Movimento Palestina para Todos: Um convite aberto para Jean Wyllys

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

do Movimento Palestina para Todos

Um convite aberto para Jean Wyllys

 

Caro Jean Wyllys,

Somos um movimento autônomo que atua desde 2008 entre a sociedade civil e os movimentos sociais brasileiros na visibilização e solidariedade ativa à causa palestina. Como sabemos, a luta por liberdade e igualdade de direitos civis e políticos para as minorias é uma bandeira histórica de todos aqueles preocupados com o futuro dos povos. Acreditamos, assim como você, que a solidariedade e a defesa dos direitos humanos e de condições de vida dignas não enxergam barreiras e fronteiras, sejam elas de raça, gênero, orientação sexual, classe, crença ou nacionalidade.

Assim, reconhecendo a importância da sua mais recente viagem a Israel e a necessidade de se construir e fortalecer laços entre todos aqueles que destinam suas vidas a um mundo mais justo, escrevemos este texto para lhe convidar abertamente a conhecer a realidade da região sob outro ponto de vista: o dos palestinos.

Este convite baseia-se não somente na certeza que temos de que a sociedade brasileira e seus representantes como um todo se mostram cada vez mais preocupados em conhecer, conversar e debater com os movimentos sociais e organizações políticas democráticas e progressistas palestinas, mas também na crença de que seja fundamental aproximar todos aqueles realmente dedicados às causas da humanidade.

A própria luta no Brasil por um projeto democrático de sociedade possui fortes vínculos com a causa palestina. Os armamentos, equipamentos, técnicas e know-how de controle, vigilância e repressão nos territórios palestinos ocupados estão situados entre as principais importações do Brasil nas áreas de segurança pública e defesa nacional. Os órgãos militares e policiais e empresas privadas de segurança israelenses treinam recorrentemente corporações policiais brasileiras com vasto histórico de violações de direitos humanos, como o BOPE do Rio de Janeiro, vínculo retratado em trecho do documentário “The Lab”, do diretor israelense Yotam Feldman (http://goo.gl/qN52A7). São os mesmos responsáveis por reprimir e violentar cotidianamente os palestinos, tratados como verdadeiras cobaias para a indústria de defesa israelense.

Existe hoje em curso a campanha internacional “Olimpíadas sem apartheid”, lançada pelo Comitê Nacional Palestino de BDS. A iniciativa, apoiada por diversas organizações pró-Palestina, movimentos sociais e entidades da sociedade civil brasileira, exige a saída da empresa de segurança israelense International Security and Defense Systems (ISDS) da condição de patrocinadora oficial e colaboradora em ações de segurança coordenadas pelo Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 2016. A ISDS possui um largo histórico de colaboração e participação em ditaduras e golpes militares na América Central, treinando técnicas de “contraterrorismo” a esquadrões da morte em Honduras, organismos militares e paramilitares na Guatemala e aos contras na Nicarágua (http://goo.gl/0Uilt9).

Em São Paulo, o Batalhão de Choque da PM recebeu da Secretaria de Segurança Pública 6 caminhões blindados fabricados pela empresa israelense de veículos e soluções militares Plasan em julho de 2015 (http://goo.gl/tl9r8c), estimados em R$ 30 milhões. Os blindados foram utilizados ontem (12 de janeiro) em dura repressão policial ao ato do Movimento Passe Livre contra o aumento das tarifas do ônibus e do Metrô (http://goo.gl/BawSMj). A Plasan, sediada e gerida por um kibbutz no norte de Israel, é uma das principais fornecedoras para as Forças de Defesa de Israel.

É neste sentido que a solidariedade efetiva à causa palestina pelo fim da mais longa ocupação militar da história moderna conjuga-se com a luta no Brasil pela desmilitarização da polícia, pelo fim da violência policial – que atinge principalmente jovens negros e pobres nas periferias brasileiras – e por uma segurança pública cidadã e democrática.

Assim, acreditamos ser de extrema necessidade e importância o conhecimento da realidade palestina pelo prisma das suas lideranças políticas e comunitárias, intelectuais e artistas, presentes tanto nos territórios ocupados quanto em Israel.

