Crônica: Conversas ao pé do fogo, por Luis Nassif

Publicada originalmente em 14/11/2004

Recebo carta da prima Terezinha. É manuscrita, apesar de ela possuir e-mail. É típico dela. Em sua escola Criatividade, em Poços de Caldas, que encantou até Paulo Freire, nas aulas de educação física se ensina congada. Recentemente seus alunos levantaram a vida e a obra do maestro Azevedo, que, na primeira metade do século, enriqueceu o repertório das bandas da região.

Com a carta, ela me envia fotos antigas de Poços de Caldas. Cidades são um espaço no tempo. A minha Poços já não há. A cidade de hoje serve para garimpar os últimos resquícios da cidade que já se foi, na figura dos seus derradeiros moradores.
As fotos Terezinha obteve com o Décio Alves de Moraes, que se tornou jornalista depois que herdou de meu pai o honroso cargo de repórter amador da “Gazeta Esportiva”. Hoje em dia, é uma espécie de embaixador dos que se foram. Preserva fotos, histórias, recordações.

Na carta, ela fala dos depoimentos que colheu do Toninho Becaro, clarinetista da banda do maestro Azevedo, e do Querô (diminutivo de Querosene), instrumentista da banda e barbeiro mais conhecido da cidade.

Na primeira foto, está a fachada do bar Seregy, do meu avô Issa, ali na rua Assis Figueiredo, ao lado da Drogasil.

Na outra foto, uma reunião dentro do bar, da diretoria da Associação Atlética Caldense com Fernando Alckmin de Barros, que Décio descreve como “a mais alta autoridade esportiva do Estado”.

No fundo, de pé, meu avô Issa. Na frente, em primeiro plano, meu tio Leonardo. Seu Oscar não aparece na foto, mas aparece em outra, no campo da Caldense, saudando Alckmin.

Com as fotos, um recorte de jornal da “Folha de Poços” e a crônica “Conversa ao Pé do Fogo”, onde o velho narra, com a linguagem leve dos cronistas, a maneira como Alckmin foi convencido a ajudar a Caldense a ter sua quadra coberta. A crônica descreve Alckmin no alpendre de uma casa, de onde se avistava a quadra descoberta da Caldense. Só podia ser da nossa casa. O artigo é de setembro de 1956.

Mas são as fotos do bar que me envolvem. Na minha infância, ele parecia maior do que mostra a foto. Era um corredor comprido. Olhando para a rua, do lado esquerdo ficava o balcão com os salgadinhos que tia Deca preparava. Na foto, ao lado da vitrine a tia Sara, novinha, e talvez a tia Marissa. Do lado direito, perto da porta da rua, o balcão circular, onde se servia apenas o cafezinho.

As fotos me remetem às tentativas iniciais da cidade em se organizar como comunidade, depois que o jogo acabou e os cassinos fecharam.

Diligentes cidadãos locais deixavam seu trabalho para se reunir em torno de um projeto de cidade. Vô Issa era presidente da Associação Comercial; seu Oscar, da subsecção do Conselho Regional de Farmácia; tio Léo, membro de movimento de pais; nosso vizinho, seu Ferreira, um animador social incansável, todos envolvidos na construção da cidadania, que, naquele momento, tinha a forma de uma quadra coberta.

No quarto ao lado, as menininhas dormem tranqüilas, depois de um dia de alegre agitação. Acompanhei a semana das quatro filhas pelo telefone, em meio a viagens intermináveis e à leitura desanimada dos jornais, com as manchetes de um país continuamente errando, sempre caminhando, parando, recomeçando.

Nas fotos de quase 50 anos atrás, o país ensaiava o exercício da cidadania, compartilhava sonhos, os cidadãos locais se organizavam e comemoravam o feito de conseguir uma quadra coberta.

Em que dia, em que lugar, em que momento o país perdeu o rumo? E vem um desânimo quase invencível.

Mas, na semana passada, as menininhas me chamaram para ouvir as músicas que aprenderam na escola. Cantaram “Peixe Vivo”, “Sapo Cururu”, a caçula Dodó garantiu que, nos jogos de futebol, só torce pelo Brasil.

Aí me animo um pouco e as fotos me lembram que, apesar do Copom e da Selic, das CC5 e dos fundos “offshore”, há uma alma brasileira, que nasce nas escolas e se eterniza no compromisso que temos com os que vieram antes, de não deixar cair a peteca.

Luis Nassif

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  1. O coronavirus para colocar em debate a distáncia entre os três sôcios da cidade-estado ou sociedade: os nomes dos teus sócios:
    1- Animais, dos virus aos dinossauros
    2- Humanos
    3- Pessoas juridicas de personalidade publica, mista ou privada

    ….
    O coronavirus veio para que se instale a negaçào da negaçào da proximidade, isso que muitos chamam de amor

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