A caixa de música e o túnel Mapuche, por Lúcio Verçoza

No momento exato de partir, deu corda na caixinha de música. A bailarina girava lentamente, o navio apitava no cais. Disse que o navio aportou naquela praia, porque ele tinha que a encontrar.

A caixa de música e o túnel Mapuche

por Lúcio Verçoza

Havia uma caixinha de música no fundo do guarda-roupa. Dela saía uma bailarina que girava lentamente, delicada como os primeiros raios de sol da manhã. O som junto à bailarina era uma espécie de sentimento. Um sentimento guardado numa caixinha de joia. Ganhou quando era moça. Uma moça que ainda não podia namorar. 

Ele veio até o coreto. Veio de navio e tinha um sotaque estranho. Pediu-a em namoro, e ela disse que seu pai não permitiria. O estrangeiro não desistiu. Fez amizade com seus primos, tentou frequentar as festas da casa da moça. Ela insistiu que seria loucura e resistiu aos impulsos. Quando as luzes se apagavam, escrevia escondida versos em papel de cartas. Ninguém sabe aonde foram parar esses papéis.

Antes de partir, de embarcar para o além-mar, lhe deu a caixinha de música. Disse que era para ela nunca esquecer dele e que ele nunca esqueceria dela. Ela o beijou. O beijou debaixo do pé amêndoa, onde a noite é mais escura. Comunicavam-se com os lábios e gestos. Entendiam-se como se fossem um casal de golfinhos. 

No momento exato de partir, deu corda na caixinha de música. A bailarina girava lentamente, o navio apitava no cais. Disse que o navio aportou naquela praia, porque ele tinha que a encontrar. Que se ela não existisse seria preciso inventá-la. Disse que nasceu para beijá-la. A bailarina girava. Ele se afastava e depois voltava. Dava o último beijo e apertava a cintura dela contra a sua – com a força e o balanço dos marinheiros. A bailarina apitava. O navio girava. Ele dizia que tinha que partir. Que a maré não esperava. Mas lhe dava mais outro beijo e apertava seu peito contra o dela. E palpitavam como as pontas dos dedos da bailarina. 

O estrangeiro nunca mais voltou. Mas a caixa de música continuava guardada no fundo do guarda-roupa. Acompanhou-a por diferentes endereços e casas. Como um pedaço da existência que não poderia ser esquecido. Como parte do tesouro do que somos. 

*****

Era uma tarde cinza, quando chegou a carta do Chile. Nela, uma mulher, com o nome de Mercedez, disse que seu pai fora um marinheiro que viajou pelos sete mares. Que já havia andando pelos doze pares de costela do mundo e navegado pelos nove círculos da maldade humana. Viu a guerra e o que ela faz com os homens. Que já sentiu ódio e vontade de envenenar o tempo. Que já sonhou em pular nas costas de uma baleia e ser levado por ela. Que voltou para a terra, como retornam à praia as tainhas que descendem da curimã do rio. Que seus olhos cansaram do mar agitado. Que seu corpo quis se deitar numa planície verde, mas havia algo que o empurrava de volta ao mar. Como se dentro dele existisse uma vaga que o navegava. Como se a calmaria fosse apenas o prenúncio da próxima tempestade. Conheceu o medo do escorbuto. Naufragou duas vezes no Pacífico Norte. Sentiu o cheiro da pólvora no estreito de Ormuz. Tornou-se o mais respeitado surfista de peito no leste de Bornéu. Foi confundido com pirata na costa de Xangai. Ficou preso numa gaiola de guardar passarinhos. Foi trocado por ópio na rota da seda. Conheceu um libanês que encantava as venenosas cobras marinhas do Oeste da Austrália. Trabalhou com ele nos portos de Java, Papua Nova Guiné e Macau. Estourou o tímpano pescando pérolas em Galápagos. Comeu carne do Dragão de Komodo, e tinha o gosto agridoce de peixe estragado. Contrabandeou Moais da Ilha de Páscoa e acabou sendo preso pelo governo do Chile. 