Sabemos das diversas atribuições durante todo o ano que exigem a posição de deputado federal. Desse modo, não pretendemos definir nada previamente, mas sim, construir de forma conjunta um calendário de viagem em períodos de recesso ou em qualquer outro período que equacione as melhores datas disponíveis para você e todos aqueles que forem receptivos a este convite.

Junto a este convite, elaboramos uma carta nossa que apresenta uma parte da nossa visão e atuação e busca dialogar com os seus relatos da viagem e posicionamentos durante a última semana em sua visita a Israel. Por sua disposição e interesse, acreditamos que se trata de uma oportunidade de contribuir no avanço e efetivação de uma agenda de liberdade, democracia, paz e respeito aos direitos humanos na região.

Aguardamos seu retorno.

Carta do Movimento Palestina para Tod@s ao deputado federal Jean Wyllys

Temos acompanhado nos últimos dias seus relatos de viagem em Israel atendendo ao convite acadêmico para uma palestra na Universidade Hebraica de Jerusalém e os debates suscitados pelos inúmeros comentários nas redes sociais e artigos em sites. Sabemos que seus posicionamentos possuem um alcance muito grande e que, possivelmente, muitos de seus eleitores e pessoas que acompanham sua atuação parlamentar e opiniões nas redes sociais estão compreendendo a questão palestina a partir de sua viagem.

Pretendíamos escrever algo breve e sintético, mas toda a repercussão e a relevância dos temas de fôlego colocados a partir dos seus posicionamentos nos fizeram repensar e tentar contribuir com esta carta para um debate aberto e crítico sobre a questão palestina não somente nas redes sociais, mas também em outros espaços.

A expectativa inicial era que sua ida faria jus à atuação notavelmente combativa e progressista na Câmara Federal em diversas pautas e lutas contra opressões de orientação sexual, gênero, raça/etnia, entre outras questões, no sentido de demonstrar alteridade, sensibilidade e solidariedade com a causa palestina. Por esta razão, entramos em contato com um de seus assessores que teve uma postura atenciosa e ágil e nos deu um retorno sobre a difícil possibilidade de marcar um encontro com ativistas e movimentos na Palestina ocupada por conta de dificuldades de agenda. Soubemos então que a equipe da FFIPP-Brasil, uma rede educacional global que atua em Israel/Palestina, conseguiu entrar em contato direto contigo e marcar uma conversa em Jerusalém dentro desta mesma perspectiva de abrir um canal de interlocução com ativistas e movimentos palestinos ou pró-Palestina.

Para nossa surpresa, a expectativa prontamente tornou-se desapontamento no segundo relato de viagem quando a descrição da conversa com representantes da FFIPP-Brasil e Micha Kurz, fundador da Breaking The Silence, organização de veteranos do exército israelense que relatam experiências nos territórios palestinos ocupados, se diferencia totalmente da descrição feita pela FFIPP-Brasil em nota de esclarecimento (http://goo.gl/hnBVsY).

Lemos um post sobre a conversa de um outro assessor que te acompanha na viagem no qual conclui em um tom extremamente intolerante que “era muito difícil não mandá-los à m…”. Não podemos tomar a postura agressiva dele como única referência e tampouco esperar que você a corrobore, mas fica a impressão de que havia uma indisposição e desconforto no interior do mandato com a possibilidade de construir este importante canal de diálogo não com a FFIPP-Brasil, mas com movimentos sociais e atores políticos fora do mainstream político com larga trajetória, organicidade e reconhecido trabalho de base entre as sociedades civis palestina e israelense e também visando atingir a opinião pública de ambas as comunidades nacionais.

Conhecemos o trabalho da FFIPP-Brasil e, como diz a nota, seu “histórico de atuação, pautado pela diversidade e pelo respeito aos direitos humanos, fala por si”. São pesquisadores, jornalistas, estudantes e ativistas sérios e comprometidos que buscam uma visão crítica da realidade em Israel/Palestina e estão em contato permanente com movimentos e organizações inseridas em diversas pautas (arte e cultura de resistência, comunicação alternativa e popular, direitos humanos e advocacia, fim de detenções administrativas, feminismo, liberdade de movimento, libertação de presos políticos, LGBT, movimento sindical e de trabalhadores, preservação e acesso à água, terra e recursos naturais etc.) que expressam como a sociedade palestina tem um caráter extremamente heterogêneo e plural, mesmo estando sujeita à mais longa ocupação militar da história moderna e à privação dos direitos mais básicos, como o direito de ir e vir ou o acesso sem restrições à água potável.

