo, também. Mas quando a Corte Suprema, sob aplausos das esquerdas, vilipendiou o art. 19 da CF, abriu-se ali o precedente para que viesse a violar a constituição em outras normas fundamentais, tal como a da presunção da inocência até o trânsito em julgado. A solidariedade à Fabiana Cozza e aos familiares de Dona Ivone Lara, digna de todas as homenagens e reverência. O repúdio ao racialismo que somente produzirá iniquidades e pretensiosos ´líderes raciais´ já que não conseguem serem líderes, simplesmente!

    1. Argumentação impecável.

      Argumentação impecável. Deveria ser impressa, pendurada em paredes e lida diariamente por esses radicais do racialismo, que produziram um dos episódios de intolerância e preconceito mais vergonhosos dos últimos tempos, e que em nada contribuirá para a luta legítima e necessária contra as intolerâncias e preconceitos irracionais que ainda infelicitam o nosso País.

  4. #

    No país mais miscigenado do planeta Terra, o racismo, tanto o racismo branco quanto o racismo negro abominam a miscigenação.

    É muito triste isso.

    Para esses, miscigenar “estraga a raça”.

    Solidariedade à Fabiana, mais uma vítima da milenar ignorância inerente ao racismo.

     

  5. #

    Ou seja: resolveram que ela não é negra “o suficiente” para interpretar dona Ivone Lara.

    Este é um país estranho… Pretos são discriminados pelos brancos, brancos são discriminados pelos negros, mas os pardos… ah! Estes são discriminados por todos.

     

  6. #

    Está em O Príncipe, de Maquiavel: “dividir para conquistar”.

    Enquanto nos dividimos entre brancos, negros e agora pardos, ricos e pobres, torcedores de um time e de outro, evangélicos, católicos e ateus, direita e esquerda, os abutres do dinheiro e do poder nos manipulam.

    Decisões muito importantes são tomadas pelos poderosos, como por exemplo, sobre a LDO ou o PPA, enquanto estamos discutindo sobre o campeonato brasileiro de futebol ou então sobre as novelas, ou até mesmo sobre qual movimento racista devemos nos filiar.

     

  7. Militãocia

    Fez bem a militância em protestar. É um caso corriqueiro de branqueamento. Como fizeram com o Machado na propaganda da Caixa e fazem desde sempre. Como a separação aristotélica de corpo e alma. O corpo negro está na pauta porque foi ele o instrumento de opressão etc. 

    1. Não foi o corpo ´negro´, foi a ´raça negra´…

      Tadeu,

      Você cuidou de evidenciar aqui o grande equívoco: conforme os debates do Bispo Las Casas x Jean de Supúlveda no Tribunal de Valladolid (1551/1552) onde tudo começou e foi legitimado, não era o ´corpo negro´, nem o ´corpo dos nativos´ que estava em debate. Era a condição de poder ou não escravizar os nativos do novo mundo pelo europeu colonizador. Até então não existia o conceito de raça, existia apenas a condição de colonizador e povos nativos.

      O ser ´negro´, até então, não simbolizava condição humana, mas apenas a condição de escravos. No Brasil, até a lei que proibiu a escravidão de índios, ´Diretório do Índio´ de 1755, existiam os ´negros da terra´ e os ´negros africanos´, portanto, ´negro´ não é sinônimo da nossa condição de humanos de cor preta, é condição social de ser livre ou ser escravizado.

      Era a condição humana. O europeu colonizador deixava de ser simplesmente o opressor pela violência e passava a ser portador de uma condição especial: era a ´raça superior´, a raça branca.

      O que se estabeleceu em Valladolid, pela tese consagrada por Jean de Sepúlveda é que o portador do ´corpo branco´ tinha legitimidade ou não para a opressão do ´corpo dos nativos´ que eram corpos ´de cor´, daí se consagrando o início da hierarquia na classificação dos humanos por ´raças´ diferentes. O corpo ´branco´, deixava de ser o corpo do opressor colonizador e passava a ser o ´corpo de raça branca´, a ´raça superior´ e com direito de opressão sobre as demais raças na subordinação hierárquica que se estabeleceu nos séculos seguintes.

      O racialismo que tem no colorismo sua base nuclear de legitimação é o instrumento para a manutenção da crença racial e, por conseguinte, da manutenção da classificação hierárquica que os ideais do racismo estabeleceram.

