A fábula do senhor Funil, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O senhor Funil e os seguidores dele começaram a ser soterrados por pedidos formais de autorização emitidos por pop-ups dos websites.

A fábula do senhor Funil

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Na segunda década do século XXI, o volume de arquivos de papéis estava declinando em toda Europa, quando algo aconteceu. Bem. Na verdade, nada realmente aconteceu. O não acontecimento que inundou nossas vidas novamente com documentos de papel foi o resultado de uma decisão da Corte de Direitos Humanos da UE. 

Preocupado com sua privacidade – atenção isso é tão importante que não posso nem mesmo mencionar o nome verdadeiro do personagem dessa curiosa fábula – o senhor Funil levou ao Tribunal a seguinte indagação:  

Como pode o usuário de computadores fornecer autorizações que violam sua privacidade sem ter um tempo razoável para avaliar e julgar as implicações do aceite nos pop-ups que aparecem na tela do computador dele? Como pode ele ter certeza de que forneceu essa autorização e a quem ela foi realmente fornecida sem uma prova documental do que ocorreu?  

O caso foi levado a julgamento, pois o cidadão europeu tem direito humano de acesso à internet com privacidade e os provedores de internet estão obrigados a cumprir os regulamentos da União Europeia que garantem a privacidade. Durante o andamento do processo o senhor Funil se tornou objeto de intenso debate na mídia.  

Os defensores da privacidade o encaravam como um soldado do exército deles na guerra contra os abutres de dados. Os provedores de internet reclamavam que havia possibilidade de o resultado da ação travar o sistema, fazendo a Europa perder a corrida da revolução industrial 4.0 para os EUA e para a China. No princípio, o senhor Funil gostou da publicidade, mas em pouco tempo ele percebeu que o caso estava fazendo ele perder o controle de sua própria vida e imagem (algo que ele realmente queria preservar).  

O senhor Funil começou a se esquivar dos jornalistas. Depois começou a ameaçá-los com processos. Eventualmente, eles pararam de assediá-lo, mas isso não arrefeceu o debate público sobre a questão. E ele foi realmente incendiado quando o Tribunal proferiu sua decisão.  

A Corte decidiu por maioria, que os negócios dos provedores de internet não poderiam ser prejudicados. Mas, por um outro lado, o Tribunal admitiu que o senhor Funil tinha razão. Sem prejuízo de acesso aos seus websites prediletos (ou quaisquer outros que ele desejasse visitar), ele deveria ter um tempo razoável para decidir se concederia ou não permissão formal e por escrito a pop-ups que quisessem violar seu direito a privacidade. Uma exceção deveria ser criada em todo território da UE: no caso dele, sempre que ele acessasse algo, o provedor deveria enviar uma carta pedindo permissão para violar sua privacidade (com uma cópia para o arquivo do usuário, é claro). Os provedores deveriam conservar os documentos em arquivo por 20 anos. Mas o senhor Funil só poderia exercitar esse direito se pagasse pela despesa postal da correspondência lhe enviada. 

Essa decisão poderia ser considerada uma derrota vitoriosa para os dois lados, exceto por um detalhe. Uma ONG rapidamente pulou no caso e disse que forneceria os meios para o senhor Funil exercer seu direito. Não só isso, por toda Europa grupos de cidadãos preocupados começaram a ajuizar ações judiciais semelhantes à do senhor Funil para exercer o mesmo direito. Logo, a questão começou a ser debatida no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia. No final, a decisão do Tribunal foi estendida a todos os cidadãos europeus que quisessem exercer aquele direito.  

O resultado inevitável foi um aumento exponencial de cartas enviadas pelo correio. O senhor Funil e os seguidores dele começaram a ser soterrados por pedidos formais de autorização emitidos por pop-ups dos websites. Imensos arquivos de documentos começaram brotar do chão europeu como cogumelos.  

A maior garantia de privacidade aumentou da demanda por papel, acarretando um substancial aumento da devastação ecológica na África e no Brasil. Alguns anos depois, os defensores da privacidade começaram a ser encarados como inimigos pelos ecologistas. Soterrado por cartas e por seu arquivo pessoal de autorizações enviadas, o senhor Funil começou a se arrepender do que havia feito. Então ele foi novamente ao Tribunal. Mas desta vez ele pediu aos juízes que decidissem a seguinte questão: 

Poderia ele optar por dar autorizações nos pop-ups mediante um simples clique de mouse, como fazia no passado? 

Esse novo caso do senhor Funil escandalizou uma parcela dos defensores da privacidade, mas agradou muito os ecologistas e as pessoas que estavam começando a se sentir incomodadas pela quantidade de papéis que recebiam para poder conceder ou não autorização para pop-ups. Os provedores de internet obviamente disseram que concordavam com o pedido do senhor Funil. Rapidamente o Tribunal proferiu uma nova decisão: 

Sim. O senhor Funil poderia optar por dar autorizações nos pop-ups mediante um simples clique de mouse.  

A questão foi novamente levada à discussão no Parlamento e na Comissão Europeia, onde a discussão ficou realmente violenta. E ela ainda não foi resolvida, pois existem interesses econômicos que devem ser acomodados. As empresas postais alegam que perderão uma parcela de sua receita e exigem compensações da União Europeia. As empresas gráficas que imprimem autorizações de pop-ups e os importadores de papel também não ficaram satisfeitos. Os lucros deles declinarão de maneira substancial. Os plantadores de madeira para papel pedem aumento de subsídios caso suas florestas não possam ser cortadas e vendidas. Líderes políticos dos países-membros da UE passaram a defender os interesses regionais criados pela indústria de privacidade. Uma verdadeira confusão numa Europa condenada a oscilar entre os “business as usual” e a valorização dos direitos humanos.  

O senhor Funil obviamente começou a sofrer ameaças e até agressões. Quando decidiu mudar para os EUA, ele foi acusado de ser agente da CIA. Algumas pessoas acreditam que o senhor Funil é o famoso agente Voronka. O Kremlin obviamente não negou nem confirmou essa hipótese.  

Fábio de Oliveira Ribeiro

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