Um autômato do século XVIII no Planalto Central

Num de seus contos fantásticos, Edgar Allan Poe descreve a máquina de jogar xadrez inventada em 1769 pelo Barão Kempelen, de Bratislava, objeto que foi adquirido e modificado pelo senhor Maelzel. O narrador menciona as hipóteses que foram dadas para o funcionamento do autômato por escritores europeus. Depois de fazer isso, relata as observações que fez durante algumas apresentações do jogador de xadrez para apresentar suas próprias explicações. Não é possível comprovar nenhuma das explicações, pois o autômato foi destruído num incêndio em 1854, ou seja, no mesmo ano em que o senhor Maelzel faleceu.

Esse conto está presente no livro Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe, editor Victor Civita, São Paulo, 1981, que foi adquirido por mim em 06/01/1982. Quando li pela primeira vez esse conto, os computadores pessoais e os telefones celulares eram ficção científica. Dez anos depois eu mesmo já havia acostumado a jogar xadrez no meu “Solution 16”, primeiro computador de 16 bits fabricado e comercializado no Brasil.

O jogador de xadrez do doutor Maelzel podia ser derrotado. O primeiro programa de xadrez que utilizei também, mas a tarefa não era muito fácil. Lembro-me de ter jogado centenas de partidas no “Solution 16”. Consegui empatar uma partida e ganhei duas delas. Todas as demais foram vencidas pela máquina. Na versão seguinte do programa de xadrez que adquiri era quase impossível derrotar o “Solution 16”, razão pela qual parei de tentar fazer isso.

Alguns anos depois, um programa simulando Inteligência Artificial conseguiu derrotar o maior enxadrista do mundo. Desde então as máquinas de jogar xadrez se tornaram tão sofisticadas que elas não perdem tempo jogando com os seres humanos. Impossível dizer como elas se sentem quando jogam umas com as outras. Mas não é disso que eu pretendo falar.

No Brasil, a julgar pelo resultado da eleição e pelos primeiros dias do desgoverno Bolsonaro, a inteligência política continua sendo tão sofisticada quanto a máquina de jogar xadrez do senhor Maelzel.

“Foram feitas diversas tentativas de resolver o mistério do Autômato.” (Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe, editor Victor Civita, São Paulo, 1981, p. 411)

Os avanços e recuos de Jair Bolsonaro nos 10 primeiros dias de seu desgoverno também são misteriosos. Ninguém sabe exatamente o que o faz avançar e recuar. Diversas teorias foram criadas para explicar o funcionamento do capitão autômato que ganhou a presidência da república, mas nenhuma delas é totalmente satisfatória.

Sempre que bate continência para alguém, o resultado da jogada de Bolsonaro é incerto. Ele disse que mudaria a Embaixada do Brasil para Jerusalém, mas a manteve em Tel Aviv. Disse que vai autorizar a construção de uma base militar norte-americana no Brasil e foi obrigado a voltar atrás. Em razão do chanceler amalucado que escolheu, Bolsonaro já está caindo em desgraça aos olhos da mídia nacional. Na imprensa internacional ele já conseguiu desgraçar a imagem do Brasil antes mesmo de mandar alguém tomar no cu na Europa.

Segundo o narrador do conto, o jogador de xadrez que maravilhou as platéias na Europa e nos EUA era acionado por um homem escondido dentro da máquina. Quando pertencia ao Barão Kempelen, o autômato parou de funcionar no momento em que um empregado italiano dele ficou. O mesmo ocorreu quando a máquina já estava na posse do senhor Maelzel e um tal de Schlumberger adoeceu.

Nos EUA, na Europa e na Ásia há uma terceira revolução industrial em curso. O desenvolvimento da Inteligência Artificial  é fruto de debates intensos. Num dos cenários, a Singularidade https://pt.wikipedia.org/wiki/Singularidade_tecnol%C3%B3gica é imaginada como o marco inicial de uma era de paz e prosperidade. No outro, é tratada como o princípio do fim da humanidade.

No Brasil, entretanto, tudo indica que retrocedemos ao século XVIII. O paradigma de funcionamento do desgoverno Bolsonaro não é uma Inteligência Artificial e sim o jogador de xadrez de Maelzel.

O exercício do poder provoca isolamento. O homem escondido que fazia o autômato de Maelzel jogar xadrez estava completamente sozinho dentro da máquina. O poder dele para definir suas jogadas era absoluto justamente porque ele não era visto nem mantinha contato com ninguém. Jair Bolsonaro é visto todos os dias na TV, mas não consegue exercer o poder sozinho. Tudo indica que há sempre alguém acionando o mecanismo que o faz avançar e recuar.

Num Estado de Direito o controle da legalidade dos atos do presidente é feito pelo Poder Judiciário. Desde a posse de Bolsonaro o Judiciário saiu de cena, mas já ficou evidente que o controle do jogo político não pertence ao autômato em que foi colocada a faixa presidencial. Quem está acionando as engrenagens do novo presidente do Brasil fazendo-o avançar e recuar como se fosse o jogador de xadrez de Maelzel? Os generais da ativa? O pastor Malafaia? Os filhos dele? O embaixador dos EUA? Todos eles ao mesmo tempo?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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