Análise sobre como chegamos neste dia trágico para a democracia, por Sérgio G. Reis

Análise sobre como chegamos neste dia trágico para a democracia

e o que podemos fazer para superá-lo

por Sérgio G. Reis

Neste breve ensaio, tento apresentar algumas explicações mais amplas sobre como a aprovação da admissibilidade do processo de impeachment, ocorrida ontem, foi possível, a partir da incompatibilidade entre o modelo de Presidencialismo de Coalizão adotado pelo governo e as políticas anticorrupção desenvolvidas ao longo das gestões do PT, em combinação com a desconexão entre o mundo da política institucional (o Congresso) e a realidade material. Em seguida, proponho saídas que nós, democratas de esquerda, devemos perseguir nos próximos dias, com intensidade, para que o golpe não prospere. Notadamente, ressalto a importância de fazermos transparecer em pesquisas de opinião a decadência do sentimento pró-impeachment, algo já aparente, como busco explicitar.

Finda a trágica farsa de ontem, 17 de Abril, ficou finalmente clara para a população brasileira, dentre tantas outras questões, a correlação de forças existente no Congresso. É interessante pensarmos que ele, efetivamente, não representa o complexo conjunto de segmentos que conformam a nossa sociedade. Também é válido percebermos que ele mostrou, mediante tantos e tantos discursos dedicados a avalizar votos com base em homenagens às próprias famílias, que não há como reconhecer aquele como um espaço verdadeiramente público, como se esperaria de uma Casa do Povo, independentemente se mais ou menos progressista.

A farsa de ontem nos mostrou que, neste momento, é ingovernável um país cuja Câmara dos Deputados é formada majoritariamente por achacadores, oportunistas e autointeressados. Na verdade, só seria possível fazê-lo por meio de um Executivo igualmente pusilânime, malversador e ímprobo. Estamos, agora, nos encaminhando para tanto.

Esse fantasmagórico processo de deposição nos é muito didático para compreender a dificuldade que foi, para o Partido dos Trabalhadores, governar o Brasil ao longo destes últimos 13 anos, em especial nos últimos, quando a economia deixou de fornecer subsídio moral à continuação de um governo de centro, talvez de centro-esquerda, em meio a um Legislativo plasmado por interesses os menos republicanos. Sem ter avançado em reformas que pudessem reconfigurar esse mundo espúrio, não era difícil perceber que, um dia, à primeira oportunidade, essa Administração com alguma pretensão progressista seria escorraçada.

Isso também é interessante, como pedagogia sobre a política nacional, na medida em que nos mostra como o Presidencialismo de Coalizão, por um bom tempo, operou certos milagres. Digo isso porque quando vemos o comportamento e os discursos de tantos e tantos deputados – lá presentes há pares e pares de legislaturas, representando bancadas mais e mais ensimesmadas – notamos que o conservadorismo ideológico e o fisiologismo prático efetivamente constituem componentes essenciais desses quadros políticos.

Reconheçamos, então, o mérito de se conseguir governar tanto tempo em meio a esse caldeirão do familismo. Registre-se que isso não é ufanismo ou governismo, é apenas tentativa de compreender o descalabro corrente. Fato é que tantos e tantos desses congressistas estiveram com o governo em algum momento. Havia ali ex-Ministros, ex-líderes do Governo, ex-aliados – e seus filhos e netos. Traidores? Sem dúvida. Mas o que é curioso é pensarmos como, uns por tanto tempo, outros por menos, essas figuras votaram com o governo, mesmo em pautas as mais progressistas. Várias dessas lideranças inclusive estiveram dentro do Poder Executivo, tocando Ministérios e políticas públicas voltadas ao avanço social.

Certamente, enquanto estiveram com o governo, o fizeram não por concordância ideológica, mas por absoluto senso de autopreservação. É o indício básico para postularmos que o Presidencialismo de Coalizão visa realizar um certo postulado liberal que aponta para a produção de “virtudes públicas a partir de vícios privados”. Bastante contraditório, afinal de contas, com o que se conceberia para um projeto de país progressista, convenhamos.