Foi enviado para a gélida Ilha Dawson. Fez amizades com presos políticos e quase morreu em decorrência do trabalho forçado. Depois foi transferido para a Ilha Quiriquina. Chegou magro como um faquir indiano que um dia vira no Tanger. Não morreu por causa da mãe de Mercedez. Ela era filha do oficial que lhe torturava semanalmente. Se apaixonou no dia em que ele cuspiu sangue e catarro na cara do seu pai. Ela não testemunhou a cena, mas pelo modo como o pai entrou em casa, imaginou o que havia acontecido e sentiu de imediato uma súbita atração pelo prisioneiro que o havia enfrentado. 

Ela encontrou uma forma de lhe levar comida. Quando ele estava com a febre de tilintar os dentes, descobriu um meio de fazer com que lhe chegasse remédio. Em suas alucinações, sonhava que estava estourando os miolos do verdugo com um peteleco. Delirava, se enxergava perfurando o rosto do oficial com centenas de espinhos de ouriço, mas o rosto do sádico tatuíra era duro como as pedras dos Moais contrabandeados.

Foi numa dessas alucinações de febre e de ódio que a mãe de Mercedez apareceu. Tinha os cabelos negros e olhos de mulher, apesar da maçã do rosto e do corpo de adolescente. Disse para ele não se entregar, que o inverno logo passaria. Antes de partir, deixou comida. Ele não sabia se a moça era real ou outro delírio da febre. Depois da cusparada no rosto do oficial, ficou mais de um ano na solitária. Para passar o tempo, contava a quantidade de pelos no corpo e imaginava viagens por novas rotas marítimas. Projetava barcos com velas feitas de saco de areia. Amarraria entre as grades de aço de sua cela centenas de garrafas de vidros. Seria esse o casco da sua embarcação. Iria dentro da sela flutuante como um bilhete que cruza o oceano em busca de ser lido. Um bilhete orientado pelas estrelas do céu.

Foi numa noite em que sonhava com o seu barco de garrafas e velas de saco de areia que a mãe de Mercedez retornou a sua cela. Pelas fendas da grade, tratou de suas feridas com mertiolate. Quando sentiu o ardor da pele em contato com o líquido alaranjado, concluiu que não estava delirando. Sussurrou baixinho pedindo para ele aguentar firme, pois encontraria um meio de tirá-lo de lá.

Quando finalmente saiu da solitária, estava obcecado por encontrar garrafas e sacos de areia. Após três anos de busca pela ilha, já havia conseguido um número considerável de garrafas. O mais difícil agora era encontrar rolhas e barbantes em número suficiente. Desistiu de construir a vela, estava apostando na corrente marítima que o levaria para o fim do mundo, na Patagônia. A mãe de Mercedez conseguiu as rolhas e os barbantes que faltavam. Após o passar dos anos, notou que ela não tinha mais um corpo de menina. 

Na noite de São João, enquanto os guardas se distraiam com copos de vinho, colocou seu barco no mar. Quando pegou impulso para remar, ela chegou. Chegou vestida de preto e com um lenço negro nos cabelos. Ele quis agradecer. Mas a mãe de Mercedez não o deixou falar. Pulou no barquinho de garrafas de vidro e disse que iria junto. Falou que sonhou com esse momento desde o dia em que ainda não o conhecia. Ele remou com a pá de ferro em direção contrária ao continente. Esperava encontrar a corrente que os levaria a Patagônia. Queria chegar ao fim do mundo, o lugar de onde partem todos os ventos.   