      Portanto, não era o corpo de pretos o instrumento de opressão, era a ´raça negra´, por ser a raça inferior, submetida à raça superior que, conforme a construção da ideologia do racismo, por essa condição ´racial´ podia ser oprimida, violentada, sequestrada e submetida a escravidão vitalícia e transmitida pelo ´sangue´ a sua prole, condição inédita na antiga escravidão.

       

      1. Achille Mbembe

        Militão, a leitura do livro recém publicado A crítica da razã negra, do Achille Mbembe lhe será extremamente proveitosa, pois ele explora esse processo, descrito por você, que criou a raça negra. Em tempo: para Mbembe, a identidade negra jamais deve ser fixada, pois trata-se de uma identidade-devir.

        1. Agradeço a indicação Collingwood..

          Já li algumas resenhas do livro de Mbembe e, felizmente, ele vem contemplar a minha precária análise histórica do racismo e do equívoco que os afro-brasileiros estão fazendo com a naturalização da condição de serem ´negros´, em vez da luta pela incondicional condição de humanos, inteiramente.

          O que o professor afirma com erudição acadêmica eu tenho afirmado com respaldo na convicção política de ser um antirracista radical: não admito qualquer tipo de racialismo, quer de pretos quanto dos brancos. E o episódio da Fabiana Cozza vem nos revelar os frutos dessa semente envenenada.

          Vou procurar o livro, não sei se tem edição brasileira, mas minha irmã está fazendo pós-doutorado na Universidade de Coimbra e vou pedir-lhe se não encontra-lo aqui.

          Será muito proveitoso estou certo disso. Grato, abraço.

           

    2. #

      Mais preconceito que os negros, sofrem os pardos como Fabiana.

      Estes sofrem preconceito de lado a lado.

      Como se a miscigenação fosse algo errado. Ignorância pura.

       

       

    3. onde ficam os mestiços?

      A questão é a seguinte: Machado de Assis, Carlos Marighella e Dona Ivone Lara foram pessoas reais e públicas; suas fotos (e vídeos, no caso da última) todos puderam e podem acessar. Portanto, fica difícil engolir Fabiana fazendo Dona Ivone e Seu Jorge fazendo Marighella – uma parda fazendo uma negra e um negro fazendo um pardo. (Não gosto da palavra pard@, prefiro mulat@, mas parece que mulat@ não pode pelos cânones politicamente corretos atuais.) 

      Quando puseram um branco para fazer Machado de Assis no comercial da Caixa, houve uma justa grita. O que fizeram? Gravaram novo comercial com um ator negro no lugar do branco. Mas Machado era pardo. E atores pardos não faltam neste Brasil, que oferece poucos papéis para eles. Onde ficam os mestiços nessa briga? Qual o seu lugar de fala? São negros, dirão. Mas acabam não se encaixando na visão binária que aparentemente se impõe inclusive no movimento negro. 

      Num país de mestiços, os mestiços mais claros, especialmente os mais abonados, julgam-se brancos (foi interessante ver Guilherme Boulos dizendo-se branco a Glenn Greenwald – e se ele se dissesse negro, provavelmente estaria sendo linchado). Mas e os mestiços de pele mais escura? Onde ficam? Podem dizer-se negros, mas não podem representar ícones como Machado, Marighella e Dona Ivone?     

  8. A cor da pele deve ter menos significância do que a cor dos olho

    “Until the philosophy which hold one race
    Superior and another inferior
    Is finally and permanently discredited and abandoned
    Everywhere is war, me say war

    That until there are no longer first class
    And second class citizens af any nation
    Until the color of a man’s skin
    Is of no more significance than the color of his eyes
    Me say war…”

     

    Bob Marley, War

    1. Bob Marley, versão em português…

      Guerra

      Até que a filosofia que torna uma raça superior
      E outra inferior, seja finalmente permanentemente
      Desacreditada e abandonada havera guerra Eu digo guerra

      Até que não existam mais cidadãos
      De 1º e 2º classe em qualquer nação
      Até que a cor da pele de um homem Não tenha maior significado que a cor
      eu digo gerra

      Até que todos os direitos básicos
      Sejam igualmente garantido para todos
      Sem privilégios de raça, terá guerra