Concordamos absolutamente sobre a necessidade de abandonar “maniqueísmos e visões dicotômicas do mundo”. Por isso, não há menor sentido em reduzir um conflito com raízes históricas e diversos nuances entre aqueles que querem a paz e aqueles que querem a “guerra”. Guerra, aliás, é um termo inapropriado, pois remete a uma simetria que está bastante distante de ser o caso em questão: Israel é um Estado estabelecido há 67 anos e um poder ocupante de acordo com a comunidade internacional, a Palestina é uma comunidade nacional apartada entre territórios ocupados, uma minoria guetificada e legalmente discriminada em Israel, campos de refugiados na Palestina ocupada e no Oriente Médio onde atua a UNRWA, agência específica da ONU para o trabalho humanitário com os refugiados palestinos, e a diáspora palestina pelo mundo. Tratá-los de forma simétrica e equivalente seria como equiparar em contexto distinto a violência de Estado perpetrada pelas ditaduras militares sul-americanas às ações empreendidas por grupos opositores de luta armada, tese conhecida como a “teoria dos dois demônios”, incorrendo no perigo da relativização da violência de Estado.

A ênfase em termos como “coexistência”, “diálogo” e “paz” pressupõe que até o momento nada foi tentado neste sentido. Perde-se de vista, ainda que inconscientemente, a vigência há 22 anos do processo de paz entre o Estado de Israel e a Autoridade Nacional Palestina (ANP) inaugurado pelos Acordos de Oslo. O processo estava programado inicialmente para se encerrar em 1998, desde então alternaram-se sete governos e coalizões lideradas por trabalhistas, Likud e Kadima em Israel e permaneceu na presidência da ANP durante todo este período o Fatah, representado por Yasser Arafat e Mahmoud Abbas.

Mais de duas décadas depois de seu início, nos deparamos com o seguinte cenário social, político e demográfico definido como status quo: a incessante expansão de assentamentos israelenses que praticamente dobrou a população de colonos israelenses em territórios palestinos de cerca de 280 mil em 1993 para 550 mil em 2013; a construção do muro de separação que cinde a Cisjordânia e Jerusalém Oriental e anexa parte do território palestino; a cantonização (ou bantustanização, em alusão aos bantustões do regime de apartheid destinados aos negros sul-africanos) da Cisjordânia com a formação de bolsões de “semiautonomia” em torno de algumas cidades que ainda sofrem incursões militares israelenses (a chamada Área A com 18% da Cisjordânia) diante de uma governança militar compartilhada na Área B (22% da Cisjordânia) e o pleno controle militar israelense sobre a Área C (60% da Cisjordânia) que abrange a maior parte dos recursos naturais palestinos em áreas como o Vale do Jordão (Área C); o bloqueio, a guetificação e os massacres na Faixa de Gaza; a judaização demográfica de Jerusalém Oriental, a partir da demolição de casas, revogação do direito de residência e crescente expulsão da população palestina. Ou seja, a completa inviabilização de um Estado palestino independente pela mais longa ocupação militar da história moderna. Portanto, não é difícil constatar que as negociações do processo de paz foram um grande fracasso em sua finalidade inicial, como até Abbas finalmente se viu obrigado a reconhecer em seu último discurso na Assembleia Geral da ONU.

Diante de um cenário aterrador aprofundado durante todo o processo de Oslo com toda uma geração de jovens palestinos que, ao ver e sentir na pele a crueza e recrudescimento da ocupação israelense, cresceu sem condições de nutrir ilusões ou falsas esperanças, a pergunta que fica é: qual é o itinerário para enfrentar tal status quo estabelecido? Todos querem paz e coexistência, mas repetir tais coisas como um mantra a centenas de milhares de famílias palestinas despossuídas, expulsas, colonizadas e humilhadas, além de não ser realista e prático, soa como uma postura evasiva. Como já diz a música d’O Rappa mencionada por você no subtítulo do quarto relato de viagem e por Caetano Veloso em seu artigo na Folha de São Paulo em 8 de novembro sobre o show em Israel e a visita à Palestina ocupada: “paz sem voz não é paz, é medo”.