Fato é que esse modelo desabou não apenas pela incrível incapacidade de articulação de Dilma Rousseff. Ele se rompeu porque finalmente os Congressistas puderam expressar o que pensam, do âmago, do fundo d’alma. No seio do nosso modelo privatista, não há como viger outros valores que não Deus ou a família – quem sabe a pátria, sempre concebida como antítese do dissenso ideológico, saudável em qualquer democracia. Essa é a tragédia real desse processo: perceber que a correlação de forças – não a societal, que também é conservadora, mas mais jogada, mais disputada – do Congresso aponta para um indelével provincianismo, pela incapacidade de pensar o público, pela dificuldade de se articular um discurso crível, pelo distanciamento, enfim, de qualquer noção de juízo. É uma esfera que se descolou completamente do tecido social e que vive um mundo próprio – mas um mundo com uma imensa capacidade de determinar os rumos desse tecido social, sem representá-lo, efetivamente.

Em meio a isso tudo, o que observamos é que o governo, incapaz (ou leniente em sua tarefa) de reformar o sistema político, efetivamente perdeu a capacidade de conduzir minimamente um projeto que as urnas referendaram. O que parece ser uma esquizofrenia institucional é algo, na verdade, bem compreensível: fracassado em seu esforço de reconfigurar a esfera pública – acolchoado que lhe daria condições de avançar, com segurança, com seu projeto reformista – o PT abriu grandes brechas para que seu programa fosse corrompido pelo establishment na primeira ocasião em que a razão de ser para a sua existência e para a esquerda, em geral – o apoio popular – se esvaísse.

Ora, não é lamentavelmente irônico que uma governanta inflexivelmente honesta e ilibada venha a cair em meio a uma salada mista de discursos anticorrupção por parte de centenas de Congressistas envolvidos até o pescoço em maracutaias, listas de propinas, processos no STF e miscelânea? Nada mais ocorre aí do que a falência de se combater a corrupção se articulá-la à reforma do Estado e sem compreendê-la, sim, como uma política social. Trocando em miúdos, o PT avançou incomensuravelmente no combate aos ilícitos de toda sorte, sem produzir uma governança que lhe permitisse enfrentar o status quo e, ainda, governar quando todas essas tensões consubstanciadas no enfrentamento ao patrimonialismo viessem à tona.

Em outras palavras: o combate à corrupção promovido por Lula e Dilma foi desses vetores que mais avançou, do ponto de vista do “reformismo fraco” apontado por André Singer. Mas foi estratégia manca, desconectada dos demais processos que permitiriam aos governos do PT a guarida necessária para atuar quando os interesses de um sistema essencialmente corrupto fossem atingidos. Aliás, é muito curioso como a falta de um projeto de intervenção efetivamente sistêmico também parece ter sido a causa da falha retumbante de Dilma em atacar o capital rentista, como vimos em 2012-3 – quando os “tiros para todo o lado” da política econômica, no final das contas, não conseguiram lidar com o fato de nossos industriais preferirem a especulação à produção (o chamado “conluio antidistributivo” como tão bem explicou Adalberto Moreira Cardoso aqui). Observa-se, dentre outras questões, portanto, a imcompatibilidade entre a manutenção do Presidencialismo de Coalizão e o desenvolvimento, tal como ocorrido, das políticas anticorrupção levadas a cabo pelo Executivo nestes últimos anos. Lições que nós, da Esquerda, precisamos apre(e)nder.

Vivemos, agora, o “conluio antiprobidade”. O PT criou uma série de medidas de prevenção, detecção e punição da corrupção, dando imensa autonomia para os órgãos de defesa do Estado trabalharem. Esqueceu que o republicanismo não brota por espontaneidade. Voltaram-se seletivamente contra essa Administração tantos e poderosos agentes que só poderiam atuar com liberdade e empoderamento de 15 anos para cá. Por um lado, os governos petistas não se prepararam, então, para lidar com esse cenário – servidores públicos conservadores ávidos e álacres por atacarem a esquerda por meio do velho discurso da corrupção. A atuação de José Eduardo Cardoso é absolutamente exemplar e pictórica nesse sentido, por sua clara dificuldade gerencial em desconstruir o flagrante partidarismo no interior de setores importantes da Polícia Federal, sem que isso aparecesse como cerceamento de suas atividades. Por outro, não houve estratégia para encarar o momento em que as políticas anticorrupção efetivamente alcançassem os aliados de ocasião, reacionários e locupletadores de sempre.

Na prática, vemos portanto uma Administração que desfalece perante a Opinião Pública por não conseguir articular um discurso crível sobre a velha chaga da corrupção. E é evidente que isso tem a ver com o laissez-faire amplo praticado nesses 13 anos com relação aos meios de comunicação, desde sempre a espinha dorsal do golpe. O PT perdeu a base social de apoio, então, por sua incapacidade de mostrar a necessidade de separar o joio do trigo. E é, também, claro que suas práticas corruptas corroboraram bastante para isso.