      Até esse dia o sonho da paz final
      Da almejada cidadania e o papel
      Da moralidade internacional
      Não sera mais que mera ilusão
      a ser percebida e nunca atingida
      Por enquanto havera guerra, guerra

      Até que os ignóbeis e infelizes regimes
      Que prendem nossos irmãos em Angola
      Em Mozambique, África do Sul escravizada
      Não mais existam e sejam destruídos
      Haverá guerra, eu disse guerra

      Guerra no leste, guerra no oeste
      guerra no norte, Guerra no sul
      guerra, guerra, rumores de guerra

      E até esse dia, o continente africano
      conhecerá a pazNós africanos lutaremos
      Achamos isto necessário e sabemos que devemos ganhar
      E estamos confiantes na vitória

      O bem sobre o mal, bem sobre o mal
      O bem sobre o mal, bem sobre o mal

  9. Semântica parda
    Hoje saiu uma pesquisa (na UOL) que houve um aumento de 10% de morte de jovens negros, mas quando você vai se inteirar da mesma, você descobre que os “negros” da manchete incluem também os pardos. Ué, as pessoas precisam se decidir: pardo é negro ou branco? Ou será que o pardo só serve para inchar as estatísticas, mas não serve para cotas e produções culturais?

    1. Pretos + pardos = negros

      Prezado,

      Conforme a doutrina racialista, o ´negro´ corresponde a uma raça, a ´raça negra´, conforme foi estabelecido pelos ideais do racismo.

      E essa ´raça negra´ é constituida pela soma das pessoas de cor preta e as de cor parda, porém, conforme a ocorrência de Fabiana Cozza, de fato, para os defensores da identidade racial o colorismo tem significado especial: os pardos simbolizam a miscigenação – mistura de gens – e conforme ensinava a eugenia, a mistura de gens – miscigenação – ou mestiçagem – mistura de raças resulta em ´raça impura´, e conforme o atual movimento negro, simboliza o genocídio ´racial´, quer seja do branco que deixa de ser branco, que do preto que deixa de ser preto.

      Enfim, é o racismo retroalimentando as convicções de racistas.

       

  10. “Diversas mas não dispersas” (Marielle Franco, In memoriam)

    1 – Aqui relembro o livro, que não li mas ouvi dizer que é muito bom – parafraseando um apresentador famoso e politicamente incorreto para ter audiência -, “A vítima tem sempre razão?” (Editora Todavia), de Francisco Bosco, em que ele discute (não li mas zapeei o índice de temas e algumas críticas sobre o livro) exatamente o cerne, digamos, antropo-sociológico dessa polêmica, as formas de reivindicação dos excluídos e o efeito dos novos meios eletrônicos de informação e comunicação, acessíveis, pervasivos e de consequência imediata, mas também opressivos, limitado(re)s e no limite, antidemocráticos. 

    2 – No caso específico da alegação dos críticos, soube ontem no “Papo com Zé Trajano” (Rede TVT, canal 44) que o termo para a prática que, segundo eles, a indicação de Fabiana Cozza reforçaria e representaria, é o “colorismo”. Fui pesquisar e confirmei minha opinião original sobre o assunto, que é de que o problema aqui não é de legitimidade das alegações de ambos os lados, que parece evidente e aí o nó difícil de desatar, mas se a forma como a reivindicação é posta, e imposta, não comete a discriminação que alega combater.

    Por experiência pessoal de convivência e observação do mundo, e de meu próprio comportamento de mulher branca da periferia, não se pode negar que há sim discriminação maior de pessoas com pele mais escura, como uma espécie de acomodação “visual” e social com pessoas que foram historicamente mais assimiladas à sociedade, por inúmeros motivos, conforme o grau de aproximação do espectro “branco” da tonalidade de pele e classe social ou do espectro “preto”. E nem sempre por preconceito deliberado, mas porque a sociedade foi construída, maquiavelicamente, assim, quanto mais preto e pertencente ao grupo de excluídos padrão, mais escondido dos olhos das pessoas por falta de acesso a atividades, locais, funções, cargos, situações de destaque – observe o tom de pele das pessoas com quem você trabalha, convive, vê nos shoppings ou nos extremos de exclusão, e constate por si mesmo; e “apenas” para um recenseamento demográfico neutro, sem considerar outras questões. Essa a perversidade residual, ou estrutural, do racismo e das ações de branqueamento – uso esse termo em oposição à miscigenação voluntária, pois nem toda a união interracial é/foi fruto de violência, graças a Deus – de que o país foi e continua sendo vítima, o que acabou, num efeito rebote, promovendo cizânia entre os não-brancos e reação dos que são os excluídos entre os excluídos, os negros de pele mais escura, e dentre esses, os que acumulam “critérios de subalternidade”, as mulheres, e aqueles que não atendem a padrões sociais (renda, formação escolar, talentos e habilidades acima da média ou de interesse econômico, personalidades mais “diplomáticas”) e estéticos preferenciais da chamada, também de maneira pejorativa muitas vezes, “branquitude”.

    Exemplo: a dançarina de samba vencedora do concurso para representar a Globeleza, em 2014, Nayara Justino, concorreu com outras candidatas de tom de pele mais claro e biotipo sócio-cultural mais “popular” (falantes, sensuais, “meritocráticas”); perdeu na escolha dos jurados, dentre os quais o cantor de pele negra escura, Thiaguinho, mas venceu de lavada na escolha pelo voto popular, não apenas por sua beleza e elegância, mas porque dançava samba com alta qualidade técnica e sem o apelo à erotização vulgar que a indústria do entretenimento (alguém se lembra das “mulatas do Sargenteli, das Chacretes, das Paquitas, da Tiazinha e da Feiticeira? Critico aqui o uso da erotização e não as mulheres, muitas das quais, talentosas, foram vítimas dessa “porta única” para a vida artística) popularizou para lucrar e justificar papéis sociais excludentes de gênero e raça/etnia (outro dia passou na TV a história de exploração da cantora, de muito sucesso décadas atrás, de origem indígena, peruana, a Perla – a original, não a funqueira). Pois a vencedora – por um tipo de mérito que a Globélica repudia como o vampiro foge do espelho  – foi ofuscada na programação da emissora “democrata social racial”, não teve o destaque que o papel sempre teve em período de carnaval, foi deposta – outra coisa que a Globélica adora fazer com mulheres que não se submetem ao seu padrão de opressão patriarcal-brancomachocapitalista -, chegou a adoecer em consequência da repercussão negativa sobre sua vida do que deveria ser um retrato da “ideologia meritocrática”, afinal, ela venceu por seus próprios méritos… E como o nó que impede simplificações, ela é (ou foi, não tenho seu status marital atualizado…) casada com um homem branco. Ironia ou deboche, noticiado em jornal da própria empresa.

    https://extra.globo.com/famosos/globeleza-nayara-justino-entra-em-depressao-diz-sofrer-racismo-de-internautas-apos-saber-que-vai-perder-posto-14277668.html

     

    3 – E aí é que a situação se complica e pode ter interferido na decisão da cantora Fabiana Cozza: o “dividir para conquistar” que foi citado por um comentarista se fortalece se atribuímos as críticas apenas às divergências intragrupais (lembremos do “diversas mas não dispersas”, lema da vereadora e ativista social Marielle Franco, genial por reconhecer que não há, e é saudável que não haja, homogeneidade nos grupos, mas que para a luta social avançar é necessário, em algum momento, suspender as diferenças em nome de algo mais comum que seja do interesse da maioria), como se os grupos e movimentos de luta por uma causa, ou que são objeto de opressão por grupos hegemônicos, não tivessem suas diferenças internas, rixas, antipatias, diferentes inclinações ideológicas (eu, no meu superado cartesianismo juvenil, me surpreendia quando via negr@s, pobres ou LGBTs de direita, até me dar conta de que esta situação tanto pode ser efeito da constatação de Paulo Freire (os oprimidos aprendem a reproduzir a opressão de que são vítimas; para sair deste papel ou por escolha livre do caráter, se identificam com o lugar oposto) quanto da máxima liberdade do ser humano independente de outras condições sócio-históricas.

    4 – Assim, penso que o maior problema na polêmica é encontrar uma maneira – sei que falar e “teorizar” é sempre mais fácil do que por em prática – de conciliar os diferentes interesses dos grupos, o que imagino que tenha sido a intenção da cantora Fabiana Cozza ao se retirar da produção teatral. E acho que há excesso tanto em quem abordou o tema com a agressividade, talvez transmitida pela opressão sofrida, para exigir a escolha de uma candidata de pele mais escura, quanto de quem atribui essa pauta, talvez por avaliar a forma da exigência e não a justeza, ou não, de seu conteúdo – na vida real, e não no abstrato reino da humanidade ideal, sem discriminações e com igualdade ainda distantes de alcançar – a um simétrico “fascismo do negro”. A questão não é simples, e para que os excluídos, em todos os seus graus e tons, não sejam obrigados a disputarem entre si o que deve ser amplificado, o espaço de visibilidade e participação social, seria bom também que se lembrasse que todo movimento identitário de luta por qualquer coisa tende a ser radical em certas situações, para o bem e para o mal. Um dos caminhos é lutar por mais espaço para todos os excluídos, de maneira progressiva e que busque aparar, e não afiar, arestas contraproducentes, sem esquecer que há aqueles que estão nas “periferias” até dos espaços de discussão, e quanto maior a exclusão, maior o ressentimento; não se pode esquecer também a humanidade dos que sofrem sem que sua condição seja considerada do mesmo nível de importância.

    E há, claro, sempre aqueles que aproveitam para destilar seu mau caratismo, que independe de raça, etnia, cor, credo ou descrença, falta ou excesso de dinheiro, gênero e sexualidade, classe ou classismo, e que comprovam o bem e o mal de nossa humanidade essencial, inalterada pelo resto, e que deve ser levada em conta quando olhamos para os que gritam por socorro: se são legítimos, o tempo promoverá a consciência dos exageros e eventuais perdões mútuos; se é carona para oportunistas ou para aqueles que se identificam com o papel do opressor, e se aproveitam da justificação social da luta por uma causa para exercê-lo, como bem disse a cantora – que deve entender disso melhor que o resto porque está envolvida tanto pessoalmente quanto como ativista do movimento negro – o tempo dirá, e seu faro de quilombo-loba saberá o joio e o trigo.

    P.S. 1- Lembro aqui de um programa especial do Serginho Groisman – o pré-Globélica, depois irreconhecível -, no SBT, em que ele juntou muitas pessoas para discutir o movimento negro, e ainda hoje recordo a participação do grande ator Eduardo Silva (o entregador de pizza rasta Bongô, do Castelo Rá-Tim-Bum, em cartaz em São Paulo com a peça “O Arquiteto (ele) e o Imperador (Rubens Caribé)” que também não vi mas recomendo, rs), que argumentou que ninguém questionava a legitimidade dos judeus quando faziam suas reivindicações específicas como grupo (não tinha a ver com a questão sionista, ou de Israel e da Palestina; se bem me lembro, era algo mais básico) e questionou por que o faziam em relação aos negros, como se não tivessem o mesmo direito e necessidade. Ainda que se fale da dificuldade adicional (divisão natural explorada para conquistar) de ser composta por diferentes povos da diáspora/sequestro africana – o que pouco sabemos porque não estudamos na escola, ou na vida, a história da África e dos negros (nem dos índios) no Brasil –, é importante que o movimento se fortaleça e diversifique porque há muito a superar, mas é fundamental que se aprenda também com outras experiências mais aceitas e apoiadas socialmente, os riscos de sacralizar conceitos e se fechar, de qualquer lado da discussão, em seus particulares interesses, perdendo de vista a complexidade comunal das relações humanas, para não jogar o bebê com a água do banho, nem manter água imprópria que precisa ser reciclada.

    P.S. 2 – As indicações e referências aqui feitas são totalmente voluntárias e sem qualquer ligação pessoal ou mercadológica, monetização ou retribuição por qualquer meio. 
     

    “Neide Candolina” – de Caetano Veloso, com Luciana Oliveira, participação de Xênia França e Fióti

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=CW7Fz7TAdzU%5D

    https://www.youtube.com/watch?v=CW7Fz7TAdzU

     

    Sampa/SP, 05/06/2018 – 14:07 (alterado às 14:16, 14:20 e 14:35).

  11. Violência absurda

    Fascistas negros agora usam escala pantone e decidem de forma totalitária – como é do feitio dos fascistas – quem é preto o suficiente para ser preto.

    Na sua violência destrutiva atacaram o legado de duas artistas negras de primeira grandeza: Dona Ivone Lara e Fabiana Cozza.

    Há questão não é a cor da pele. Nunca foi. Há algo na voz ou na figura artística de ambas que os incomodam profundamente.
     

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