Um ponto de partida: Petróleo, política e caminhoneiros, por Gabriela Souto Maior Baccarin

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

Um ponto de partida: Petróleo, política e caminhoneiros

por Gabriela Souto Maior Baccarin

O desencontro de informações e a falta de combustíveis nas bombas dos postos de gasolina tornaram-se duas desagradáveis constantes ao longo da última semana. Enquanto líderes do governo encenavam normalidade e controle da situação, assistimos apreensivos a diminuição gradual das mercadorias nas prateleiras dos supermercados, a redução das frotas de ônibus, o cancelamento das atividades escolares e o vazio das ruas, antes repletas de automóveis.

Em meio à incerteza, surgiram naturalmente outros temores, alimentados por ecos de um passado ditatorial não tão distante e que ainda não cicatrizou todas as suas feridas.

Como nosso juízo de decisão é prejudicado pelo medo (sobretudo em momentos de confusão nacional e de intensa disputa de interesses), o melhor a se fazer é conhecer o cenário, nos despir de preconcepções e, assim, buscar uma saída verdadeiramente coletiva, ao invés do favorecimento de determinados grupos.

Algumas considerações iniciais

O modelo mundial de consumo é excessivamente baseado em petróleo. Desde a segunda metade do século XIX[1], descobrimos esta forma de energia com elevada eficiência, que revolucionou o modo de se fazer as coisas e, com exceção dos choques do petróleo na década de 1970, o consumo só cresceu. Infelizmente, não há substituto limpo capaz de ocupar a importância dos combustíveis fósseis, ainda.

Esta é a razão pela qual o mercado de petróleo mobiliza as pautas dos governos, em todos os países.É importante nos lembrarmos disso, pois independentemente das características do governo (conservador ou progressista, de direita ou esquerda) todos os governantes reconhecem a dependência em relação ao petróleo.

A título de exemplo, basta recordar que o governo norte-americano interveio em um negócio privado entre uma empresa petrolífera local e uma chinesa, não obstante os EUA sejam pilares do livre comércio e da autonomia privada. A resistência de Washington à compra esteve juridicamente amparada por leis de segurança nacional[2].

Por isso, dada esta importância estratégica, não podemos comparar o petróleo a uma commodity qualquer.

 

E no Brasil?

Pois bem, a descoberta de petróleo na década de 1950 e a criação da Petrobras por Getúlio Vargas sofreram pressões internacionais. Inicialmente, muitos julgavam inúteis os esforços de se procurar petróleo nacional. “Para que investir em pesquisa de jazidas se podemos comprar de fora a gasolina, o diesel e o querosene prontos?” A resposta é simples. O controle sobre os poços de petróleo significa o controle decisivo da economia nacional e, assim, torna-se peça-chave para a soberania do país, além de impactar nas economias dos eventuais compradores.

Todavia, as descobertas iniciais de petróleo no Brasil não despertaram a atenção internacional, como na Arábia Saudita ou na Venezuela e no México. O nosso petróleo tinham uma extração um pouco mais custosa (as plataformas estão no mar, ou seja, são offshore) e as reservas não eram tão expressivas como nos países citados acima. Consequentemente, o Brasil não foi para o centro das atenções internacionais e pode manter razoável produção estatal.

Anos mais tarde, no contexto do programa de privatizações da década de 1990, a Petrobras voltou a ser o foco dos debates.

Graças a muita pressão política, ela esteve fora da lista de privatizações, porém o monopólio para produção e exploração foi relativizado. Este talvez seja um dos pontos mais importantes para a compreensão do tema.

O monopólio, previsto originalmente na Constituição de 1988 (democrática, pós-ditadura e que está vigente até hoje), determinava que a pesquisa, refino e lavra do petróleo brasileiro deveriam ser feitos pela Petrobras, sob o regime de monopólio da União.

Entretanto, a partir da EC n. 9 de 1995, houve a modificação no art. 177 da Constituição Federal de forma a estabelecer a permanência do monopólio da União (o petróleo continuou um bem público da União, nos termos do art. 20), mas com a possibilidade de concessão das atividades de exploração e produção a agentes privados. Neste contexto, mais precisamente em 1997, foi editada a Lei 9.487, que estabeleceu o regime de concessão do petróleo.