Os palestinos querem que a paz e a coexistência venham asseguradas com liberdade, soberania e plenos direitos, tudo o que o regime colonial israelense lhes vêm negando há 67 anos. Por isso, 22 anos depois de um processo de paz inócuo, muitos têm preferido falar em solução e no desafio de conceber uma agenda pós-Oslo de justiça de transição, reparação e responsabilização pelas inúmeras violações de direitos humanos e do direito internacional desde 1948, o que inevitavelmente implica em processos de memória, verdade e reconciliação.

Os territórios palestinos ocupados são hoje a expressão mais dramática e nítida do grau que podem chegar a gestão e o controle estatais sobre corpos e fluxos: restrições e humilhações cotidianas em checkpoints, assentamentos, muro e detenções administrativas (prisões arbitrárias por forças de segurança israelenses sem qualquer acusação), além de conviver com a violência de colonos, consentida por forças de segurança israelenses, que envolve disparos de armas de fogo contra civis, incêndios, depredações de terras, propriedades e mesquitas, entre outros atos de ódio. Por reivindicar uma visão não-tradicional e renovada de esquerda, nos surpreende que tais situações sejam tratadas por você como meros produtos de “políticas de governo”, no caso do governo Netanyahu, sendo que sabidamente ocorrem há décadas.

Na condição de parlamentar, você deve ter ciência que hoje 12 parlamentares palestinos encontram-se em prisões israelenses. O caso mais recente deles foi a prisão da parlamentar feminista Khalida Jarrar, da Frente Popular pela Libertação da Palestina, que tem recebido o apoio e a solidariedade de organizações como a Anistia Internacional. Segundo dados atualizados da ONG palestina Addameer, há 6800 palestinos encarcerados pelo sistema prisional israelense, sendo destes 470 crianças e adolescentes. A Ordem Militar nº 1644 define que adolescentes palestinos a partir de 16 anos já podem ser julgados como adultos por cortes militares israelenses ao passo que a maioridade penal para adolescentes israelenses vigora apenas a partir dos 18 anos para a legislação penal. Ou seja, a segregação e o racismo contra palestinos atingem até o critério de maioridade penal.

Em um ensaio com seu espírito radicalmente crítico, Hannah Arendt previa que Israel se tornaria uma pequena Esparta embebecida de militarismo e nacionalismo (http://goo.gl/5vkXn5). A previsão de Hannah foi além: Israel hoje consegue um raro híbrido entre Esparta e Atenas, isto é, também uma democracia restrita: em Atenas eram as mulheres e os escravos que não tinham plenos direitos civis e políticos, em Israel são os palestinos. Tanto os palestinos em territórios ocupados, como os remanescentes em cidades e vilarejos da Palestina histórica dentro das fronteiras de Israel (os chamados “palestinos de 1948”) que, segundo a base de dados do centro de advocacia e direitos humanos Adalah, estão sujeitos a mais de 50 leis discriminatórias israelenses que institucionalizam sua condição de “cidadãos de segunda classe”.

Você tem razão em matizar o movimento sionista. Desde seu início, estabeleceram-se diferentes correntes políticas e ideológicas, como o sionismo trabalhista e o sionismo revisionista. Mas é fundamental lembrar que a Nakba (catástofre, em árabe) com a expulsão e despossessão de mais de 700 mil palestinos de sua terra natal em 1948, a imposição de uma lei marcial entre 1949 e 1966 aos palestinos remanescentes e a ocupação de territórios palestinos em junho de 1967 foram iniciativas arquitetadas e conduzidas pelos governos de David Ben-Gurion, Moshe Sharett e Levi Eshkol, lideranças identificadas com o sionismo trabalhista (hoje apresentado como “sionismo de esquerda”). Os assentamentos israelenses, considerados ilegais pela comunidade internacional, foram inspirados e baseados no Plano Allon, elaborado por Yigal Allon, outra liderança política identificada com o sionismo trabalhista.

