Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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A natureza luta ao vento, por Maíra Vasconcelos

Por Maíra Vasconcelos

A chuva está muito bonita e o cinza no céu aconchega pela introspecção que a cor acarreta. Eis o ditado de uma impressão passageira. Recitarei ainda outras tantas voltinhas do dia-a-dia. Círculos de momentos passam ligeiro diante dos meus olhos. Mas por que não escrevo a felicidade? Ontem a planta bico-de-papagaio despencou, pobre que estava à sorte do vento bem na beira da janela da sala, foi embora, espatifou-se ao piso mais baixo do edifício. Inerte e feia, tinha a terra solta longe de sua haste e raiz: o que os vizinhos pensaram de quem descuidou de uma indefesa planta? Suposições sociais são tão desinteressantes!, mas podem ser ouro para escrever crônicas. Eu desmereço e brinco com ouro?

Estes escritos continuam bravamente desflorados, se há tanto piso em quantas flores!, diria que a coincidência das minhas palavras com o vento que derruba plantas de edifícios, isso chega a ser vulgar e tendencioso. Aquela tendência da arte que imita a vida. Invadindo o viver o prato a xícara o beijo, senão não escreveria para o jornal que é de amanhã.

Estes escritos sem-flores chegarão até setembro?, a incerteza é dona de mim e dessas palavras que não as sei distinguir e mesurar e definir. Mas conscientemente agarro isso que persiste pregado em minha pele. Sem depender da palavra em-si: ela vem. Dependo de sustentá-la religiosamente, como manter firme aquele balde de água na cabeça, ou aquela vela acesa, entre as mãos, indo contra o vento ao vento; caminhar sem nunca poder desprezar tais elementos. Água e luz equilibradas junto ao corpo, sem deixar que se tornem um entulho apoiando-se dobrando-se e me desconjuntando. Sim, pode-se bambear o corpo de tanto peso de tanto susto, pode-se na linha tênue amar e não amar o próprio corpo. Mas toda palavra no ar de cada peito foi feita para ser olhada e cuidada, se tão permanentemente todo escrito me ocupa. E vejo asas em silêncio.

Piso tantas flores, expostas ao chão rendem-me um festival de proteção, porque preciso ficar muito muito forte para conversar com o mundo. Que se empina feito bicho, e eu também posso usar meu bicho a confrontar, mas eu não gosto justamente desse, fico triste e amuada, almejo calçar outras patas.

Se ainda tanto tenho a desbravar em novos sapatos, num pisar tão humano. Poderei um dia abrir longamente mansamente a janela e dizer que estou pronta para outra via de expressão? Como se não escrevesse porque passaram-se já muitos anos. Ficaria feliz em não cronometrar os segundos da minha presença na sala de estar, ficaria ao lado das pessoas porque quero, apenas. Sem receber enxurradas de suas desordens.

Desprender-me da necessidade extrema da paz interior é um sonho já derrotado. Como as pessoas conseguem ficar todas juntas assim nas ruas?, tantas horas e passos, tanto tempo embolado não lhes confere aflição pelo desconhecimento de si e excesso de fingida coletividade? Perco-me esqueço-me tão somente e sempre que tenho alguém ao lado. Mas um dia posso dar descobrir a mão que me convém.

Maldita bela floração que me acompanha. Se despossuídos de flores amamos sem as tais verdades e assim fingimos mais com espelhos firmes duradouros. Se flores exibem a vida que se esconde, sabemos. E duram tão pouco, quebrando-se desmontando-se, exigindo vida trás vida, sem fim. Ah. Sentir-me-ia tão livre, se nunca mais visse flores no meu caminho, mas quase que ficaria sem mim mesma também.

Prossigo tomada pelo enjoo de florais – rosas, jasmins, margaridas, cravos, por todas essas já passei.

Descobrir-se a si mesmo: tempos de cólera. Depois tudo fica calmo, mas o interior de todos nós muda tanto!, volta-e-meia a água se agita, depois e depois tudo vai e volta e tem-se também ressaca, como mar irrequieto. Quanta angústia teria F. Pessoa: dono de infinitas marés e chuvas oblíquas que varavam meses meses.

É quase subalterno o repasse de si-mesmo à palavra. Mas a transmissão dá-se também da palavra até o si de quem a escreve. O em-si e o para-si são conceitos de J. P. Sartre, e eu os esqueço frequentemente porque Sarte eu já li muito. Então, voltando, eu dizia do si de quem escreve, e eu escrevo quieta disciplinada obediente, eis que também resignada em ter esta outra vida, com uma lista de pendências compromissos, porque a fala pela boca suculenta não mais existirá. Viver no mundo pelo traço de relatar, como se meu quarto fosse muito importante.

A complexidade do pensamento criativo-imaginativo exige uma realocação do indivíduo no tempo-espaço. A sua cadeira é outra, podemos dividir a mesma mesa, a minha mão vai bem com a sua, se você adoça meu corpo, então corrijo a palavra certa do mundo, tornando-a errada para que todos entendam a inerente fatalidade do viver. Ao traduzir toda palavra que me percorrerá, cotidianamente, sem nunca dar-me ao não repassar, aprender profundamente: passar a vida a treinar uma expressão. Calculando melodicamente, exaustiva, a medida certa. Enquanto na rua o breve exigente querer de outrem sempre me endoidece.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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