Do ponto de vista jurídico, essas mudanças causam estranhamento. Em primeiro lugar, porque a palavra “monopólio” continua na Constituição. Mas, de acordo com o entendimento do STF[3], o monopólio (isto é, a exclusividade do Brasil) se aplica para a propriedade do petróleo debaixo da terra, não explorado e, portanto, sem viabilidade econômica.

Quanto ao petróleo extraído e que de fato tem potencial econômico, este poderia ser concedido para os interessados, inclusive estrangeiros, desde que seguido o devido processo licitatório. Inclusive, o art.26 da Lei 9.478 estabelece que o petróleo extraído passa a ser propriedade do concessionário.

No tocante às obrigações que devem estar presentes no contrato de concessão, chama atenção o fato de o art. 44 da referida leinão estabelecer a obrigação do concessionário de abastecimento do mercado interno com o petróleo nacional.

Ainda assim, a Petrobras venceu empresas estrangeiras em diversas licitações e manteve sua posição de destaque e o controle de grande parte das reservas nacionais. Por isso, até hoje sua política de preços influencia nosso mercado interno.

No ano de 2006, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e o Ministério de Minas e Energia divulgaram a autossuficiência brasileira de petróleo. Na matemática simples, o volume de petróleo extraído dos campos brasileiros era superior ao volume importado. Mas, existe um detalhe precioso aqui: embora já tivéssemos alcançado o volume, exportávamos óleo bruto e importávamos os derivados (gasolina, diesel, querosene etc.), que, evidentemente, possuem maior valor agregado. Por isso, na prática, o país ainda gastava mais do que recebia, em relação ao petróleo.

Até que em 2007, após maciços investimentos da Petrobras (ou seja, boa parteda operação foi financiada pela população brasileira), descobrimos uma reserva de petróleo muito importante e volumosa, o pré-sal.

 

E o que muda com o pré-sal?

O pré-sal possui um novo regime jurídico de exploração. Ele não estava necessariamente atrelado àquele modelo de concessão de 1997; o Congresso Nacional pôde votar uma nova forma de exploração, tomando como base os diversos modelos existentes pelo globo.

Acabamos decidindo pelo regime de partilha. De acordo com este, a Petrobras (empresa estatal) seria a operadora nacional do petróleo do pré-sal. Mas, isso significa não haver espaço para agentes privados? Não. Os agentes privados poderiam explorar e obter petróleo brasileiro das camadas pré-sal, só que a Petrobras sempre estaria atuando em parceria com eles. Ou seja, ao menos uma parcela daquele campo caberia a ela explorar.

Além disso, a União (leia-se, o Estado brasileiro) seria paga em barris produzidos – daí o nome regime de partilha (partilha da produção).

Desde logo, dois aspectos saltam aos olhos em relação ao regime de partilha: 1) recebendo em barris, o governo tem óleo para abastecer o mercado interno, aconteça o que acontecer; 2) é mais difícil receber propina em óleo que em dinheiro, embora pagamentos em dinheiro possam ocorrer por fora, é claro.

Porém, a adoção deste modelo de partilha não correspondeu às expectativas das grandes petroleiras mundiais, já que elas perderiam o controle absoluto das reservas e do preço de venda do óleo. Basta imaginar, por exemplo, que se um agente privado estabelecer o preço de 100 dólares por barril, a Petrobras e o governo nacional são autônomos para vendê-lo a 50 dólares e garantir o funcionamento da economia nacional.

 

A nova política de preços

A participação da Petrobras no mercado nacional ainda é decisiva, não obstante os movimentos recentes que privilegiaram a atuação de agentes internacionais privados. Por isso, sua política de preços reflete-se em toda a cadeia nacional, seja na produção de bens ou no cotidiano dos cidadãos.