Tudo isso é minuciosamente analisado e debatido por historiadores e intelectuais palestinos, como Walid Khalidi, Nur Masalha, Rashid Khalidi e Edward Said, e historiadores dissidentes israelenses, como Ilan Pappé, Avi Shlaim e Tom Segev, no movimento intelectual conhecido como os “novos historiadores” que trouxe à tona documentos e registros dos arquivos militares israelenses que desmentiam as narrativas oficiais.

O fato é que toda a estrutura colonial israelense não se restringe a meras “políticas de governo” dos mandatos recentes de Benjamin Netanyahu, mas foi construída e consolidada durante décadas pela responsabilidade compartilhada entre o “sionismo de esquerda” e o “sionismo de direita”. Tratam-se, portanto, de políticas de Estado fundamentadas na expulsão, desenraizamento e colonização dos palestinos. A matização do sionismo não pode deixar de vir com a constatação de que existe um consenso em seu interior: até hoje, lideranças do “sionismo de esquerda” e do “sionismo de direita” se negam a reconhecer a responsabilidade oficial israelense pela Nakba e a necessidade do cumprimento do direito de retorno aos refugiados palestinos como garante a Resolução 194 da ONU. A Lei de Retorno, vigente desde 1950, restringe a garantia do direito de retorno e da cidadania israelense somente a judeus diaspóricos.

Sobre o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), antes de tudo, é fundamental frisar que se trata de um movimento chamado por organizações e entidades da sociedade civil palestina desde 2005 com apenas três eixos e demandas fundamentais que você certamente deve convergir: a saída dos territórios ocupados da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, o direito de retorno aos refugiados palestinos e o desmantelamento do muro de separação.

Perceba que não há nenhuma definição sobre qual o arranjo político-institucional que deve ser adotado (dois Estados, Estado único ou solução binacional), mas sim sobre quais bases deve se assentar tal configuração pós-ocupação. E esta é a chave que tem norteado a atuação de vários movimentos e ativistas palestinos para além do BDS: a plena igualdade de direitos civis e políticos e a descolonização das relações de poder entre israelenses e palestinos.

O BDS é uma tática de resistência não-violenta – assumidamente inspirada no êxito do movimento antiapartheid dos negros sul-africanos, mas com singularidades do contexto e vivência da luta dos palestinos – que visa engajar a sociedade civil global e pressionar a comunidade internacional para que atuem no sentido de interromper a cumplicidade política e econômica com recorrentes violações de direitos humanos do poder ocupante israelense contra palestinos – grandes potências, como os Estados Unidos, ainda concedem ajuda militar e econômica a Israel em imenso volume – e que se cumpram as convenções básicas do direito internacional humanitário. E o potencial da tática do BDS tem se revelado efetivo: para citar uma ação institucional recente no contexto brasileiro, a Sabesp cancelou em julho de 2014 um acordo de cooperação técnica que havia assinado com a Mekorot, empresa de água israelense que pratica expropriação de recursos hídricos palestinos e incorre em graves violações do direito à água e do direito internacional, após requerimento solicitado pelo deputado estadual Carlos Giannazi, seu companheiro de partido.

Não por acaso conta com o apoio de importantes personalidades e organizações no Brasil e no mundo com trajetória em defesa dos direitos humanos e causas populares, como o arcebispo sul-africano, líder antiapartheid e vencedor do Nobel da Paz Desmond Tutu, o músico britânico Roger Waters, o físico americano Stephen Hawking, o jurista americano e ex-relator especial da ONU para a Palestina ocupada Richard Falk, o arquiteto e escultor argentino e vencedor do Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, o MST, a Igreja Presbiteriana dos EUA, a Igreja Metodista Unida dos EUA, apenas para citar alguns exemplos, e sofre constantes ameaças e perseguições de organizações e militantes pró-Israel.

Felizmente, em importantes ocasiões, outras lideranças, parlamentares e figuras públicas filiadas ao PSOL, como Luciana Genro, Chico Alencar, Ivan Valente, Edmilson Rodrigues, Marcelo Yuka, Carlos Giannazi, Raul Marcelo, Babá e Milton Temer, posicionaram-se favoravelmente ou assinaram notas de apoio a campanhas de BDS como tática de solidariedade efetiva à luta dos palestinos por liberdade, descolonização e igualdade de direitos civis e políticos. O saudoso Plínio de Arruda Sampaio também se manifestou solidário neste sentido. Enfim, os caminhos estão sempre abertos e nunca é tarde para revisitar ou mudar posições.

