A casa da minha infância

Tem certos dias em que a solidão convoca uma assembléia geral da minha vida. E corro para chegar à cidade antes que amanheça e que o sol espante a magia. Chego ao jardim, espreito os fantasmas que saem da bruma de da noite, e entro na casa que não mais havia.

Lembro-me do quartão do fundo, onde abrigava minha solidão de recém saído da infância buscando ansiosamente o mundo através das ondas curtas de um rádio de rabo quente. Lembro-me especialmente das festas de Natal, em que se juntavam nossa família e a da tia Rosita.

Num dia qualquer de 1974 mudou de mãos, passando para novos donos. Era mês de julho, deixei São Paulo, onde morava desde 1970, subi a montanha e olhei pela última vez a casa, vazia, sem móveis, sem vida, enquanto o caminhão levava a mudança e o desgosto de dona Teresa e seu Oscar rumo a metrópole.

Até alguns anos atrás, quantas noites atravessei com pesadelos, com aquela imagem da casa vazia, sem vida, me atormentando o sono.

Mas é nas sombras das árvores do jardim do Pálace que revejo a casa, meus mortos mais amigos, a minha afinidade mais constante. Vejo dona Teresa mais nova do que hoje sou, e seu Oscar, que deveria ter a idade que hoje tenho. E essa invasão das fronteiras do tempo mistura tudo. E relembro da angústia, da crise financeira da Farmácia Central, da impotência em não poder ajudá-lo mais do que metade do salário que ganhava.

Lembro-me de uns dez anos atrás, em que sonhava com ele, tentando aconselhá-lo a reestruturar a farmácia. E ele, no sonho, me dizendo angustiado que não podia dispensar o Rafael, a Neusa, o Januário. Depois, um tempo depois, encontrei o filho do Rafael que me disse que, pouco antes de morrer, sonhara com o antigo patrão angustiado, pedindo que o ajudasse a sair da crise.

Assim, vou dispondo as lembranças como minha mãe escolhia arroz com as mãos. E limpos o arroz, a alma e a mente, o coração explode finalmente, pacificando as emoções.

Luis Nassif

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