III Guerra Mundial: ficção e realidade, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

III Guerra Mundial: ficção e realidade, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No Mundo Antigo a ficção tinha a finalidade de humanizar os povos. Isso pode ser visto claramente na Ilíada, em que as tragédias familiares de Adrômaca (esposa de Heitor, morto em combate) e de Clitemnestra (esposa de Agamemnon, cuja filha é sacrificada pelo próprio pai), simbolizam as tragédias dos dois povos em guerra. Pertencentes a campos opostos, ambas sofrem profundamente os efeitos do mesmo conflito a que não deram causa. Adrômaca e Clitemnestra são irmãs na dor e esse fato predispõe os leitores da Ilíada a questionar a guerra e sua futilidade.

A ficção perdeu a capacidade de humanizar seus consumidores no mundo moderno. Isso fica mais claro quando levamos em conta os filmes norte-americanos. 

Em Elysium (2013) apenas as pessoas muito ricas e aqueles que as servem tem acesso às tecnologias médicas mais modernas, capazes de curar doenças graves e reconstruir corpos mutilados. O filme termina no momento em que a assistência médica se torna um direito universal. Na vida real, porém, a medicina foi totalmente mercantilizada. Apenas quem pode pagar tem acesso aos tratamentos médicos. A desumanização da dor atingiu um ponto em que já começamos ver pessoas gravemente feridas pedir para que as pessoas não chamem uma ambulância com medo de não ter condição de pagar a conta.

Como em vários outros filmes do gênero, Elysium evidencia que a ficção se transformou em mercadoria produzida em massa de maneira rentável. Sua finalidade é apenas proporcionar uma fuga temporária da realidade brutal. A ficção não precisa nem mesmo manter qualquer relação com a realidade. Ela perdeu a capacidade de humanizar seus consumidores. O resultado é trágico: a realidade não pode mais se reconciliar com a humanidade através da ficção como ocorria na Antiguidade.

Os lamentos de Adrômaca e Clitemnestra se tornaram cômicos num mundo que convive com a brutalidade da guerra como se ela fosse algo inevitável, necessário ou normal. Todos os dias nós consumimos, através da internet, fotos e filmes de brutalidades inenarráveis cometidas pelo US Army no Oriente Médio, pelas Forças de Defesa de Israel em Gaza ou pela PM/RJ e pelo Exército Brasileiro no Rio de Janeiro como se tudo aquilo não fosse real ou, pior, como se a dor alheia não pudesse mais nos afetar. Os lamentos das mães das crianças sírias despedaçadas pela guerra são incapazes de nos despertar do torpor em que fomos condenados a viver.

Nós dizemos que somos mais civilizados do que os gregos da antiguidade. Mas a verdade é que a modernidade nos desumanizou totalmente. Tanto que nos últimos anos a inevitabilidade de uma guerra nuclear tem sido intensamente discutida e alguns milionários norte-americanos acreditam que poderão sair ilesos dela. Quando sacrificou a filha para conjurar os deuses, Agamemnon marcou um encontro com a glória em Ilion (Tróia) e com a morte em sua própria casa. Nosso encontro com a III Guerra Mundial não será fictício ou glorioso, nem será capaz de produzir um poema épico.

Fábio de Oliveira Ribeiro

5 Comentários

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  1. A civilização está mesmo por

    A civilização está mesmo por um fio. A ideologia da guerra, que cria inimigos e o ódio, obra prima dos norte americanos, tornou-se um vírus que está destruindo qualquer resquício de humanismo.

  2. Boa, caro Fábio. E me ocorreu

    Boa, caro Fábio. E me ocorreu uma lembrança… não sei se é verdade. Há algum tempo ouvi dizer que o governo chinês proibe filmes de viagens no tempo. Bem, outras culturas também têm seus antídotos contra o enorme poder de criação de esquizóides ilusões pelo cinema. Por exemplo, é comum em filmes indianos que, juntos aos créditos finais, haja uma animada dança com os atores, juntos os que interpretaram vilões, heróis e até os figurantes, algo como o cumprimento final dos atores de uma peça de teatro.

    A questão é que a tal fuga da realidade que você citou, pela repetição e pela forma de fazer cinema parecer realidade – ou até mais que isso, uma hiper-realidade* – acaba não sendo tão temporária assim, acaba integrando inconscientemente o complexo de sentimentos que, no dia-a-dia, determina ações, posturas, comportamentos. Mitologias, ainda que fajutas porque criadas artificialmente, em laboratórios de marketing ideológico e comercial e não como expressão espontânea popular, induzem comportamentos. Nosso limitado juiz Sérgio Moro já andou tentando fazer citações a ficções do cinema estadunidense para justificar seus atravessamentos às leis…

     

    * – Mais realista que o rei, só a “cultura” estadunidense poderia criar bobagens como o busto esculpido da Monalisa – em que se pode ver a parte de trás de sua cabeça – ou cópias corrigidas do Davi de Michelangelo. Quem sabe nosso articulista Wilson Ferreira nos brinda com melhor conhecimento sobre essa tal de hiper-realidade?

  3. Estamos no período posterior

    Estamos no período posterior ao pós-modernismo. Atualmente as coisas estão tão caóticas no campo das ideologias que os analfabetos políticos acham que extremismo de direita é contra cultura e que marxismo é fascismo estatal… A indigência mental está atingindo patamares inacreditáveis na geração Y (os “Milenares”). A desinformação está tão presente no mundo atual que tenho certeza que a próxima geração, a geração Z (que vou chamar de Zyclon), será um dos flagelos desse século. São jovens que cresceram aprendendo que o fascismo, a intolerância e o radicalismo são o caminho… E a maioria já está atingindo a idade adulta.

    Ao mesmo tempo, estamos nos aproximando também do período pós-capitalista (que só teve uma sobrevida graças a mentalidade pós-modernista). Enfrentamos o desastre ecológico, econômico e social em um horizonte próximo.

    A ficção, antes um mecanismo de passar lições e informação aos povos, tornou-se somente mais um braço do capital, agindo como o grande alienador da classe média, hoje viciada nos seus hábitos quase religiosos e infantis de “maratonas da Netflix”. Enquanto isso, em 2018, o relógio do apocalipse marca dois minutos para meia-noite…

    Que tempo para se estar vivo.

     

  4. Caro Fabio
    Eu acho o

    Caro Fabio

    Eu acho o contrário, vejo esse e outro filmes de ficção, também como denuncia e também como o heroísmo,  somente de algusn, dentro do cliche, leva a uma luta e depois a tentantivad de dar aos demais o mesmo tratamento, como foi o caso desse filme.

    “Em Elysium (2013) apenas as pessoas muito ricas e aqueles que as servem tem acesso às tecnologias médicas mais modernas, capazes de curar doenças graves e reconstruir corpos mutilados. O filme termina no momento em que a assistência médica se torna um direito universal.”

    Uma sociedade ferozmente desigual, lembra muitos países, os descontentes, “Matt Demon”, um insurgimento, e mudanças, não trabalhadas como duradoura, pelo filme.

    Quem não quer saúde universal???

    Para mim, é mais um filme de ficção denúncia.

     

    Saudações

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