Há todo o direito de se optar por não aderir e divergir do BDS, mas ofende lançar um argumento risível que escamoteia o debate ao sugerir por qual motivo não se fazem boicotes a outros países. As barbáries de regimes autoritários não podem justificar barbáries de regimes coloniais e vice-versa. No caso dos regimes mencionados, tanto o Irã como a Síria passam atualmente por sanções da comunidade internacional. O que os palestinos pedem e esperam da sociedade civil global e da comunidade internacional é uma solidariedade efetiva, assim como a luta contra a ditadura militar no Brasil contou com a solidariedade internacional na denúncia e luta contra as violações e crimes perpetrados pelos militares.

A economia israelense tem sua indústria de defesa como um de seus principais ativos de exportação que abasteceram e abastecem diversos regimes autoritários, como o próprio apartheid na África do Sul e ditaduras na América Latina. Hoje, os governos brasileiros são alguns dos principais clientes de empresas estatais e privadas israelenses na aquisição de armamentos, drones e programas de treinamento e cooperação policial e militar, inclusive para ações de segurança durante a Copa do Mundo de 2014.

Cabe pontuar que o boicote não é uma forma de luta recente. Além do movimento antiapartheid, foi também adotado em diferentes circunstâncias pelo movimento de libertação nacional na Índia para enfrentar o colonialismo do Império Britânico e pelo movimento por direitos civis nos Estados Unidos pelo fim do racismo de Estado que ganharam força e alcance dialógico internacional. O que ofende mais os valores democráticos e a coexistência entre povos: o isolamento temporário e parcial de regimes coloniais ou sua persistência em pleno século 21?

Alguns comentários inoportunos te perguntaram por qual razão você não foi à Faixa de Gaza. Consideramos que ninguém tem a obrigação de visitar nenhum lugar para confirmar massacres e diversas violações de direitos humanos. E, mesmo que fosse de sua vontade, você provavelmente não conseguiria: afinal, a Faixa de Gaza, um território sob ruínas e estrangulamento econômico com uma das maiores densidades populacionais do mundo, vive sob bloqueio israelense desde 2007 que impede o fluxo de pessoas, bens e serviços com a colaboração egípcia no fechamento da passagem de Rafah.

Há cerca de um ano e meio atrás começava o massacre da Operação Margem Protetora que, segundo estimativas da ONU, deixou mais de 2 mil palestinos mortos por bombardeios israelenses, 20 mil casas destruídas e 500 mil palestinos deslocados e evacuados. Eram e são vidas de crianças, jovens e idosos, mulheres e homens e, certamente, haviam e há LGBTs palestinos entre eles. Há um elucidativo artigo da escritora e ativista israelense Tikva Honig-Parnass (http://goo.gl/zwGCHO) que discute as posições da esquerda israelense diante da Operação Margem Protetora, como, por exemplo, uma resolução do Meretz que defendia o “direito à autodefesa de Israel” e sua recusa em participar de atos contra o massacre convocados por ativistas e movimentos israelenses que reconhecidamente defendem uma perspectiva de paz, coexistência e descolonização entre israelenses e palestinos.

É neste contexto de massacres históricos e cotidianos que organizações do movimento LGBT palestino, como a Al-Qaws e a Aswat, pautam a luta contra a LGBTfobia dentro da sociedade palestina (com tabus e conservadorismos como toda sociedade ocidental, mas muito mais diversa e plural do que pretendem representações e estereótipos orientalistas e islamofóbicos) de forma indissociada à luta pela descolonização das relações de poder em Israel/Palestina.

O antissemitismo, a islamofobia e o racismo antiárabe jamais podem ser tolerados ou menosprezados. Têm servido hoje como plataforma para o perigoso avanço de forças de ultradireita na Europa e qualquer manifestação ou prática discriminatória neste sentido deve ser denunciada e repudiada. Mas tampouco a discriminação étnica ou religiosa pode ser instrumentalizada como forma de silenciar e interditar o debate aberto e crítico. Para citar um exemplo atual no debate público brasileiro, críticas procedentes e legítimas de ativistas do movimento LGBT a nocivas distorções do fundamentalismo cristão são automaticamente tachadas de “cristofobia” como tentativa de silenciamento.