O ponto com relação a isso é que a batalha foi perdida do ponto de vista da produção de um discurso que mostrasse que a probidade com relação à Administração Pública não é não haver casos de corrupção – algo que seria inacreditavelmente ingênuo de se crer, e que foi repetido tantas vezes nos bizarros discursos dos Congressistas da oposição. É, por óbvio, que os casos de corrupção sejam descobertos, investigados e julgados, na letra da lei e da Constituição. Isso, contudo, exige a vigência de uma noção de espaço público que não está colocada à disposição no debate, seja nos círculos sociais mais íntimos, seja no Congresso. É muito mais fácil e idílico conceber a “Cidade de Deus” agostiniana, lamentando continuamente a realidade que não se adequa à ficção, do que compreender as raízes do problema e atacá-las com coragem e autocrítica.

Hoje, a única saída para que o Impeachment não seja aprovado no Senado é resgatar o único novelo de racionalidade que ainda conecta o mundo político à realidade material: as pesquisas de opinião. Quando todo aquele espetáculo contra Lula foi empreendido, no começo de Março, a aprovação ao Impeachment estava beirando os 70%. No último levantamento feito pelo Vox Populi, em 12-13 de Abril, havia caído para 57%. Daí a necessidade de o Establishment aprovar rapidamente o processo em curso. É fundamental passar logo o bastão para Temer, antes que fique claro que as pessoas estão começando a cansar – e que, portanto, o apoio ao golpe diminua dos 50%. E, igualmente, é essencial que a transição ocorra logo, antes que comecem a feder nos escaninhos os incontáveis processos e planilhas que expõem as vísceras do capitalismo nacional e de sua inexorável conexão com o submundo da política – esse, que votou o Impeachment ontem.

O discurso de certos segmentos sociais de que serão removidos do poder, um a um, os “corruptos da nação” por óbvio é mera cantilena, que expressa razoável conhecimento sobre o processo de votação de reality shows, mas não sobre a democracia e, muito menos, sobre a política, notadamente no contexto brasileiro. Em meio a evidentes processos de (auto) salvação nacional, o desgaste da contínua mobilização popular da direita e dos setores despolitizados ficou absolutamente evidente ontem. Assim que Dilma for jogada aos leões e Moro se der por satisfeito em sua cruzada, “teremos nosso Brasil de volta”.

Fundamental, portanto, é resistir nesses dias cruciais, fazendo alcançar ao cidadão médio a nítida noção de que o Impedimento expressa exatamente o contrário do que parece ser: por mais que o governo Dilma seja, hoje, imóvel, retirá-la não significará menos corrupção, mais crescimento econômico ou mais estabilidade. Serão o oposto, o negativo disso em um governo Temer-Cunha. A chance que resta é sensibilizar, minimamente, essa opinião pública, exausta do massacre midiático diário. Se o processo demorar mais um pouco, se a ridícula atuação dos Congressistas na farsa de ontem for explorada, e se a nulidade jurídica do Impeachment for trabalhada junto ao cidadão comum, então teremos uma chance de desgastarmos a aprovação popular pelo golpe, que já ocorre por inércia. 

Assim, enfim, poderemos utilizar esse único fio que liga, de forma cada vez mais indireta, o mundo real ao mundo da política, capaz de sensibilizar, pela “paixão”, mas também pela “responsividade às ruas”, os Senadores. Pois já está mais do evidente que, diante de um golpe em curso, o apelo à racionalidade por parte dos tomadores de decisão (os mencionados Senadores) é carta absolutamente fora do baralho. Está fora do campo semântico convencê-los da obviedade de que não há fundamento no relatório do Deputado Jovair Arantes. Afinal, ora pois, é um golpe. E um golpe precisa de respostas extra-institucionais. E se não queremos, como democratas, soluções que rompam com a normalidade institucional, o caminho sempre será, nesse contexto, o das ruas e o da aproximação com os variados segmentos sociais – esses, sim, com alguma disposição (cada vez menor, é válido dizer). Trabalho de “formiguinha”, Brasil afora, estimulando pequenos manifestos, abaixo-assinados, petições e notas de bairros e comunidades (já são mais de 400, por todo o país), para alcançarmos as famílias – a se indignarem, enfim, com a infâmia a qual, em nome da autopreservação de embusteiros, destrói este país. Façamos cada um a nossa parte nos próximos dias.

