A situação hoje é lamentável meu caro Flusser, por Ana Claudia Dantas

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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No início da década de 1960, o filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser disse que “viver comodamente no Brasil a rigor é possível apenas porque a imaginação humana é limitada. Não imagina sempre a miséria simultânea dos milhões, e vive-se comodamente. Aliás, tal miséria é realmente inimaginável … o caboclo que vegeta no deserto à beira do rio São Francisco … come feijão preto podre em lata de gasolina, bebe água verde-escura do rio, e sua mulher foge ao aproximar-se de um jipe, por medo do jagunço. A família nordestina em São Paulo … acampa sob o viaduto, vive de refugos da cidade e da mendicância, a roupa mal lhe cobre a nudez … essa gente foge de uma patrulha da polícia. A mulher proletária espera em delegacias inacreditavelmente sujas e desorganizadas para saber se o filho se perdeu possivelmente nos labirintos de um aparelho policial e judicial supercomplexo e mal administrado, e pede informação a um funcionário semialfabetizado, indolente e indiferente, que manifesta seu desprezo cavoucando os dentes com o palito e emitindo obscenidades”.

Mas o brasileiro da época Flusser descreveu como um povo que dispunha de capacidades incríveis de safar-se de situações aparentemente sem saída e de enriquecer-se com isso… de brincar com coisas que, para outros povos, era preocupante, pois, na brincadeira é que ele se resolvia.

O judeu checo — que se abrigou no Brasil para não ser morto pelos nazistas durante a Guerra e foi professor na USP e no ITA —, acreditava que o brasileiro representava nova espécie de homem, o homo ludens, uma espécie que poderia vir a ser a salvação para a existência humana.

Mas aí veio a ditadura e ele teve de fugir do Brasil. Morreu cedo, indo receber um prêmio em sua terra natal, e não pôde acompanhar o feio desenrolar história do nosso país. Feio porque, depois da ditadura, a escola brasileira, que seria o local de reflexão, virou uma porcaria. O Civita, o R. Marinho e o pessoal da imprensa de São Paulo dominaram o espaço deixado pelos militares e começaram a escolher os governantes que comiam em suas mãos.

A população pensava que sabia em quem estava votando, mera ilusão. Ao invés de políticas públicas o Brasil passou a sofrer a caridade de barbaridades como o Criança Esperança e outros programas criados para lavagem de dinheiro que a máfia arrecadava dos cidadãos comuns.

As novelas ditavam a moda, a maneira de pensar e de agir. Os juízes e parlamentares foram sendo comprados e reeducados, um a um. Até os médicos adoeceram. O povo médio e descendente dos pensantes dominantes foram metricamente lobotomizados, mas os maquiavélicos pensantes dominantes foram morrendo de velhice e deixando as rédeas do país nas mãos de débeis sonâmbulos.

A dormência do povo se agravou na década de 1990, quando a miséria e a pobreza dos que bebiam água verde e fugiam de capangas e da polícia já tinham matado os poucos valentes. A farsa foi tão bem alinhavada, que o sonambulismo pairou em um silêncio total a respeito da realidade.

A mídia ninava os brasileiros com vozes brandas contando contos de Dona Carochinha, e tudo parecia ir bem, até que, de repente, surgiu um sujeito travesso e disse basta! Abriu as cortinas para entrar a luz do sol de modo que todos pudessem ver no que tinha se transformado este país e disse: acorda! E a realidade se apresentou fria e cruel.

Descobriu-se, aí, dois grandes grupos de brasileiros, um que começou a se levantar, deixando de ser indigente e começando a virar gente; e outro que adoeceu por completo e não presta mais pra nada, virou vampiro sedento, sem cérebro e sem possibilidade de cura.

Ainda há alguns poucos que se mantiveram acordados no período em que a máfia dos quatro poderes, executivo, o legislativo, o judiciário e mídia, deu continuidade à ditadura, antes militar.

A situação hoje é lamentável meu caro Flusser, estamos em guerra, mas só os vampiros organizaram suas forças armadas. Aqueles que só agora estão se tornando gente, estão levando pancada de tudo quanto é lado, os que permaneceram acordados estão desnorteados e os filósofos da USP de hoje são da espécie olavo de carvalho.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. È isso mesmo.
    A aristocracia,

    È isso mesmo.

    A aristocracia, elite,  de posse do Estado brasileiro, posto que é falso regime republicano,  fecha os olhos para destruição do ambiente e condena ação publica para erradicar a miséria,  e ainda se prevalecem de bolsas barão. Não desejam condições dignas para todos nem a diminuição das desigualdades.

    Se organizam em sociedades paralelas, patrocinadas por estrangeiros,  com falsas missões, para que na verdade seja mantida condições medievais, de Reis e Servos,  da Casa Grande e Senzala.

    E para sua segurança vivem boa parte do tempo no Exterior.

    Praticam a desinformação a a valorização da favelas. Assim prolongam ao máximo nosso estagio de Colonia.

     

    ” A procura da verdade em si mesma indica saúde mental e existencial; o que se acha através dessa procura revela muitas vezes, porém, doença e absurdo. .. Nesse momento não somos nem apocalípticos nem integrados, nem pessimistas nem otimistas, mas sim conseqüentes.”

     

    Resenha de A Dúvida por Gustavo Bernardo

    O Globo, 28 de março de 2000

    A Dúvida, de Vilém Flusser. Relume-Dumará 104 pgs

    GUSTAVO BERNARDO é professor de Teoria da Literatura na UERJ.

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