Tocata e fuga à brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Tocata e fuga à brasileira

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A história das glórias militares do Brasil é curtíssima. A história das idéias produzidas em nosso país é ainda menor. Uma tocata e fuga à brasileira ainda não foi composta. Portanto, a trilha sonora da nossa tragédia pode muito bem ser aquela que foi composta por Johann Sebastian Bach entre 1703 e 1707.

https://www.youtube.com/watch?v=NEKF08t3mW4

Sérgio Buarque de Holanda afirmou que o que nos define o Brasil é a cordialidade do povo brasileiro. Gilberto Freyre fez o elogio da integração racial e da cultura vibrante que ela produziu. Raimundo Faoro percorreu os labirintos da História para demonstrar que a corrupção sempre foi um elemento estruturante de nossa vida política e econômica. Darcy Ribeiro sugeriu que a integração racial ocorreu, mas não foi capaz de pacificar uma sociedade heterogênea, desigual, hierarquizada e excludente. Jesse Souza culpa a elite do atraso por ter fabricado simulacros intelectuais de um país se esquecendo de levar em conta um aspecto fundamental da nossa história política, econômica e social: os 350 anos de escravidão e seu legado.

Cada um destes intelectuais cometeu um pecado capital. Sérgio Buarque de Holanda se esqueceu os episódios extremamente violentos da história colonial, imperial e republicana. Gilberto Freyre não quis ver que entre a casa grande e a senzala não havia espaço para os índios, cujos territórios encolheram para que ambas pudessem se expandir. Raimundo Faoro tratou a corrupção como se fosse um privilégio dos brasileiros, muito embora ela também tenha sido e ainda seja extremamente popular na Europa e nos EUA. Darcy Ribeiro não quis ver um fato essencial: a perpetuação do Brasil não pode ser explicada apenas pela violência política e pela exclusão econômica. Jesse Souza vê a escravidão e seu legado, mas deu pouca importância ao que ocorreu aos índios que foram moídos para que os negros-coisas pudessem ser obrigados a moer cana.

Cá chegaram uns portugueses. Eles fugiam da miséria e das guerras que assolavam a Europa durante a Idade Média. Cá estavam centenas de tribos indígenas que fugiam umas das outras e que se enfrentavam sempre que fugiam de territórios que haviam sido exauridos pela caça, coleta e plantio rudimentar. Para cá foram trazidos os negros que não conseguiram fugir dos caçadores de gente na África. Muitos deles conseguiram fugir dos seus novos mestres.

Nossa gloriosa história militar também é feita de fugas. Enquanto eram poucos, os colonos fugiam dos índios hostis se refugiando dentro das paliçadas e dos castros. Quando os holandeses chegaram os luso-brasileiros fugiram dos seus engenhos e das suas cidades. Mas alguns deles preferiram fugir da do catolicismo, acreditando que a religião do invasor poderia ser mais lucrativa. D. Pedro I fugiu da autoridade do pai e nos deu a independência, mas o país rapidamente fugiu ao controle dele. Os soldados brasileiros fugiram para o mato quando o Paraguai invadiu nosso território. Algumas décadas depois, eles também fugiriam dos aguerridos defensores de Canudos.   

Washington Luís e João Goulart fugiram do Brasil. Getúlio Vargas fugiu da vida para entrar na história. FHC fez um pé de meia duvidoso e se escafedeu para a Av. Foch em Paris. Pobrezinha, Luana Piovani só conseguiu fugir para Portugal. Michel Temer e quase todos os membros do seu governo estão fugindo da Justiça. Os juízes e procuradores fogem do teto salarial, alguns deles também fogem da legislação quando são obrigados a julgar seus amigos ou seus inimigos.

Sempre que procuramos compreender o Brasil fugimos de alguma coisa, ou pior, o objeto de nossas especulações foge sem nos fornecer pistas da sua natureza e paradeiro. Talvez apenas a fuga explique nosso modo de ser, de viver e de compreender a realidade. Dilma Rousseff se recusou a fugir. Esse foi o imperdoável crime de lesa magestade que nossa presidenta cometeu.

A julgar pelo que tem sido publicado nos jornalões e revistinhas, os varões da boa sociedade brasileira*, ou seja, aqueles que promovem a fuga do seu rico dinheirinho para os EUA e/ou Europa, esperam que Lula rejeite o exemplo de Dilma Rousseff e faça o mesmo que João Goulart fez. Se o cabra ficar e uma guerra civil eclodir os valentões que gritam para os porteiros, copeiros e flanelinhas “Sabe com quem você está falando?”  serão os primeiros a fugir?

Não é por acaso que nossa principal festa popular é o Carnaval. Durante uma semana os brasileiros assumem publicamente que são fingidos. Os pobres fingem que são ricos, os ricos fingem que são pobres. Os inocentes fingem que são culpados e os culpados fingem que são inocentes. Embriagados, fingiremos todos que somos felizes, porque o resto do ano seremos obrigados a fugir de nossas tragédias pessoais que se somam para construir esta imensa tragédia nacional que foge à qualquer compreensão. Ao invés de explorar e exportar nossas riquezas preferimos dar o que é nosso porque há séculos queremos fugir à responsabilidade de construir uma nação.

*boa sociedade brasileira: essa expressão tem um grande valor retórico e nenhum conteúdo sócio-político.

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador