A arquitetura do medo e a vigilância consentida, por Eliana Rezende

Por Eliana Rezende

As cidades são o seu entorno e, se arriscarmos uma arqueologia do lugar, veremos de forma muito acentuada exclusão e sua rede de excluídos.

Os espaços antes construídos para o convívio social como as praças e mesmo as ruas hoje são, em especial nas grandes metrópoles e megalópoles, onde o medo transita e a barbárie se instala.

Para alem disso, as constantes demolições, construções e reconstruções mostram uma cidade autofágica, que perde sua identidade cada vez que um novo edifício surge encima dos entulhos. Camadas e camadas de viveres e fazeres são abandonados e simplesmente substituídos, tal qual nas construções aztecas. 

Em alguns casos, tais sobreposições representam o domínio de uma forma ou modus vivendi substituir, suprimir ou subjugar outra. Novas apropriações e reconfigurações marcam um novo tempo ou função. Implosões, demolições, ocupações, dão nova configuração a antigas formas de ocupação espacial.  

A sociedade atual tem um foco voltado no eu, no indivíduo contrapondo-se ao sentido de coletivo das antigas aglomerações citadinas. As relações estão sempre ao longe e habitam um locus virtual. Acessamos pessoas que estão a milhares de milhas e há distâncias abissais entre pessoas que partilham uma mesma sala!

É interessante que recentemente incorporou-se um sentido na arquitetura que é o de integração de ambientes internos. Um exemplo são cozinhas integradas com salas de jantar, e até dormitórios. Em projetos ainda mais arrojados abandonam-se as paredes e apenas móveis são utilizados como delimitadores de ambientes. Só que esses espaços estão recolhidos sob muros que isolam e tentam “proteger”. São ilhas de fantasia plantadas em condomínios e em alguns pequenos redutos. Fisicamente tais condomínios plantam-se em um locus chamado cidade, mas socialmente está fora. Uma inclusão feita pela exclusão.

Paradoxal, não?

Temos de forma ainda mais pontual e localizada o desenvolvimento do que vem sendo chamado de arquitetura do medo. Nela imperam cercas eletrificadas, muros, fossos, grades de proteção, espelhos, câmaras de vigilância. Todo um arsenal de meios que excluem pela inclusão. Justificam-se pelo desejo de segurança partilhada com pretenso pares ou iguais. Estar dentro significa ser um igual, co-partícipe do medo e da insegurança generalizada, fabricada e presumida.

A necessidade de visibilidade com ocultação insere em nossa cultura vidros, vidraças, baias de trabalho, câmaras de vigilância, etc…são formas explícitas de “policiamento” e vigilância justificadas amplamente pela insegurança real ou fabricada. Colocam-se como aparentes escudos protetores contra a ameça invisível, ou visível do “outro”, do desconhecido.

Mas toda essa visibilidade passa longe do que seja sociabilidade, vivência.

As pessoas muitas vezes querem ver e ser vistas, mas se relacionar parece não ser o objetivo.

As cidades no decurso da história sempre tiveram um sentido de exercício de cidadania e em muitas o meio de viver e trocar socialmente. Espetáculos de vida e de morte aconteciam em praça pública.

Hoje temos passantes… transeuntes…

Isto para não falar do quanto a cultura do automóvel destitui de todos a mobilidade, gerando um grande paradoxo. Encapsulados, muitas vezes blindados e envidraçados fazem da rua um percurso e não um espaço de (con)vivência. A rua passa a ser apenas um espaço de ligação entre um ponto e outro. Ponto este que, em geral, é de um local fechado e guardado para outro com características semelhantes. 

As construções repetem as formas prisionais e em muitos casos fica dificil determinar se ela é um presidio, uma escola, um hospital, um templo ou um shopping. Tamanha a semelhança entre as edificações.

Reclusos em todas elas, as pessoas simplesmente se entreolham. Partilham a artificialidade de um ambiente com temperatura e luz controladas, os sons igualmente reproduzem uma escolha de terceiros com objetivos os mais variados. Escadas rolantes marcam itinerários que tornam obrigatório determinadas rotas e destinos.

Os espaços portanto são demarcados dentro de universos circunscritos e domésticos (conhecidos). O desconhecido ganha vultos de perigo e cada vez mais gera estranhamentos, distancias e isolamentos. Sem este tipo de vivência com o diferente, cada vez mais as pessoas criam suas ilhas de isolamento social e o medo acaba imperando e justificando cada uma das ações aplicadas às vivências ditas urbanas ou públicas. 

A (con)vivência entre diferentes, estanca-se e se atrofia. O circulo vicioso está feito. 

Fica então perdido o sentido de cidadania, de vivência e sociabilidades urbanas.

O que sobra de tudo é uma arquitetura de medo e individuação.   

Qual será o destino para as nossas cidades?

Os espaços cada vez mais segmentam, interceptam, selecionam e filtram os que podem por eles circular. Trazem em suas formas a exclusão, a divisão e a segregação como norma. Resultados óbvios, são ilhas de similaridades e mesmices. Mixofobia, para usar uma única palavra.

Com que resultados?

Quanto mais hegemônica e similar uma sociedade for, menor será sua capacidade de negociação, de acolhimento e de tolerância. Negociações mínimas começam a ser cada vez mais difíceis e a segregação pelo diferente uma constância. 

Cada vez mais o desconhecido assumirá ares assustadores e que, como tal, deverá ser mandado cada vez  mais para a periferia do que pode ser considerado seguro.

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Referência:

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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Publicado originalmente no Blog Pensados a Tinta

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Redação

10 Comentários

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  1. Para Bauman, a segurança foi

    Para Bauman, a segurança foi minada com a fragilização dos mecanismos institucionais apoiados e garantidos pelo Estado, com a falência das políticas que compuseram o Estado de Bem-Estar Social. Neste quadro houve uma ascensão dos chamados mercados ou poderes econômicos globais, fazendo com que o Estado permita que o mercado penetre na antiga lógica econômica e social que definiam sociedades reguladas e relativamente estáveis pelas políticas macroeconômicas internas e uma relativa autonomia na sua condução, num quadro mundial ordenado pelos instrumentos criados logo após a guerra. A desregulamentação das forças do mercado e a submissão do Estado à globalização negativa (globalização dos negócios, do crime e do terrorismo) não foi acompanhada pela globalização das instituições políticas e jurídicas capazes de controlá-la.

    Fragmentos do estudo:
    Sobre o “Medo Líquido”, de Zygmunt Bauman;  Igor Zanoni Constant Carneiro Leão e Demian Castro, páginas 3,4,5.

    http://assisprocura.blogspot.com.br/2014/04/criminalidade-e-medo-como-frutos-da.html

  2. De acordo com Bauman, a

    De acordo com Bauman, a sociedade tardo-moderna decreta a afirmação do indivíduo, mas do indivíduo de jure, não do indivíduo de fato. Sozinho, vulnerável, sem um espaço público a que se referir, sem uma dimensão política que apenas uma ressurreição da “ágora” pode garantir, o indivíduo contemporâneo não se eleva para o papel de cidadão, mas um isolado à mercê das suas escolhas e das suas derrotas, “com os olhos fixos apenas no seu desempenho.”

    Fonte: http://pt.shvoong.com/books/dictionary/2188678-modernidade-l%C3%ADquida/#ixzz1pmiEn59J

    http://assisprocura.blogspot.com.br/2012/03/modernidade-liquida.html

  3. Produziu-se uma urbanização

    Produziu-se uma urbanização sociopática, com espaços urbanos fragmentados e segmentados, seguindo um mesmo padrão geral: centros deteriorados e bairros periféricos carentes, habitados por populações vulneráveis; bairros de populações de altas rendas, com forte presença de segurança privada assim como a implementação de condomínios fechados (Caldeira, 2000); territórios controlados pelo “crime organizado”; espaços privados de comércio, com controle social por segurança privada; desigualdade social e espacial; violência cotidiana nas ruas; e violência no espaço escolar (Taylor, 1999:110). Em suma, a falência do poder público regulatório.

    Violências e dilemas do controle social nas sociedades da “modernidade tardia”        José Vicente Tavares dos Santos
    Extrato de :
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000100002

    http://assisprocura.blogspot.com.br/2014/09/a-violencia-difusa-na-modernidade-tardia.html

  4. O fato é que o mundo está

    O fato é que o mundo está mais inseguro e insatisfeito. As violências física, social e psicológica surgem em todos os países,  vimos aumentar a xenofobia, intolerância, atentados (inclusive praticado por estudantes e fora de grupos extremistas) e por aí vai. Países que emergiram e que ainda não oferecem um serviço mínimo de transporte, educação e saúde. As doenças sociais e as fobias estão atingindo cada vez mais os jovens.

    A sensação de não pertencimento é clara neste mundo que magistralmente Bauman definiu de “liquido”, a sensação de vazio pode ser observada sobretudo nos jovens, e talvez seja o efeito colateral do individualismo defendido pelo modelo que escolhemos e que parece que está levando os jovens à solidão, ao não pertencimento, ao vazio, situações que favorecem ao chamamento para atos contrários ao Status quo mesmo alguns dos jovens fazendo parte dele.

  5. É isso aí,O mundo fragmentado

    É isso aí,
    O mundo fragmentado em partes estanques, e alienado.
    O mundo “líquido” majestosamente definido por Bauman.
    O mundo “difuso”, sem referências.
    O todo substituido pela partes (individualismo e egoísmo), de convivência separada..
    Não vale reclamar

  6. Viver civilizadamente reduz a violência.

    Quando Bauman, muito bem lembrado por Assis Ribeiro em comentário abaixo, coloca a falência das políticas que compuseram o Estado de Bem-Estar Social como um dos vetores da sensação de insegurança pública que provoca o isolamento individual, refere-se claramente à necessidade de vivermos como animais racionais que vivem numa civilizaçãoe não como bestas-feras vivendo na selva e caçando cada um por si o próprio alimento. Em outras palavras, somos animais suficientemente inteligentes para perceber que qualquer animal, racional ou não, se levado ao extremo da necessidade de sobrevivência, atacará o outro animal ao perceber que ele possui em sua boca mais alimento do que pode consumir. Esse é, afinal, o objetivo do Estado de Bem-Estar Social: conferir dignidade à existência através da repartição do excedente. A violência urbana hoje, no mundo inteiro, possui duas grandes causas: a pobreza irresignada ante a desigualdade social patente e o tráfico de drogas. Eliminadas essas duas fontes de insegurança, através da assistência social e da descriminalização das drogas, certamente a maior parte dessa sensação de insegurança cessaria.

  7. A arquitetura do medo e a vigilância consentida

    Ol@ Assis, Márcio….Ol@ Pessoas…

    Não se trata de um pessimismo urbanóide, mas sim uma forma de olhar o que de fato nos circunda. É preciso notar que muito dessa vigilância consentida acaba trazendo efeitos colaterais que precisam ser de fato considerados. Afinal estes se justificam? Gosto da forma como Zygmunt caminha e justifica sua postura e acho que cabe bem à situação aqui exposta. Abs

    Tenho um outro post onde o mote inicial foi tbm a questão das cidades inteligentes. fiz uma outra reflexão a respeito. O nome do post é: “Vida sustentável nas Cidades é Cultural. E, isto se aprende!” cujo link está aqui: http://pensadosatinta.blogspot.com.br/2014/08/vida-sustentavel-nas-cidades-e-cultural.html

    Abs e boa reflexão!

    Eliana

     

  8. A arquitetura do medo e a vigilância consentida

    Ol@ Marcio, Assis…ol@ Pessoas…

    Não se trata de um pessimismo urbanóide, mas sim uma forma de olhar o que de fato nos circunda. É preciso notar que muito dessa vigilância consentida acaba trazendo efeitos colaterais que precisam ser de fato considerados. Afinal estes se justificam? Gosto da forma como Zygmunt caminha e justifica sua postura e acho que cabe bem à situação aqui exposta.

    Tenho um outro post onde o mote inicial foi tbm a questão das cidades inteligentes. fiz uma outra reflexão a respeito. O nome do post é: “Vida sustentável nas Cidades é Cultural. E, isto se aprende!” cujo link está aqui: http://pensadosatinta.blogspot.com.br/2014/08/vida-sustentavel-nas-cidades-e-cultural.html

    Abs e boa reflexão!

  9. A arquitetura do medo e a vigilância consentida

    Ol@s Marcio, Assis… ol@ Pessoas…

    Em um outro viés temos que pensar a apropriação da rua pelas pessoas.

    A rua e apropriação dos espaços modificou-se muito a partir de mudanças que as sociedades foram passando. Lembro-me que tive muitos colegas no Mestrado e no Doutorado que trabalharam sobre o efeito das praças nas vidas das cidades. Em alguns casos projetos bem e mal sucedidos. Há estudos sobre Belo Horizonte, Porto alegre, São Paulo e muitas outras cidades menores.

    Deixo aqui uma sugestão de uma querida mestre, Raquel Rolnik. O livro é “A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo”. Vcs podem ler alguns trechos aqui: http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=zp-AvZyg38oC&oi=fnd&pg=PA15&dq=as+pra%C3%A7as+e+o+uso+social+das+cidades&ots=1ZR1BnZi4A&sig=9BDCGY8XcEESAXh-jRODYLgtGFs#v=onepage&q&f=false 

    Outra sugestão é do português, Miguel Silva Graça, ESPAÇOS PÚBLICOS E USO COLECTIVO DE ESPAÇOS PRIVADOS no link: http://ecultura.sapo.pt/Anexos/%C2%ABEspa%C3%A7osPublicos%26Privados%C2%BB%20.pdf 

    Abs e divirtam-se!

    Eliana

  10. do despertencimento ao

    do despertencimento ao fetiche do consumo é um pulo.

    até o próximo shopping.

    não  há almoço grátis.

    a dádiva foi pras cucuias.

    coisisificação.

    necas do café com pãozinho quentinho das

    quatro da tarde, alguém insisitndo; come,meu filho, tá gostoso!

    tudo é nada.

    um raro bom dia.

    o medo da arma, da violencia

    e de sua famigerada parafernália  propagandeada

    como salvação pelos  armamentistas que entulham

    condomínios e cidades de olhometros. quinquilharias

    eletronicas, cercas elétricas, câmaras sofisticadas,

    o panóptico foucautiano.

    vigiar e punir.

    a solidão.

    o horror: medo de ter medo.

     

     

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