Portanto, relacionar toda crítica a recorrentes violações israelenses de direitos humanos com algo tão grave e sinistro como o antissemitismo não deixa de ser uma tentativa de interditar o debate e também um desrespeito à identidade de judeus israelenses e diaspóricos engajados na luta pelo reconhecimento dos direitos nacionais palestinos.

Em uma entrevista para A Tarde durante visita ao Brasil (http://goo.gl/gOS6NZ), Judith Butler disse que “minha crença é a de que deve-se opor absolutamente ao antissemitismo, porque todas as formas de racismo estão erradas, e entre elas seria preciso incluir o racismo de Estado. Em minha opinião, e na opinião de um número crescente de judeus como eu, Israel se engaja em um racismo de Estado”. A opinião de Butler é uma expressão da pluralidade e diversidade política, cultural e identitária do judaísmo que não pode ser confundido com o sionismo. O mesmo acontece em relação aos povos árabes e à comunidade islâmica.

Também surpreende negativamente sua reação hostil com os questionamentos do diplomata Paulo Sérgio Pinheiro que coordenou e participou dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, atualmente preside a Comissão Internacional Independente para a Investigação da Síria e teve a oportunidade de conhecer in loco a chocante realidade da ocupação israelense. Pouco importam filiações e preferências partidárias quando o assunto envolve a defesa dos direitos humanos e, neste aspecto, ele possui uma trajetória reconhecida tanto no Brasil como no mundo.

Ninguém se pretende “dono da verdade”, nem quer ensinar “lições”. Mas buscamos contribuir para visibilizar uma narrativa política que escapa não somente ao senso comum, mas também à parte considerável da intelectualidade crítica brasileira e internacional. Algumas noções equivocadas como “guerra santa” e “conflito religioso” confundem e turvam o debate ao ocultar o contexto colonial e eminentemente político no qual se insere a questão palestina. Também visamos construir pontes e alianças entre os movimentos sociais e ativistas brasileiros nas mais diversas pautas e a causa palestina em um aprendizado e solidariedade mútuos de experiências e vivências de luta e resistência.

Por fim, queríamos também dialogar diretamente com os militantes, filiados e simpatizantes do PSOL que você representa no Congresso Nacional. Fizemos em São Paulo um ciclo aberto de formação sobre questão palestina em novembro de 2014, três meses após o fim do massacre da Operação Margem Protetora. O ciclo tratou de diversos tópicos (o declínio e fim do Império Otomano, a formação da consciência nacional palestina, a origem e história do sionismo, o colonialismo franco-britânico no Oriente Médio) que impactaram no surgimento da questão palestina e os processos sociais posteriores que marcaram sua reconfiguração e persistem até hoje: limpeza étnica, despossessão, diáspora, refúgio, ocupação, colonização e resistência.

Pretendemos repeti-lo este ano e, se possível com a viabilização logística, realizar uma edição no Rio de Janeiro. Confirmadas as datas e locais, estenderemos o convite para você e todos – sejam militantes, dirigentes, parlamentares ou assessores – que se interessam em conhecer e debater mais profundamente a questão palestina com o intuito político de contribuir e fortalecer na construção de ações de solidariedade efetiva. E chamamos a todos a se somarem na solidariedade efetiva por uma Palestina para tod@s, laica e democrática, com plena igualdade de direitos civis e políticos e sem qualquer tipo de discriminação nacional, étnica ou religiosa.