Passaram duas noites em alto mar. Se equilibravam no centro do barco de garrafas, um sobre o outro. Colocaram o peso das mãos, do pescoço, da língua e das coxas em pontos cardeais do barco e da pele dos corpos. Era a única forma de se manterem vivos e aquecidos. O vento sul cuspia água gélida. Os corpos nus tremiam de frio e depois de calor. De calor e frio. De frio e calor. O ciclo se repetiu durante o dia. Frio e calor. Calor e frio. Como se esse movimento repetitivo fosse o motor do barco. Frio e calor. Calor e frio. Os peixes ficavam brechando pelos vidros da garrafa. Juntavam curiosos cardumes de várias espécies.

Quando repetiam o ciclo do estio pela quinquagésima segunda vez, estavam novamente em terra firme, mas nem se deram conta. Uma corrente marinha de oeste os havia levado de volta à Ilha Quiriquina. Foram encontrados abraçados e nus; ela vestia apenas o lenço preto no cabelo. Seu pai a mandou de imediato para o continente, nunca mais regressaria à Ilha. Ele, por pouco, não foi fuzilado. No momento da execução, o verdugo, que era o pai da mãe de Mercedez, decidiu que uma bala de fuzil na testa seria sofrimento pouco. Então, o condenou a cavar um túnel que ligasse a ilha ao continente. 

Durante dez anos e três dias cavou o túnel sem descanso. Dormia somente cinco horas, fazia duas refeições ao dia e trabalhava initerruptamente quatorze horas diárias. No segundo ano de escavação, se deparou com o corpo de um guerreiro Mapuche. Pensou que, se encontrou o corpo, talvez encontrasse o espírito do lendário Lautaro. Os presos políticos chilenos tinham contado histórias sobre Lautaro. No quarto ano, encontrou uma adaga rústica que carregava as feições luminosas do povo Mapuche; ela tinha uma ponta afiada e triangular. Como naquela altura o túnel já estava passando por debaixo do oceano, percebeu que aquele só poderia ser o antigo caminho sagrado que fora usado pelo povo Mapuche para expulsar os saqueadores espanhóis. Essa constatação o encheu de entusiasmo e orgulho. No sexto ano, chegou ao meio do canal que separa a ilha do continente. No oitavo ano, estava quase sem dentes e com o corpo todo entrevado, mas alguma coisa o fazia continuar escavando; não sabia se era a vontade inesperada de viver, ou desejo de vingança. Talvez, de algum modo estranho, ele não se entregasse, porque quisesse do fundo de sua alma reabrir o caminho mítico dos Mapuches. O motivo exato era um mistério inclusive para ele. Quando completou dez anos debaixo da terra, sentiu, com toda certeza do mundo, que estava apenas a quatro dias de chegar ao continente. Podia sentir os voos rasantes dos albatrozes, o crustáceo que caminha pela areia com uma casa de pedra nas costas, as ondas que se arrebentam na praia, como crianças que procuram uma mãe.

No dia que pressentira ser finalmente o último, foi acordado no oco do túnel com a notícia de que a ditadura de Pinochet havia terminado. Sua intuição estava certa.  Chegou ao continente a bordo de um barco, após dez anos e três dias de escavação. A filha do oficial torturador o aguardava, estava com um lenço colorido amarrado nos cabelos e segurava a mão de uma garotinha com nove anos e três meses. Quando a viu, não teve dúvida de que a menina estava com os pés exatamente em cima da saída do mítico túnel Mapuche. Nesse milésimo de instante, se sentiu finalmente um homem livre. 

****

No fundo do envelope havia um outro papel. Era uma letra de um homem com um sotaque estranho:

“Pedi para minha filha Mercedez te escrever contando a minha história. Não sei se ainda há tempo, não sei se você lembra de mim. A verdade é que nunca te esqueci e queria que você soubesse disso. Não queria morrer sem que você soubesse.

PS: Mercedez se tornou uma linda mulher. No mês passado, completou 35 anos de idade”.

Ela nunca o esperou realmente, apenas esperava que ele não a esquecesse. A lembrança também é uma forma de amor. Dormiu aquela noite com a certeza disso. Seu sono radiava o brilho de quem sabe que não foi esquecida.

 

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador