Zê Carota
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A pós verdade e a velha precaução, por Zê Carota

A pós verdade e a velha precaução

por Zê Carota

Dona Ricardina desconfiava que o esposo, Clóvis, andava ciscando fubá noutras hortas.

almoxarife numa fábrica de parafusos, Clóvis nunca se preocupara com o que vestir para ir ao serviço, mas, de uns 4 meses pra cá, dera pra vestir camisas de manga engomadas e passadas por ele mesmo, e após barbear-se [o que passara a fazer todos os dia, não mais apenas aos domingos], passar colônia Lancaster com tal fartura que a asmática vizinha, Dona Zizi, passou a ter medonhíssimas crises matinais.

 

noite lá, Clóvis chega em casa do serviço, mal cumprimenta a esposa, chispa pra lavanderia, tira a camisa, abre a bica do tanque, pega o sabão de coco Itapuã, mas, distraído, não vê Dona Ricardina, desconfiada daquele proceder, chegar por trás e tomar-lhe a camisa das mãos, começando a vistoria até encontrar a razão do fuzuê: na gola, uma mancha carmim.

 

– explique-se – ordenou, resoluta.

– o Barroso, desengonçado que só, derramou refresco de uva em mim.

– uva ou morango?

– uva, mas ralinho, ralinho…

– sei. e por que não lavou na hora, em vez de deixar pra lavar aqui? esquisito. esquisitíssimo.

– Ricardina, não faz número. você sabe o que essa situação representa.

– não, não sei, me explica. e me convença, Clóvis Mauro dos Anjos – decretou, e dizer-lhe o nome como no RG equivalia a depor no distrito por atitude suspeita, e se não colar, ó…

– isso é a pós verdade, nunca ouviu falar?

– não. desembucha.

 

e o Clóvis fez um discurso especial, qual estivesse não no distrito, mas mediante uma banca de doutorado em Linguística.

Ricardina reagiu à explanação apenas com um resmungo: “hummm…”.

tá, e passou.

 

na manhã seguinte, quando Clóvis saía pro serviço, Ricardina ordenou: “venha aqui”.

Clóvis girou nos calcanhares e se chegou a ela, que, de pronto, lhe deu uns catiripapos bem assentados. aturdido, Clóvis reagiu:

 

– que bicho te mordeu, criatura??!!!

– nada, nenhum. isso é a pré coça, nunca ouviu falar?

– não. diabo é isso?

– é o que tu vai tomar todo dia, de segunda a sexta, antes de ir pro serviço, até eu panhar confiança que Barroso não derruba mais refresco de uva no teu colarinho.

 

desde então, as camisas de Clóvis, se ele quiser, podem ser vestidas novamente mesmo após um dia de uso, sem lavar, tamanha limpeza.

manchas no pescoço, só mesmo uma e outra, quando Dona Ricardina pesa a mão um cadinho mais, mas aí, claro, ela não reclama.

nem ele.

 
Zê Carota

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