Crédito da Imagem: https://democraciaeconjuntura.files.wordpress.com/2015/08/000asalvador-dali-wallpaper.jpg (Quadro de Salvador Dalí)

Redação

7 Comentários

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  1. A farsa se repetindo

    Nunca deixei de tentar esclarecer as pessoas seja politiciamente, historicamente e/ou sociologicamente, mas reconheço que nem sempre se tem êxito. A essa altura, so se o governo pudesse ocupar espaços enormes nos veiculos de midia, principalmente radio e tevê e contar – como um conto – muito didaticamente o que esta acontecendo e o que sempre aconteceu neste Pais. 

    João Goulart era um homem bom, coisa realmente rara no meio politico, honesto e preocupado com o trabalhador. Dilma Rousseff também é uma mulher boa, honesta e preocupada com o trabalhador, ainda que tenha incorrido em erros. E se o senado não tiver Coragem, Honra e Decência, vai destitui-la, como ha muitos anos Goulart foi destituido. O que muda? Não precisam mais de armas, bastam a mentira, a propaganda e a falta de decoro com o cargo e o momento, assim como tiveram seus colegas deputados.

    1. Minha cara Maria Luisa com

      Minha cara Maria Luisa com todo respeito, João Goulart ser um homem bom não é um dado na politica. Um homem bom pode causar um imenso desastre, Neville Chamberlin tambem era um homem bom que não tinha noção da realidade e Churchill não era um homem bom mas tinha precisa ideia da realidade e salvou a Inglaterra nos anos criticos de 1939 a 1941.

      Goulart não era um bom politico, suas escolhas na Casa Civil, Darcy Ribeiro e na Casa Militar, General Assis Brasil foram tão ruins que Goulart caiu com uma folha ao vento, os dois não tinham nenhuma capacidade para os cargos e deixaram Jango a descoberto. A incapacidade de Jango resistir às loucuras de Brizola como o motim dos marinheiros e os “generais do povo”,

      militares sem nenhuma estatura que apareciam em comicios nos ombros de populares, como Osvino Ferreira Alves e Paulo Suzano (Marinha) facilitou enormemente o movimento militar, Jango praticamente entregou o poder porque não tinha a minima possibilidade de defesa e ao contrario do Chile no caso brasileiro não houve realmente uma operação militar, Jango foi deposto

      por um simples comunicado do Palacio Duque de Caxias e alguns telefonemas, foi um vexame como organização do poder.

  2. Alguèm por favor me diga!!!

    Alguèm por favor me diga!!! por onde andam   aqueles senhores fardados  que batem no peito e dizem que entre outros  o maior papel das Forças armadas e defender a constituição, a democracia e o estado de direito. O país  esta sendo esmagado esculhambado, violentado, estuprado por um grupo de canalhas da pior espécie, ladrões,falsários, corruptos que deveriam estar cumprindo pena, mas, nem ao menos foram investigados,o pior do pior é que esta canalhada e bandidos, podem julgar e destituir do poder uma presidente legalmente eleita. Forças Armadas!!! e aquele JURAMENTO DE DEFENDER A CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA, BEM COMO O ESTADO DE DIREITO, COMO FICA????? O silêncio dos senhores é preocupante, esperamos que não seja também comprometedor…

  3. Esquecimento
    Continuam sem publicar os que se colocam contra os articulistas. A questão em jogo não é de probidade, mas de competência. A falecida Madre Teresa de Calcutá não seria uma boa presidente e nem o Papa Francisco. E estão se esquecendo da ministra da energia, que fez parte do Conselho Diretor da Petrobras e que autorizou o prejuízo de Pasadena. Numa empresa privada ela seria demitida.

    1. Não seja imbecil!

      A ignorância em Administração não é atenuante para sua asneira política. Conselho de Administração não é Diretoria. Diretor é executivo. Conselheiro é o elo entre o sócio e o executivo. Numa empresa privada Dilma não seria demitida, seriam demitidos os diretores e analistas que orientaram mal o CA.

      Além do mais, está comprovado que a compra de Pasadena se enquadrava no planejamento estratégico da empresa. Todo o resto foi por queda do preço do petróleo e inépcia dos executivos, não dos conselheiros.

  4. ótima análise e

    ótima análise e sugestões….

    esse deveria ser o rumo do debate  – sugestões inteligentes para um saída viável….

    o difícil aí é atingir a massa, já que a grande mídia é golpista…

    mas a lucidez ainda há de iluminar o debate….

    valeu….

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