Uma nova década perdida, por Fábio de Oliveira Ribeiro

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por Fábio de Oliveira Ribeiro

O governo do usurpador continua alimentando a recessão combinada com um nível elevado de desemprego. É óbvio que o Brasil não vai conseguir dar emprego aos adolescentes pobres que necessitam ingressar no mercado de trabalho. Ao contrário dos outros jovens (aqueles que nasceram em berço de ouro) eles se transformarão num peso para suas famílias. Em consequencia, milhares deles serão presas fáceis do alcoolismo, da dependência química e das gangues de criminosos.

Eu pertenço à geração de jovens que foi esmagada por baixos salários e desemprego durante a década de 1980. Portanto, resolvi narrar como sobrevivi.

Quando acabei o colegial fiquei desempregado. Apesar de ser Técnico em Eletrônica eu não conseguia emprego porque não tinha experiência e não tinha experiência porque ninguém me contratava. Durante um ano eu saia de casa bem cedo para procurar emprego e não conseguia nada. Depois eu passava a tarde inteira num bar dos pais de um amigo da mesma idade. Lá eu jogava sinuca com os camaradas e bebericava algo, desde que não tivesse que pagar a conta. Eu retornava á casa dos meus pais na hora da novela, para evitar recriminações dos meus familiares.

Estudar? Nem pensar. Eu não passei no vestibular da USP. Mesmo que tivesse passado não teria dinheiro para comprar livros e ir e voltar ao campus.

Em 1983, quando já estava me sentindo o pior dos trapos num baú de roupas velhas e emboloradas, finalmente consegui um emprego. Como “auxiliar de depto. pessoal” eu ganhava salário mínimo, que na época equivalia ao preço de 152 cervejas de 600 ml*. Todavia, meu pagamento deveria dar para pagar condução, refeição, cigarro e parte da prestação da casa financiada pelos meus pais.

Meu consumo de bebida alcoólica se resumia a 3 ou 4 cervejas toda sexta-feira numa roda de amigos igualmente mal remunerados ou desempregados. Eu fumava os cigarros mais baratos, ou seja, sem filtro. Beber e fumar eram minhas únicas diversões. Os livros do meu pai eram os únicos que eu lia, pois não tinha dinheiro para comprar outros.

Certa feita um “ajudante de produção” da metalúrgica em que eu trabalhava me pediu um cigarro. Eu dei a ele um “conticonha” (que era como chamávamos o Continental sem filtro). O operário rejeitou o cigarro dizendo que ele podia ser um fodido, mas não estava tão fodido quanto eu e não precisava fumar aquela porcaria. Confesso que fiquei surpreso e arrasado quando isto ocorreu.

A filha do dono da fábrica vivia se engraçando comigo. Um dia o pai dela nos pegou flertando perto do PABX, da central telefônica da fábrica. Ele me chamou na sala dele e me disse que a filha dele não era para o meu bico e que eu deveria procurar uma namoradinha da minha classe social. Se eu não me afastasse da filha dele eu perderia o emprego. Como não conseguiria outro interrompi o romance.

Na década de 1980 os adolescentes que tinham carro (uma minoria) sempre se davam bem com as garotas. Eu não tinha “caranga” e, portanto, não era muito popular entre elas. Resultado, a energia acumulada era gasta em brigas de bar. Algumas das brigas que ocorreram na lanchonete que eu freqüentava resultaram em morte. Felizmente não matei ninguém e não fui morto, mas poderia ter sido em 2 ou 3 oportunidades.

Duas vezes atiraram contra mim e não acertaram. A única vez em que eu estava sozinho e poderia ter sido morto a facadas por uma turma rival, um amigo de um amigo meu entrou na lanchonete com um revólver na cinta. Ele se sentou para beber comigo (pois sabia que eu era amigo do amigo dele) e a turma rival ficou com medo de me atacar. A arma do rapaz não funcionava e ele só andava com ela para zoar.

Em 1985 passei no vestibular para cursar direito na Faculdade de Direito de Osasco. Na época eu ganhava 2 salários mínimos. No ano seguinte, 1986, comecei a ganhar 3 salário mínimos num outro emprego. Durante cinco anos a mensalidade da faculdade consumia 1/2 ou 1/3 do meu salário, mas eu já podia fumar cigarros com filtro. Foi nesta época que comecei a freqüentar os sebos no centro de São Paulo. Nunca me senti mal por ter que comprar e usar livros usados.

Naquela maldita década perdida milhares de garotos riquinhos que tinham carros e motos se despedaçaram nos postes dirigindo bêbados. Eu nunca corri este risco. Toda sexta-feira eu bebia até a lanchonete fechar e andava trinta minutos até chegar a minha “goma”. Nas duas oportunidades em que, como carona, eu estava num carro que se envolveu num acidente sério nada ocorreu comigo.

O segredo de eu ter sobrevivido à década de 1980 foi apenas um: sorte com uma pitada de ironia. Mas a vida não será tão irônica com os adolescentes condenados à exclusão na década de 2016/2026. A violência urbana é mais letal, o tráfico de drogas é generalizado e a quantidade de armas de fogo nas ruas é certamente maior do que na década de 1980.

Não sinto saudades dos bons tempos da adolescência, porque de fato aqueles foram tempos bem ruins. O que eu sinto é piedade destes garotos que serão massacrados por Michel Temer e que, apesar disto, ainda acreditam que Lula/Dilma/PT são os culpados pelo desastre que começou a ocorrer no exato momento em que, instigado pela imprensa, Aécio Neves passou a rejeitar a derrota eleitoral.

*O salário mínimo atual equivale a mais ou menos 156 cervejas de 600 ml

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Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. hehehe, agora eu te entendo melhor.

    tem um técnico em eletronica nesse advogado. taí o motivo da simpatia. eu era pra ser da eletronica, mas acabei nas telecomunicações.

    eu também usava contar salario em numero de cervejas. mas não consigo mais recordar o valor.

  2. Todos muito bons!
    Teu texto, tua temática, teus posts! Sempre muito bacanas. Este relato, supimpa. É uma pena que a conjuntura – ou já estrutura? – tenha te levado a este post. De uma “vibe” tão diferente daquele sobre o “Pequeno Príncipe”, que me fez ver a versão mais recente… Mas tá valendo. A vida não é mesmo um passeio no parque. Essa guinada tem sido cruel com os que – como eu – tinham feito planos para este último sprint de vida. Ter que reformular e readaptar a este caos fétido e desesperador tem sido duro. Mais pelo que tenho visto do que pelo que tenho passado, mas muito triste mesmo assim.

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