Movimento Palestina para Tod@s (MOP@T), 13 de janeiro de 2016

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

14 Comentários

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      1. tomara que ele consiga mesmo…

        sabe aquela dificuldade, na indecisão de negar ou não nossos humildes votos para um político jovem e que, em várias das suas atuações anteriores, vinha demonstrando ser capaz de compor um futuro promissor para nossa política!?

        depois do que aconteceu, fiquei mais ou menos nessa situação

        tomara que consiga mesmo

        minha visão de futuro promissor de qualquer participação, está sempre nos jovens

  1. Alexis, textos longos não são

    Alexis, textos longos não são mesmo para qualquer um. Requer aprofudamento, reflexão e, sobretudo, seriedade naquilo que se propõe a defender. Fui professora da periferia e lembro-me de uma aluna que disse – me que gostaria de ser psicóloga. Parabenizei-a e desejei boa sorte e recomendei muita dedicação à leitura. Logo, ela perguntou-me: para ser psicologa era preciso ler muitos livros? Ao que respondi afirmativamente. Foi o suficiente para ela desistir de ser psicologa pois, segundo a mesma, ler é muito chato. Espero que o Deputado  por quem tenho admiração não seja desses que desistem de saber a opinião dos outros pelo tamanho do texto.

    1. Valeu

      Obrigado Mel pelo seu comentário.

      Não discordo da tese nem faço aqui uma defesa no contrário. Acho que quem possui capacidade para ler ou escrever um livro devia ter a capacidade de ser sintético e resumido, tanto para os apoiadores, os leitores em geral deste blog e, ainda, para o Deputado que irá ler. Quem sabe, no começo dessa extensa carta, assim como em teses universitárias, cabia um “Abstract”, não é?

  2. engraçado como as coisas são…

    são e acontecem

    ou é de onde menos se espera que descobrimos porque nunca tivemos interessados, considerando-os como alguns poucos, em unificar nossas policias

    será que é porque os equipamentos, o treinamento, as práticas e as táticas seriam as mesmas, nas favelas e nos bairros nobres?

  3. pisada na bola

    o jean wilys, um dos melhores parlamentares brasileiros da atualidade, dessa vez pisou na bola. deu uma de caetano e, acredito, terá a grandeza de reconhecer a mancada. ele, pq o caetano jamé.

  4. estamos perdendo tantos dos nossos jovens…

    e em quase tudo

    cultura, esportes, movimentos sociais

    até cinema virou babaquices apelativas

    é por isso que vou me inteirar do que está acontecendo em teatros

    teatro só atrai dos bons, muito importante não deixar que contaminem e desfigurem o teatro

  5. Muito bom. Se teve uma coisa

    Muito bom. Se teve uma coisa boa dessa viagem desastrada foi todo esse debate gerado. Sentia que, após o último massacre, em julho de 2014, a questão palestina foi adormecendo no Brasil, principalmente por conta da crise política e pela situação na Síria.

    Agora, se o Jean Wyllys aceitar esse convite e voltar a Israel com o intuito de conhecer a situação REAL dos palestinos, é capaz de, desta vez, ser BARRADO e “gentilmente” ser convidado a retornar ao Brasil, assim como fizeram com o investigador especial de Direitos Humanos da ONU, Makarim Wibisono, que renunciou ao cargo semana passada por não conseguir visitar os territórios ocupados.

  6. falar nisso…

    Nassif

    ou qualquer um dos seus colunistas

    traga um pouco das coisas bonitas que os nossos jovens estão fazendo

    já vi muitos, reconheço, mas o número bem maior de desentendimentos ou confusões faz com que não chamem muita atenção

    sem querer mudar nada, nem criticar

    só pensando em coisas boas e bonitas, nossos jovens cabeças

  7. Nossa que texto longo para

    Nossa que texto longo para fazer o de sempre…rs

    A proposito espero que esse dito “movimento humanista!” tenha o mesmo empenho em denunciar o Hamaz que tem em relação as posições dele contra o estado de Israel.

    Será que tem feito isso? 

  8. E …………..

    Todo movimento que busca a Paz, é legítimo. Mas, pelo que leio e vejo, nada é capaz de remover os objetivos de israel em ocupar as terras palestinas. Que se dane os apelos internacionais;que se dane as resoluções da ONU !!!!!

    Eu só acredito quando as ações tipo BDS, se tornarem efetivas!!!

    Quanto ao Jean, acredito tb que o mesmo esteja cumprindo uma agenda previamente acordada pelos seus financistas de campanha. Sua atuação em defesa das minorias são admiráveis, mas com esta viagem a israel e seus apelos em favor daquele país, acredito que a cobrança seja bem forte.

    Daí…………

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