Crônica de domingo: Miné e o cirurgião de Poços, por Luis Nassif

O grande complexo de Poços era não ter cirurgião. Cada vez que precisava de um, toca buscar em São João da Boa Vista o dr. João Baptista, único cirurgião da região

Lá pelos idos de 30, Poços de Caldas era um grande centro médico, em tudo o que se relacionasse com águas. Tinha médico especialista em tratamento de água para os olhos, para o nariz e até para a sífilis – este, acho que não vingou, porque o dr. Mário Mourão, o cobra das doenças venéreas da época, tinha fama de aplicar aquelas injeções que, de tão doídas, matavam o doente de remorso, de não ter sido prevenido nas farras com as moças.

A tradição vinha desde os tempos gloriosos do dr. Pedro Sanches de Lemos, o primeiro sábio que estudou as águas de Poços e que -soube outro dia, por uma fonte minha daqueles tempos- era pai do galante Capitão Affonso, tema de coluna recente. A maioria do pessoal da época não sabia disso.

O grande complexo de Poços era não ter cirurgião. Cada vez que precisava de um, toca buscar em São João da Boa Vista o dr. João Baptista, único cirurgião da região.

Sou insuspeito, porque morei em Poços e estudei em São João, mas havia uma rivalidade dos diabos, motivo pelo qual os são-joanenses morriam de rir da necessidade que Poços tinha de se socorrer com o SEU cirurgião. Nem adiantava rebater que os jardins de Poços eram mais bonitos e as termas, as mais faladas.

A grande revanche de Poços surgiu no dia em que uma das moças mais agradáveis da nossa sociedade (como escreviam os jornais da época) foi para fora e voltou casada com um médico, apresentado à sociedade local como cirurgião cujo nome me abstenho de revelar por razões que os senhores hão de entender logo mais. Foi a festa. Poços não dependia mais de São João nem para as cirurgias.

Houve certa ansiedade, um mês ou dois, para que aparecesse alguém que permitisse ao nosso cirurgião mostrar sua arte. Acredito até que tinha muita gente torcendo para ter algum problema menor, perna quebrada, úlcera supurada, essas coisas, para poder se tornar o pioneiro local nas mãos do nosso cirurgião.

Quis o destino que o primeiro paciente fosse Miné, e nem conto quem era Miné. Sabe o sujeito grandão, bonito que nem o diabo, goleiro da Caldense e gerente do Grande Hotel? Outro dia me reuni com senhoras da época, contemporâneas do Miné, para que me falassem dele. No início, achei que uma delas sofria de asma, até descobrir que os chiados eram de suspiros apaixonados, provocados pela mera lembrança do rapagão.

Contaram de dona Maria Junqueira, filha de distinta família local, um dos melhores partidos de Poços, apaixonadíssima pelo Miné. Só depois que romperam que ela resolveu se casar com ninguém menos que o filho de um presidente da República – com o qual foi muito feliz.

Por aí, pode-se avaliar o prestígio do nosso goleiro.

Pois o Miné apresentou um problema de apendicite aguda. Levaram-no correndo para a Santa Casa de Misericórdia, que ficava, se não me engano, na rua 15 de Novembro, e mandaram chamar o nosso cirurgião, para sua primeira intervenção. A cidade inteira foi atrás, para testemunhar o primeiro feito da moderna medicina local.

Como era muita gente para pouca sala, resolveram fazer a cirurgia em uma sala envidraçada, voltada para a rua. No alto da escada, que dava para a sala, colocaram o locutor da Rádio Cultura, que ficou irradiando a operação para a massa atenta.

“Atenção, entrou o Miné em um carrinho, com um lençol branco por cima. Agora entrou o doutor. Colocou as luvas brancas. Esticou. A enfermeira passou o bisturi. Ele avança sobre Miné, levanta o lençol, corta a barriga, tira umas coisas lá de dentro, dá um talho.”

E Miné ficou manco para o resto da vida. O doutor seccionou um nervo do nosso inesquecível goleiro.

Outro dia, comentei o fato com um amigo meu, parente do doutor. E ele me disse: “Mas meu tio não podia nem ver sangue que desmaiava”. Acho que foi o trauma com o Miné.

Outro dia conto a história do escravo que virou protético, desenvolveu técnicas revolucionárias, conseguiu a libertação dele e a da mulher, mandou dois filhos estudar nos Estados Unidos e se tornou um dos políticos mais influentes de Poços no início do século.

Luis Nassif

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