A partir de outubro de 2016, após a mudança de governo, a Petrobras adotou uma nova política de preços, com o intuito de assegurar maiores lucros dos acionistas privados, embora os custos de produção do petróleo brasileiro e o volume de nossas reservas não tenham sofrido alterações drásticas. Acorrentamos o preço de nosso óleo ao valor determinado pela OPEP (este é o valor do mercado internacional), desconsiderando o impacto interno de uma eventual alta do dólar ou da valorização cíclica do barril de petróleo. Permitimos, inclusive, flutuações diárias no preço.

Pois bem, nos últimos meses, aquelas duas possibilidades foram concretizadas. No momento de adoção da política, o valor do barril era, em média, de US$49,73 e a cotação do dólar comercial girava em torno de R$ 3,20. Já em abril de 2018, o mesmo barril foi negociado por US$ 71,83 e o dólar superou R$ 3,70.

Ademais, a gestão da Petrobras optou por diminuir a produção de nacional de certos derivados, como o óleo diesel, embora nossa capacidade de produção tenha se mantido relativamente estável. Estima-se que cerca de 31% as refinarias tenham ficado ociosas. Isto implicou em um aumento da importação destes produtos, pagos em dólares e negociados pelos preços internacionalmente estabelecidos.

Mesmo que os acionistas estejam melhor remunerados, não parece adequado que a empresa estatal de setor tão estratégico da economia, e em posição privilegiadíssima de mercado, estabeleça uma política de preço completamente desvinculada dos objetivos do desenvolvimento nacional. Sem defender subsídios irresponsáveis, podemos sim repensar a política de preços, equilibrando os custos de produção e a remuneração dos acionistas, mas sem perder de vista primordialmente os interesses da economia brasileira como um todo.

 

As particularidades da crise política brasileira

Não bastassem os fatos acima descritos, o Brasil enfrenta uma crise política aguda que contribui para um panorama ainda mais complexo.    

Em 2014, tivemos uma eleição extremamente acirrada, com pequena diferença de votos e duas grandes candidaturas. Isso foi ruim para uma democracia tão jovem quanto à nossa, pois a disputa presidencial virou uma partida de futebol (no futebol mineiro, um clássico Cruzeiro x Galo). Pouco importavam as propostas e o debate de ideias, o que valia mesmo eram as cores e as figuras.

Desconheço, sinceramente, amizades desfeitas no Facebook ou as agressões físicas cometidas nas ruas antecedidas por debates sobre o papel da indústria brasileira ou sobre o projeto de reforma do ensino médio. Elas eram, na verdade, precedidas por xingamentos e gritos de “coxinha” ou “petralha”.

Enfim, nos polarizamos sem nos politizar. E nos afastamos sem discutir seriamente o que era bom para o Brasil.

Poucos meses depois, o país passou por uma ruptura institucional séria, oimpeachment. Na Constituição, o impeachment está previsto em situações legais bastante delimitadas e, para muitos juristas (de todos os partidos políticos), não havia fundamento legal para o impeachment (estes fundamentos jurídicos não têm a ver com competência ou governabilidade). O que houve no Brasil foi um recall, como acontece nos governos parlamentaristas, quando o presidente perde apoio do Congresso. O detalhe é que nossa Constituição não prevê ou permite isto, ela diz somente que o representante majoritário eleito cumprirá o mandato de 4 (quatro) anos e por isso fala-se tanto em golpe, isto é, uma ruptura constitucional.

Nesse sentido, é importante lembrar que as leis falam claramente que, se ocorrer crime de responsabilidade, o presidente torna-se inelegível por 8 (oito) anos. Mas, como fizemos um recall fantasiado de impeachment, o Senado decidiu apenas afastar a Dilma da presidência, sem a punição por crime de responsabilidade (que seria justamente a inelegibilidade).

Acontece que o impeachment é apenas um exemplo das quebras institucionais que vemos diariamente nos jornais brasileiros: temos prisões forçando delações, intervenção federal desrespeitando direitos básicos dos moradores de comunidades (como o de ir e vir), juiz de primeira instância desrespeitando os juízes da corte suprema, vereadora assassinada por milícia, general desrespeitando o comandante do exército, direitos trabalhistas indo pelo ralo, auxílios fora do teto da Constituição e assim por diante.

