Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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A semântica do Bixiga, com Adoniran Barbosa, por Rui Daher

Nascido em Valinhos, SP, em 1910, como João Rubinato, depois de andanças por Jundiaí, Santo André, veio dar em São Paulo, onde se tornou Adoniran Barbosa, homenagem a dois grandes amigos de boemia.

A semântica do Bixiga, com Adoniran Barbosa, por Rui Daher

Neste fim de semana que se foi, junto com a contagem de infectados e mortos, pela COVID-19, não foram poucos meus momentos de lágrimas, muitas vezes convulsivas.

Antidepressivo regularmente tomado, pouco adiantou. Ao mesmo tempo que lembrava de amigos ou ídolos partindo, vinham lembranças de minha mãe, dos 48 anos vividos com Cléo, de brincadeiras com meus filhos quando ainda crianças, amizades que fiz no passado, e do alvorecer de meus filhos, hoje em dia, vitoriosos em suas livres escolhas.

Para completar, os textos de Mino Carta e Drauzio Varella, em CartaCapital, sobre a perda de Nirlando Beirão e do modelo para as minhas crônicas, Aldir Blanc.

Ao cabo e rabo, lembrei-me dos almoços mineiros, aos sábados, na casa de meus “cumpadis” Ivan Ângelo e Mariângela. Lá fora, no jardim, meus três filhos e as duas meninas dos donos da casa, farreavam como o galgo da família.

Na sala, discutíamos política e cultura, sempre boa música, e contávamos “causos”, esperando a canjiquinha ou outra mineirice.

Lá, conheci Silviano e Rodrigo Santiago, Fernando Mitre, Gabeira, Davi Arrigucci Jr., e o próprio Nirlando, além de outros que a finitude de 75 anos possa ter-me feito omitir.

Fui feliz, aprendi muito e, talvez, daí, as mais grossas lágrimas do fim de semana.

Mas, para nós, brasileiros, a hora do sorriso sempre chega. E veio assim:

“Iracema, eu nunca mais que te vi/Iracema meu grande amor foi embora/
Chorei, eu chorei de dor por quê/Iracema, meu grande amor foi você.

Iracema, eu sempre dizia/Cuidado ao travessar essas ruas/Eu falava, mas você não me escutava não/Iracema você travessou contra mão

E hoje ela vive lá no céu/E ela vive bem juntinho de nosso Senhor/De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos/Iracema, eu perdi o seu retrato.

(parte recitada)

– Iracema, fartavam vinte dias pra o nosso casamento/Que nóis ia se casar/Você foi para Assistência, Iracema/O chofer não teve curpa, Iracema
Paciência, Iracema, paciência.

E hoje ela vive lá no céu/E ela vive bem juntinho de nosso Senhor/De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos/Iracema, eu perdi o seu retrato”.

Samba, letra e homenagem recitada podem ser colocados como clássicos da expressão cultural brasileira, hoje tão vilipendiada. Expressão mais incisiva do contexto paulista e paulistano, do Bixiga, de Adoniran.

Nascido em Valinhos, SP, em 1910, como João Rubinato, depois de andanças por Jundiaí, Santo André, veio dar em São Paulo, onde se tornou Adoniran Barbosa, homenagem a dois grandes amigos de boemia.

Como é a nossa gente humilde, trabalhou em várias atividades que sobram aos pobres. Seu primeiro sucesso foi “Trem das Onze”, imortalizado pelo conjunto “Demônios da Garoa”. Não só. Foram muitas suas obras-primas. Cito duas: “Saudosa Maloca” e “Bom dia Tristeza”, composta junto com Vinícius de Moraes.

João “Adoniran Barbosa” Rubinato faleceu em 1982, em São Paulo, de enfisema popular.

Se os leitores e leitoras bem repararem, olhando para as formas de linguagem popular usadas na letra de “Iracema”, estará, a cada verso, vendo a cidade de São Paulo, como usadas pelos imigrantes italianos que se espalharam pelo Bixiga, Brás, Mooca. Se andarem um pouco mais, sul ou norte, a mesma diversidade encantadora.

Por que, então, não as usam, leem, e estudam mais?

No que escreveu Adoniran para Iracema, morfologia, sintaxe e semântica estarão unidas em beleza linguística.

Vejam:

“Iracema, fartavam vinte dias pra o nosso casamento/Que nóis ia se casar”.

Redundância? Não. Morfologia (vinte dias); sintaxe (casamento); semântica (que nóis ia se casar).

Primeiro, a conhecida malandragem dos moços que vivem prometendo casamento às moças, mas vivem de adiar; segundo, a promessa pós-morte de que agora era para valer; terceiro, ficam as meias e os sapatos, não o retrato.

Daí que as lágrimas, então, voltaram mais copiosas.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

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