A lei da linha e a justiça da escrita, por Eliseu Raphael Venturi

Enquanto gravitamos nestas práticas e exercícios do texto, aos quais muitos passamos a vida condenados em seus recônditos de injustiça, não chegamos, propriamente, à justiça da escrita

Oliviero Gatti. Studies of Hands, 1619.
A lei da linha e a justiça da escrita
por Eliseu Raphael Venturi*

A justiça da escrita não toca o mundo, assim como não o atravessa, não o perpassa, não se imiscui, não é tecido; a justiça da escrita, para o mundo, “é nada”, assim como para o universo é apenas mais uma manifestação de variações sem fim em cujo espectro não se reconhecem mais antecedentes e sucessores, porque o espectro não é linear, é espacial, e nestas espacialidades não vige a lei da linha entre os pontos, fonte de quase todos os enganos da compreensão enquanto relação de necessidade que, no fundo, é apenas abstração matemática, sem com isso se deduzir, também, qualquer realidade dita objetiva, apenas uma outra variação de subjetividade, portanto. Por isso, hoje, circula tanta linguagem, tanto texto, mas falta tanto algo no resultado e, ainda mais, na produção.

A linguagem não cobre o mundo como uma manta de significação latente, ou não está colada nos objetos e pessoas como que uma fonte de significação na qual se identificam relações, e a justiça da linguagem está para o mundo como que as cores estão para o mundo, mas, novamente, sem se recorrer a um subjetivismo nisso, apenas uma peculiaridade mecânica de algo que, embora não metafísico, acaba sendo intangível e, assim, em sua raridade.

Esta intangibilidade se relaciona diretamente com a inexauribilidade e também com as diversas forças da escrita, que são emulações de outras vozes, e às vezes se reduzem a diferentes atividades, pois muitas vezes escrever nada mais é do que organizar objetos com lindos arvoramentos mais ou menos selvagens ou podados, outras vezes compor objetos segundo outras ordens estéticas e rizomáticas, outras vezes produzir belíssimos caos, outras vezes simplesmente efetivar a mediocridade de sistemas de ensino e estereótipos rolantes da linguagem.

Enquanto gravitamos nestas práticas e exercícios do texto, aos quais muitos passamos a vida condenados em seus recônditos de injustiça, não chegamos, propriamente, à justiça da escrita, não tocamos o intangível, poderia dizer, não realizamos esta existência na medida em que o texto estiver perdido em não-lugares do achatamento da linguagem, este é o obstáculo, é este o desvio de rota que demanda velar o pensamento, como que constantemente, um esforço reiterado de omitir, camuflar, incorporar, por muitos motivos, aquilo que poderia e deveria aparecer na escrita, e é com esta tensão que lutamos o tempo todo, com estas censuras.

Enquanto este dia não chega, continuamos com a única missão da escrita, que é escrever por dentre todos os acidentes envoltos na sua composição. Se é, aliás, que “este dia” chegará, se é que se deve buscar este “ponto”, como se fosse uma meta ou um objetivo da escrita, se é que se pretende conferir à justiça da escrita esta missão idiota que normalmente se atribui às noções da justiça: “um dia”, “o dia”, “o momento derradeiro”, como se tudo não passasse de afirmativa e correção para tentar conter o que já não cabe mais nas formas.

Ninguém precisa viver em torno destas promessas, nem em torno da tortura destes dias vindouros, nem correr o risco de perder simplesmente tudo em torno destas inscrições profundas.

É uma violência muito grave esta que naturalizamos e para a qual concedemos nosso conjunto de interesses. Esta justiça da escrita talvez seja, portanto, apenas um encontro: um dia se lerá e se identificará. Ou nunca.

*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba-PR.

Redação

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