Manuel Domingos Neto
Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense
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Golpista brasileiro em palanque alemão, por Manuel Domingos Neto

Assumindo ares de porta-voz do “pensamento das Forças Armadas” afirmou não admitir que civis “tenham que mandar nos militares”.

Golpista brasileiro em palanque alemão

por Manuel Domingos Neto

Apologia à truculência política é proibida na Alemanha, mas a embaixada alemã em Brasília promoveu debate virtual entre um militar defensor da tortura e dois professores, um alemão e um brasileiro. O evento está disponível na página eletrônica da Embaixada.

O oficial começou exibindo legitimidade hereditária, atributo incompatível com o Estado democrático: teria “nascido” no Exército. O recrutamento endógeno é anti-republicano e fere a “meritocracia” castrense. A Corporação proclamou a República sem admitir seus pressupostos. O general revelou ainda a separação nebulosa entre militares da ativa e da reserva. Em traje civil, disse continuar “vivendo no Exército”.

Assumindo ares de porta-voz do “pensamento das Forças Armadas” afirmou não admitir que civis “tenham que mandar nos militares”. Com isso resumiu a longeva crise de identidade dos enfileirados: vestem-se como militares, pensam como políticos e não abandonam a vocação policial. Comunicou que seus camaradas defendem a ideologia liberal: ao Estado, caberia o papel de “facilitador”, não de “gestor do progresso nacional”. E proclamou a isenção ideológica das corporações!

Disse que a nação é credora do Exército, mas logo desdisse: a corporação salvou a sociedade! O golpe de 1964 teria sido patriótico. (Não mencionou o conluio dos golpistas com Washington). Justificou e minimizou a bestialidade da ditadura. Os ditadores teriam permitido eleições livres e liberdade de expressão. A redemocratização teria sido concedida pelo quartel. Mas a democracia fracassou: “após 35 anos da chamada redemocratização ainda não somos uma democracia de fato”. A ditadura teria afastado a política dos quartéis e interrompido a rotina de crises político-militares.

Para o general, as instituições públicas, em particular o Judiciário, são corrompidas, carentes de “responsabilidade política e cívica”. Os líderes do país interpretam e manipulam as leis “segundo interesses pessoais e grupais”. Para não perder o poder e suas “injustas regalias”, atuam unidos contra “as atuais forças da mudança”. Há “um notório movimento” de juízes e políticos para barrar a apuração de crimes.

Vaticinou iminente anomia e a necessidade de as Forças Armadas atuarem como poder moderador nos moldes da monarquia brasileira do século XIX. Interpretando o artigo 142 da Constituição, disse que uma “intervenção militar” poderia não ser legal, mas seria necessária e legítima diante da “falência dos poderes da República”. Só um golpe garantiria “a estabilidade impedindo que o país mergulhasse no estado de anomia”.

Tal um carbonário convicto de que chegou a hora da revolução, falou em nome do povo: “É triste, mas a sociedade perdeu a esperança na transformação moral e ética política por vias legais”.

Os professores ficaram desconcertados. Como contrapor a chuva de disparates?

O acadêmico alemão, desajeitado, disse que em seu país os militares não exprimem posicionamentos políticos e são proibidos de agir no âmbito doméstico, excetuados os casos de catástrofes naturais ou atentados terroristas. Isso ocorrendo, auxiliariam as instituições da Lei e da Ordem. Militares alemães respeitariam a Constituição e as leis internacionais.

O professor brasileiro contraditou o general citando literalmente outros militares. Registrou surpresa com a atuação das Forças Armadas na conformação do quadro político brasileiro. Revelou que um colega do general conclamara a tropa para o engajamento na eleição de Bolsonaro. Ironizou a propensão dos oficiais para interpretar a Constituição. Lembrou suas pesquisas sobre as contendas nos quartéis. Registrou o confronto entre Geisel e Silvio Frota. Poupando maior vexame ao general, não declinou a luxuriante produção de jornalistas e acadêmicos que o desmentia. Assinalou ainda a identidade ideológica entre o alto comando e o governo.

O general se ateve a passagens secundárias de seus interlocutores. Disse que o professor alemão desconhecia os méritos do almirante que comanda o ministério de Minas e Energia. Ao brasileiro, falou que Carlos Prestes estava a um passo do poder em 1964.

Do rol de aleivosias, uma se destaca por ser assacada em ambiente virtual da embaixada germânica: as Forças Armadas “rechaçam ideologias radicais e utópicas de qualquer matiz” que comprometam a paz interna e dividam a “nação”. “Somos patriotas e nacionalistas”. Ignorou que entre seus anfitriões as palavras “nação” e “nacionalismo” evocam o esmagamento dos mais frágeis e o massacre de vizinhos. Na última vez em que germanos se mobilizaram pela pátria o planeta foi encharcado de sangue. Muitos alemães pronunciam com cuidado as palavras “pátria” e “nação”. Repudiando utopias desagregadoras, o general exaltou a utopia que mais desagregou na história!

Este evento ocorreu no dia 15 de setembro. Os protagonistas foram o general Luis Eduardo Rocha Paiva e os professores Carlo Masala (University of the German Armed Forces – Munique) e João Roberto Martins Filho (Universidade Federal de São Carlos).

O general não foi preso nem o embaixador alemão recebeu pedido de explicações.

O fascismo é assim, vai tomando conta de todos os espaços. A Embaixada pode não ter agido com más intenções, mas em muito contribuiria evitando armar palanques para inimigos jurados da civilização.

Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense

6 Comentários

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  1. Se esse general fosse o único poderíamos não só ignorar como rir um pouco. Na verdade nos resta o choro e a submissão pois eles não são poucos, fazer arminha e têm armonas.

  2. Tudo indica que se Bolsonaro atingir 70% de aprovação, é exatamente isso que a elite dominante vai querer que aconteça e vai conseguir ser atendida

    vcs devem saber melhor do que eu que o nazismo resultou de um senso comum enfiado goela abaixo pelas pessoas muito parecidas com as que temos atualmente no poder

    e que sempre que o sistema de dominação fica sem poder dar respostas aos próprios erros que cometeu, todos partem para a brutalidade ou com apoio das igrejas e das instituições guardiãs do status quo da classe

  3. Aqui no Brasil nunca ocorreu uma guerra civil. O povo brasileiro ainda não tomou brios para formar uma pátria, regulamentada pela Constituição, como os países mais sérios do mundo. Todos os grandes países passaram por esta fase e não consigo enxergar um Brasil soerguer-se como nação enquanto o povo aceitar passivamente ser tutelado por militares, que atuam nos moldes de uma guarda pretoriana, a serviço da “casa grande” ou de um grupo de saqueadores dos bens nacionais.

  4. No que o povo brasileiro precisa se ligar mesmo é que apenas um dos lados está se armando para uma guerra civil………………………….ser da paz numa situação dessas é morte com data marcada para ocorrer assim que o outro lado perder o poder

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