As instituições democráticas só funcionam se todos as respeitarem. Quando cada grupo começa a passar em cima dos seus direitos e deveres porque quer, o país fica refém de interesses de setores e classes. Então, vira um “salva-se quem puder” e o que é de todos já não importa, tampouco será protegido.

E foi exatamente isso que vivenciamos na última semana. Não houve greve, houve a paralisação de um setor para exercer a maior pressão possível.

Ou seja, não foi um movimento organizado por trabalhadores em busca de mais direitos, já que quase 70% da frota é composta por transportadoras.  Mas, sobretudo, um movimento de empresários interessados em reduzir a sua carga tributária, sem se preocupar em reabastecer o país. (Diga-se de passagem, o locaute é proibido por lei.)

Também não é coincidência o fato de uma das primeiras leis a serem modificadas pelo governo Temer ter sido a do modelo de partilha do petróleo, atendendo, pois, às empresas internacionais. Sem dar satisfação à opinião pública, fragilizamos a partilha e a tornamos mais próxima do modelo de concessão, tal que agora o petróleo do pré-sal também pode ser explorado apenas por agente privados, novos proprietários do produto extraído.

Também não é surpresa o fato de os preços do diesel e da gasolina terem subido drasticamente nos últimos dois anos, graças à nova política de preços.

A questão é que na pauta das transportadoras não se falou em política de preços, mas só em redução de impostos, que geram receitas, entre outros, para as rodovias, para a saúde e educação de toda a sociedade.

Ou seja, um grupo pressionou o governo, que retirou os impostos com impacto de mais de 10 bilhões de reais para os cofres públicos, e todos arcaremos com este custo. Infelizmente, ele não será o único custo com o qual arcaremos.

No último mês de novembro, enquanto buscava às pressas votara reforma da previdência, o governo editou a MP 795/17, convertida na Lei 13.586/17, que isentou as petroleiras internacionais do pagamento de tributos até 2040. Só este dispositivo já conta com a previsão de menos 50 bilhões de reais arrecadados por ano.

Cabe lembrar que existe uma forte corrente econômica que afirma que nossa crise não é apenas de gastos, mas de arrecadação. Pois isentamos sem critério.

Enfim, nem mesmo os envolvidos entendem com clareza o que está ocorrendo. Pedem militares na rua, sendo que os mesmos militares foram chamados para reprimi-los. O que os trabalhadores de frete de cargas sentem na pele é que pagam muitos impostos e o governo retribui com muito pouco. Entretanto, acabaram por dar voz aos interesses de setores das transportadoras.

Como o atual governo se curvou aos interesses de alguns, é provável que outros grupos exerçam pressão nos próximos meses a fim de aliviar seus prejuízos. Para a gente, o que resta é obter o maior número de informações possível e eleger em outubro o projeto de país que verdadeiramente nos represente, sem deixar que escolham por nós.

Gabriela Souto Maior Baccarin é Advogada e mestranda em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP), onde estuda Direito e desenvolvimento, em especial, o modelo de exploração e produção de petróleo.


[1]O petróleo já era conhecido há muitos séculos, mas não era queimado para a geração de energia. Passavam nas casas para proteção térmica e até no corpo como tratamento. Mas foi nos EUA, após 1850, que ele se tornou fonte de energia. Os EUA são repletos de reservas internas de petróleo e desenvolveram nas décadas seguintes uma grande indústria automobilística. Isto, associado à fragilidade da Europa por causa das duas guerras mundiais, explica em boa medida como eles se tornaram esta potência mundial. Fora isso, não obstante as suas reservas internas, continuaram a procurar e a explorar petróleo em outras regiões do globo.

[2]https://www.nytimes.com/2005/06/22/business/worldbusiness/chinese-oil-company-offers-185-billion-for-unocal-2005062291368816095.html

[3] ADI 3366 – DF, rel. Ministro Eros Grau.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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